Professora utiliza os seus conhecimentos literários e bíblicos para engendrar textos geniais
I
Autora
de vasta obra, professora doutora e pós-doutora em Literatura Portuguesa, teóloga
e ensaísta, Salma Ferraz está às voltas com a conclusão de Bíblia narrada
pelo feminino, obra em que pretende trazer à luz mulheres que foram
apagadas das narrativas bíblicas, especialmente no Antigo Testamento, muitas
vezes ocultadas em estudos e narrativas judaico-cristãs. Como ela mesma diz,
esse trabalho faz uma redescoberta de um “Israel de saias”, recuperando
personagens bíblicas como Sara, Agar, Rebeca, Raquel, Lia, Tamar, Zípora,
Débora, Jael, mulher de Tebes, a filha de Jefté, Rute, Noemi, a rainha Ester,
Abigail, Rispa e outras, que foram sendo apagadas das escrituras por
interpretações e ressignificações masculinas.
Mas,
enquanto esse livro não é publicado, lembre-se aqui que Salma Ferraz é também
contista, autora de A ceia dos mortos (Blumenau, Edifurb, 2012), segunda
edição de obra que saiu em 2007 (Florianópolis, Editora Autora) e reúne seis
contos: “O capote”, “A ceia dos mortos”, “O filho do Além”, “As máscaras de
Téia”, “O rio das almas” e “Na terceira margem da estrada”.
Desses
contos, perpassados por referências bíblicas, o que dá título ao livro seria o
mais instigante, ao tentar compreender o quanto entrelaçadas estão as linhas
tênues da vida e da morte. Em outras palavras: a contista procura desenhar um
retrato vivo de quando a morte era importante, respeitada e tinha um sabor
especial. E reconstrói a vida de uma família de quatro irmãos ascetas para a
qual a morte era uma ocasião de festa, encontro, pompa e luxo, enfim, a morte seria
glamourosa. Esses agora idosos faziam parte de uma família que, no passado,
estava presente em todos os velórios. E que, por amar tanto a morte, não haviam
casado, pois “ter filhos, para eles, seria perpetuar as desgraças desta vida”.
Sem
querer adiantar o enredo e estragar a surpresa que o leitor pode encontrar
neste conto, deve-se dizer que esses irmãos viviam numa fazenda longe da
civilização e os remanescentes, à medida que um deles falecia, embalsamavam com
ervas aromáticas os mortos e os colocavam num cristaleira, simulando, porém, o
enterro deles num cemitério da própria fazenda, que abrigaria apenas caixões
vazios. Assim, “(...) em vez de ser enterrado, o morto permanecia emparedado na
cristaleira da sala principal do antigo casarão, participando de todas as
coisas na vida daquela amorosa e estranha família”.
II
No
conto que abre a obra, “O capote”, que saiu à luz inicialmente no livro Em
nome do Homem (Rio de Janeiro, Editora Sete Letras, 1999), como
confessa a autora, é inspirado em fatos, ou seja, na desdita de seu pai
alcoólatra, um quase mendigo, que ganharia da filha um casaco lindo, um
legítimo Trench Coat, vestimenta imortalizada no filme Casablanca
(1942), protagonizado por Humphrey Bogart (1899-1957). E assim a narradora se
refere ao pai: “(...). Não, ele jamais me veria chorar, jamais conheceria a
memória sepultada daquelas lágrimas, pois sempre pensei que o que havia de
melhor ou pior nas pessoas estava no passado delas. Somos desenhados pelo nosso
passado”. Como este se trata do primeiro
conto que a autora escreveu em sua vida, constata-se que aqui já se prenunciava
uma escritora de talento.
Em
“Filho do Além”, o enredo envolve um motorista de uma funerária que, certa vez,
à falta de melhores condições materiais, iria fazer amor com sua amante na
parte traseira do carro funerário, ao lado do defunto que estaria carregando
para outra cidade. E que, por uma dessas circunstâncias inexplicáveis da vida,
a mulher ficaria grávida e daria à luz um rebento que seria a cara do morto.
Já
em “As máscaras de Téia”, a narradora faz uma série de referências a várias
figuras da mitologia greco-romana, tais como Cloto, Laquesis, Vênus, Medusa,
Narciso, Vulcano, além de Galatéia e Pigmaleão, que vivem uma história de amor
na Ilha da Magia, recriando assim o passado mítico do Estado de Santa Catarina.
Nos
outros dois contos, o leitor haverá de encontrar o mesmo tom picante e sensual
e igualmente a influência de grandes poetas portugueses, como Florbela Espanca
(1894-1930) e Fernando Pessoa (1888-1935), ou ainda de romancistas como José
Saramago (1922-2010), que a autora, como renomada especialista em Literatura
Portuguesa, tem estudado com afinco e genialidade.
III
Nascida
em Ibaiti, no Norte do Estado do Paraná, Salma Ferraz (1961) graduou-se em
Letras pela Faculdade Hebraico-Brasileira Renascença de Letras de São Paulo
(Hebraica), em 1987, e especializou-se em Literatura Brasileira e Literatura
Infantil pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É mestre (1995) e doutora
(2002) em Literatura Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista (Unesp),
campus de Assis. Fez seu pós-doutorado em Literatura e Teologia na Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2008. Foi bolsista da Fundación Carolina na
Universidad Autónoma de Madrid, em 2009.
É
professora titular aposentada de Literatura Portuguesa da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, e atua na pós-graduação de
Literatura com a linha de Pesquisa Teopoética - Estudos Comparados entre
Teologia e Literatura. É membro da Associação Latino-americana de Literatura e
Teologia (Alalite), da Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic)
e da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa (Abraplip),
da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Dirige o Núcleo de Estudos Comparados entre
Teologia e Literatura (Nutel), da UFSC. É crítica e ensaísta com numerosos
artigos publicados e autora de diversos livros de crítica literária e ficção.
É
autora ainda de: Efeito melancia (Blumenau, Edifurb, 2012), contos; Nem
sempre amar é tudo (Blumenau, Edifurb, 2012), contos; Dicionário machista,
2ª. ed. (São Paulo, Geração Editorial, 2013; O ateu ambulante, 3ª. ed.
(Blumenau, Furb, 2012); O busão de Floripa (Blumenau, Edifurb, 2016); e Desmistificando
a redação, co-autoria (Florianópolis, UFSC, 1997).
É autora também de: Fernando Pessoa, Eça e Saramago (São Paulo, Cone Sul, 1998); O jeitinho brasileiro de Sherlock Holmes (Blumenau, Furb, 1998); O Rei Leão e a memória do mundo (Blumenau: Furb, 1998); A sagrada luxúria de criar (Porto Alegre, EdiPUC, 1999); O quinto evangelista (Brasília, UNB, 1999); As faces de Deus na obra de um ateu (Juiz de Fora, Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora-UFJF/Blumenau, Furb, 2004); Deuses em poética (Campina Grande, Editora da Universidade Federal da Paraíba-UFPB, 2008); No princípio era Deus e Ele se fez poesia (Rio Branco, Editora da Universidade Federal do Acre-UFAC, 2008); Maria Madalena: a mulher que amou o amor (Maringá, Editora da Universidade Estadual de Maringá-UEM, 2011); Pólen do divino (Blumenau, Furb, 2011); As malasartes de Lúcifer (Londrina, Universidade Estadual de Londrina-UEL), 2012; Dicionário de personagens da obra de José Saramago (Blumenau, Edifurb, 2012); Sois como deuses (Dourados-MS, Universidade Federal da Grande Dourados-UFGD), 2012), Humor e mau humor na Bíblia e no cristianismo (Blumenau, Edifurb, 2016), e Dicionário de personagens da obra de Paulina Chiziane (São Paulo, Editora Todas as Musas, 2019), entre outros. Adelto Gonçalves - Brasil
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A ceia dos mortos, de Salma Ferraz. 2ª edição revista e ampliada. Blumenau-SC, Editora
da Fundação Universidade Regional de Blumenau (Edifurb), 66 págs., R$ 13,80, 2012.
Site: www.furb.br/editora E-mail:
editora@furb.br
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de
São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a
Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino a Colônia e o Poder: o governo
Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros.
E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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