Marilda de Souza Francisco, 60 anos de idade, é líder do Quilombo Santa Rita do Bracuí, em Angra dos Reis, no sul fluminense. Quando era pequena, sempre ouvia do pai a história de um navio e de um traficante de escravos com detalhes curiosos.
“A
gente não sabia o nome do navio. Só sabia que tinha vindo lá da África trazendo
os negros e depois afundado. E que o capitão tinha fugido vestido de mulher.
Quando o meu pai contava essa história, até falava ‘que vergonha, um homem
vestido de mulher’. Era essa a história. A gente até achava que era uma ficção,
que alguém tinha inventado. Mas era verdade mesmo”, conta Marilda.
Relatos
como esse fazem parte da memória oral do quilombo, transmitida por escravizados
e descendentes por gerações, desde a década de 1850 até os dias de hoje. A
ajuda das comunidades quilombolas atuais foi fundamental para o avanço das
pesquisas que buscam vestígios do brigue Camargo, um navio roubado em 1851 na
Califórnia, Estados Unidos, pelo capitão Nathaniel Gordon.
Ele
viajou até Moçambique, trouxe cerca de 500 africanos escravizados para o porto
clandestino do Bracuí e afundou a embarcação em 1852, para evitar a prisão. O
tráfico, naquela época, já estava proibido no Brasil. O disfarce com roupas
femininas, como o da história, foi uma das estratégias usadas para sair
escondido do país. Deu certo por um tempo. Em 1862, ele foi o único
norte-americano enforcado nos Estados Unidos por participar do tráfico
negreiro.
As
buscas arqueológicas pelo navio começaram de forma sistemática em 2022, com a
participação de mergulhadores pesquisadores, e avançaram com a descoberta
recente de materiais que podem ser da embarcação.
“Nos
últimos dias, temos ampliado os esforços para conseguir atuar naquela área e
chegar mais rápido a esses materiais. A gente usa tecnologias oceanográficas
para tentar encontrar o Camargo. Estamos na fase de processamento de dados. A
resposta que posso dar agora é que temos encontrado materiais, mas ainda é
difícil dizer que eles são parte do Camargo. Temos que pegar cada um deles e
analisar. E também avançar nas escavações. Cada embarcação tem a sua assinatura
e precisamos fazer essa identificação”, disse Luis Felipe Freire Dantas Santos,
doutor em arqueologia e presidente do Instituto AfrOrigens, projeto de
mapeamento do tráfico transatlântico de africanos, que está à frente das buscas
pelo brigue.
Caso
os pesquisadores encontrem os vestígios do navio, a ideia é que eles continuem
no local, no fundo do mar, para serem estudados e preservados. Um dos objetivos
do projeto é estimular o envolvimento das comunidades locais em iniciativas
sociais, culturais e turísticas.
O
projeto também conta com apoio e investimentos de instituições de ensino e
pesquisa norte-americanas. É o caso da George Washington University e
do Smithsonian Institution National Museum of African American History and
Culture. Uma colaboração que
permite olhar de forma crítica para um passado comum, de escravidão e de
exploração nas Américas.
“É
muito importante que esse trabalho seja parte da comunidade local. Estamos
trabalhando juntos, mas com protagonismo deles, dos quilombolas, para que digam
como essa história deve ser contada. É uma pesquisa que ainda vai durar anos.
Mas entendemos que vai ter um grande impacto não só aqui no Brasil, mas no
mundo todo. Essa história ajuda a conectar pessoas de diferentes lugares, que
viveram problemas graves relacionados à escravidão”, disse Paul Gardullo,
professor da George Washington University.
Os
detalhes da pesquisa foram apresentados nesta sexta-feira (7), na sede do
Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. Para a diretora da instituição,
historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, eventos como esse ajudam a sociedade a
lidar com problemas do passado e atuar para combater o legado deles até os dias
atuais.
“Isso
é algo a ser revisitado em 2023, para que a gente compreenda melhor não só como
a escravidão se estruturou e tinha muitos defensores, mas como ela foi
confrontada. A partir disso, promover reflexões sobre abolicionismo, liberdade
e cidadania. A atividade de hoje marcou esses esforços de promover reparação
histórica. Devemos investir nisso para que outros crimes contra a humanidade
não voltem a acontecer. Afinal, ainda enfrentamos os ecos da escravidão no
tempo presente”, disse Ana Flávia.
Tráfico ilegal
No
contexto internacional, o tráfico de escravos foi proibido em colônias
britânicas e nos Estados Unidos a partir de janeiro de 1808. Por interesses
ideológicos, econômicos e políticos, a Grã-Bretanha passou a ser a principal
força internacional de pressão sobre outros países que mantinham as atividades
de tráfico.
O
Brasil tentava se equilibrar entre a pressão dos ingleses e os interesses dos
grandes proprietários de terras e escravos nacionais. Em 1826, em meio ao
processo de consolidação da independência brasileira, D. Pedro assina um
tratado com a Inglaterra e se compromete a tornar ilegal o comércio de
africanos e a tratá-lo como pirataria em 1830. Os protestos internos e o peso
da atividade para a economia nacional ajudam a tornar o acordo sem efeito.
Em
1831, o governo regencial do Império (D. Pedro havia abdicado do trono),
promulga a Lei Feijó, que confirma a proibição e declara liberdade de todos os
escravos trazidos ilegalmente para o país. Igualmente ignorada pelos
proprietários, traficantes e pelo próprio Estado, que não fiscalizava. Um
exemplo é que, só em 1837, entraram pelo menos 45 mil escravos nas províncias
do Rio de Janeiro e de São Paulo. A medida mais efetiva aconteceu em 1850, com
a Lei Eusébio de Queirós. O Império brasileiro, nesse período, passou a ser
mais efetivo no controle e combate ao tráfico. Mas, como o caso do brigue
Camargo comprova, algumas tentativas de desembarque clandestino foram
bem-sucedidas.
“Esses
acontecimentos falam de toda uma história abafada de omissão e cumplicidade do
governo imperial, que não punia quem cometesse o crime do tráfico de africanos
previsto desde 1831. Mais de um milhão de africanos entraram ilegalmente no
Brasil”, disse a historiadora Martha Abreu, também envolvida no projeto.
“Já
no final dos anos 1820, a fazenda de Santa Rita do Bracuí foi montada para
receber os escravizados, que não podiam mais chegar pelo Cais do Valongo, que
havia sido fechado. Na década de 1840, muitos Camargos chegaram pelo Bracuí. E
muitos africanos em péssimas condições foram mandados para as plantações de
café”.
A
proibição do tráfico não significou o fim da própria escravidão. Essa só
terminaria oficialmente em 13 de maio de 1888, quando o Brasil foi o último do
continente americano ao abolir a exploração e a tortura de africanos e
descendentes. Rafael Cardoso – Brasil in “Agência
Brasil” com “Mundo Lusíada”
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