O Brasil não é produto do acaso. Corresponde a uma convergência de fatores centrípetos e centrífugos, em que a economia, a natureza e o fator humano criaram condições para a afirmação de um território
Parece
audacioso o título que encima esta prosa. Poderá ser. É verdade que há muitas
simplificações na apreciação das relações luso-brasileiras, como por exemplo a
suposta irmandade, a coerência entre o que nos une e nos separa, a relação com
o idioma comum. A verdade, porém, é que há uma grande complexidade nos elos que
nos ligam. Não esqueço os inesgotáveis diálogos que estabeleci e estabeleço,
tantas vezes apenas espiritualmente, com o meu saudoso mestre António Cândido,
com Hélio Jaguaribe, mas também com o meu querido confrade Celso Lafer, com
Fernando Henrique Cardoso, com Alberto Costa e Silva ou com Marcos Vinicius
Vilaça.
Devo
dizer que se trata de matéria em que sou suspeito, uma vez que nasci numa
família luso-brasileira. Minha avó Leonor nasceu no Estado de Paraná, na cidade
de Paranaguá, de uma família de industriais da colonização alemã. Conheci em
casa de meus avós Jordão Emerenciano, nos anos 50, quando se vivia uma situação
dramática com a morte de Getúlio Vargas, e não esqueço a gravação de poemas de
Manuel Bandeira, que eram um regalo para o ouvido, a começar em Recife e no
reconhecimento da sabedoria de Totónio Rodrigues. Anos depois, quando estive no
Recife, corri à rua do Sol e verifiquei que ainda lá está, e não se chama
doutor fulano de tal.
Partilhando
muitas preocupações de amigos comuns, como José Carlos de Vasconcelos, gostaria
que houvesse maior presença do Brasil em Portugal e de Portugal no Brasil. E
recordo saudosamente conversas entusiasmadas com Mário Soares, José Aparecido
de Oliveira, António Alçada Baptista, Zélia e Jorge Amado. Era um tempo em que
Quincas Berro de Água fazia parte de um certo quotidiano. Com esta recordação
bem viva, todos aspiramos a que haja uma maior relevância internacional da
Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Só uma relação biunívoca e uma
compreensão das diferenças e complementaridades (ou se se quiser
suplementaridades) poderão beneficiar-nos a todos.
Longe
de idealizar as relações comuns, trata-se de partir da heterogeneidade, das
diferenças e da adaptação para delinear uma agenda de interesses e valores
comuns. Se invoquei a experiência familiar, foi para tornar claro que sempre
ouvi o teor contraditório dos debates, ora de lá, ora de cá. Tenho à entrada de
minha casa a imagem de D. Pedro, enquanto o meu amigo Hélio me levou a admirar
o papel desempenhado por D. João VI na preservação da unidade brasileira.
Conhecendo praticamente todo o território brasileiro não apenas percorri o
roteiro das reduções jesuíticas, mas também o impressionante percurso dos
Bandeirantes, com a obra de Jaime Cortesão sobre Raposo Tavares nas mãos. E
percebe-se bem a multiplicidade de fatores que contribuíram para a construção
deste imenso território – podendo perceber-se a diversidade de fatores, lendo
Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Gilberto Freyre e naturalmente
António Cândido.
De
facto, não há uma lusofonia, mas um mundo da língua portuguesa com muitas
diferenças por encontrar e descobrir. E esse mundo da língua comum alberga
várias línguas e várias culturas que devemos compreender melhor. Neste ano em
que celebramos 200 anos da independência formal brasileira e em Portugal
assinalamos a nossa primeira Constituição, não esquecemos que o Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves já existia em 7 de setembro de 1822, quando foi
dado o grito do Ipiranga, desde 16 de dezembro de 1815. O Rio de Janeiro foi
desde então capital de Império e essa circunstância definiu o novo tempo que
permitiu ao Brasil definir uma história singular que ainda hoje marca as nossas
relações.
Eis
por que tem razão de ser a referência ao Brasil como outra face de nós. Não se
trata de uma idealização, mas sim relação tornada natural, com todas as
dificuldades inerentes a uma proximidade quase familiar, com todos os encontros
e desencontros dessa paradoxal proximidade. Por isso, Eduardo Lourenço fala do
Brasil como um outro “mesmo quando o pensamos, para reforço da nossa identidade
onírica, como o outro sublimado de nós mesmos”. Eis por que precisamos uns dos
outros para nos compreendermos melhor.
A
colonização portuguesa, o tráfico de escravos e a relação com África e o papel
da população ameríndia são os fatores de formação do Brasil. As diversas
mediações articulam-se. Lembremo-nos de Diogo Álvares Correia, designado como
“Caramuru” pelos tupinambá, casado com uma índia que contribuiu para o
enraizamento da sociedade colonial. Mais do que o controlo da costa é a
descoberta do ouro que conduz ao desenvolvimento económico, desde a ocupação do
interior e aproveitamento dos rios à produção agrícola e abastecimento dos
mercados urbanos. Cana-de-açúcar, tabaco, ouro e diamantes definem a evolução
do sistema económico, bem como a exploração do pau-brasil que inicia a
desflorestação.
O
sistema político é inicialmente influenciado pelo português, com adaptações
consuetudinárias. Franceses, holandeses e espanhóis constituem uma concorrência
que permite alargar as áreas de colonização e influenciar o sistema de
transporte. Com os espanhóis há a competição de que é exemplo o caso de Colónia
de Sacramento até ao Tratado de Madrid (1750), mas a monarquia dual facilitará
a chegada ao Forte Príncipe da Beira, muito para além do meridiano de
Tordesilhas. A coesão social do sistema imperial torna-se possível graças à
circulação das elites e à influência económica dos cristãos-novos, apesar da
ocorrência de tensões – ora influenciadas pela herança holandesa no nordeste,
ora entre bandeirantes paulistas e reinóis em Minas Gerais. A Inconfidência Mineira
(1789) foi resultado do descontentamento pelo agravamento fiscal e incerteza
económica.
O
Brasil não é produto do acaso. Corresponde a uma convergência de fatores
centrípetos e centrífugos, em que a economia, a natureza e o fator humano
criaram condições para a afirmação de um território de grandes dimensões que
resistiu à fragmentação hispânica. O Padre António Vieira teve uma influência
diplomática e humanista importante. A Universidade de Coimbra foi um fator de
coesão e de prestígio para a elite intelectual. A política jesuítica face aos
índios foi um elemento estabilizador. A mitologia tupi, o candomblé como rito
afro-brasileiro, o cristianismo e o messianismo que chegaria aos Sertões, de
Euclides da Cunha, e a António Conselheiro, geraram movimentos híbridos a que
se somou a influência puritana holandesa.
Com
afirma Francisco Bethencourt: “De uma forma geral, o sistema normativo e a
religião cristã deixaram quadros de comportamento e de crença sobre os quais se
inscreveram boa parte dos desenvolvimentos contemporâneos” (Público, 8.8.2022).
Os legados que permitiram a independência de um Brasil unificado são de caráter
plural e misto com consequências contraditórias, no contexto de uma cultura na
qual destacamos a herança artística de António Francisco Lisboa (o Aleijadinho)
até à literária de Tomás António Gonzaga. G d’Oliveira Martins – Portugal in “Visão / Jornal de
Letras”
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