Dias após a publicação de um relatório de cientistas da ONU em que se confirma que o mundo está a aquecer muito depressa, o Contacto falou com Isabel Lindim, autora de Portugal, ano 2071. O livro editado em fevereiro é uma pesquisa jornalística sobre como pode um dos países europeus mais vulneráveis preparar-se para as alterações climáticas. Atualmente, Isabel Lindim é editora no novo projeto de jornalismo de investigação Setenta e Quatro
No relatório do Painel Intergovernamental para as
Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa) “Alterações Climáticas 2021: A
base da Ciência Física”, saído dia 9, define-se que sem cortes rápidos e
grandes nas emissões de gases com efeito de estufa os eventos extremos serão
catastróficos. Qual é o seu ponto de vista sobre o relatório?
Há
cada vez mais dados tanto da atmosfera quanto geológicos. O relatório confirma
o que se tem vindo a dizer, e agora com mais certeza. Mas ainda só li o
sumário. O relatório do IPCC também serve para provar que é preciso acabar com
a exploração de combustíveis fósseis que, no entanto, todos os anos atingem
novos máximos.
Está de férias em Cacela, no Algarve. Viu o incêndio que
se alastrou a partir de Castro Marim?
O
cenário que vimos da praia era apocalíptico. Ontem vivi aqui temperaturas que
nunca tinha vivido, não sei se por causa do incêndio. Se o aumento da
temperatura em relação à era pré-industrial for de 1,5º C ou 2º, como o
relatório prevê, antes de 2050, isso significa que o aumento da temperatura
aqui no sul de Portugal vai ser muito maior. Assim como nas cidades. Uma coisa
que sempre me preocupou muito é como vamos conseguir sobreviver às temperaturas
nas cidades e aos incêndios florestais. O que percebi nas entrevistas que fiz
para o livro é que a grande preocupação é que não se sabe como o corpo humano
se vai fisicamente adaptar a estas temperaturas extremas. E temos mesmo que nos preparar para isso.
Mas o futuro não faz parte do discurso político atual...
Em
termos de território e de biodiversidade, tem que se começar a pensar no
futuro. Ainda se pensa muito só no presente e em crescimento económico. 98% do
território português é privado e sempre foi tratado muitas vezes na perspetiva
da exploração. Sendo que muitas vezes temos a exploração e depois o abandono. É
o exemplo dos pinhais, dos eucaliptos, ou de culturas intensivas como o trigo.
Os cientistas já podem provar é que quanto mais trabalharmos no sentido de
criar zonas de agrofloresta e zonas intensas verdes – onde eu me encontro
agora, por exemplo – mais fácil é criar temperaturas amenas. Venho muitas vezes
para esta zona de Olhão, e é sempre muito árido. Mas houve um grupo de pessoas
que foi plantando aqui esta zona e que me permite estar aqui ao ar livre e
sentir fresco. Isto é bom não só para nos humanos, como para o próprio solo. E
este género de preocupação tem que ser constante.
Uma preocupação que ainda não entrou na política.
Não
sei se a atual geração de decisores políticos pensa nesse futuro, mas tenho
esperança que as próximas gerações sim. Já há um enorme conhecimento, não só
dos investigadores do IPCC como dos cientistas que trabalham especificamente
nas áreas da adaptação. E o setor que mais me preocupa é o da agricultura.
Continua a insistir-se muito na agricultura intensiva de
regadio, que consome muita água?
Recentemente
estive a escrever sobre recursos hídricos só na zona de Odemira, mas sei que no
resto do Alentejo e Algarve também é uma questão preocupante. Tecnologicamente
o regadio tem avançado bastante, mas é preciso ver que a agricultura consome
75% da água que se gasta em Portugal. Ao mesmo tempo não há avanços para que
toda a população tenha acesso à rede pública de água. Em Odemira, 30 % da
população está fora da rede pública de água e tem que furar – e fazer furos
pode ser muito complicado, não há garantias que se consiga água de um depósito
subterrâneo no futuro porque a chuva vai diminuir. Os aquíferos que temos têm
que ser muito bem geridos. A questão da água tem dois aspetos que me parecem
muito graves. Em primeiro lugar, toda a população tem que ter acesso à água. E
depois as infraestruturas que existem não são suficientes quer para saneamento
quer para utilização das águas. Isto vai ser um problema muito grande.
Porque não se assegura os mínimos para as populações?
O Ministério da Agricultura permite que os projetos que consomem muita água aconteçam mesmo sabendo que a água é um recurso que vai ficar escasso. No Algarve, uma pessoa pode comprar um terreno e plantar abacates. Não pode construir uma casa, mas pode plantar 100 hectares de abacates e ninguém dizer nada. E mesmo em reserva natural isto acontece. E aí, quando a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) verifica uma situação ilegal, já é tarde demais. Acaba por ir para tribunal onde as coisas arrastam-se anos. Seria mais burocracia, mas devia haver um controle do que vai ser plantado. Devia haver uma “task force” entre Ministério da Agricultura e Ministério do Ambiente para averiguar se é possível fazer aquele cultivo. E isso não existe. É uma das questões em que vemos que não há diálogo entre os dois ministérios. Há até um certo atrito. A APA é autoridade máxima sobre as águas e faz parte do Ministério do Ambiente. O Ministério da Agricultura parte do princípio de que a água vai estar sempre disponível. E depois também dizem, como já ouvi o ministro do Ambiente dizer, quando se fala que as barragens e as albufeiras estão a descer, que as albufeiras foram feitas para a agricultura. Muito bem, mas isso foi antes de termos esta situação de escassez de água. O que está em primeiro lugar? Tem que ser a população. E tem que se pensar se as estufas de produção intensiva devem existir.
O discurso do ministro do Ambiente é que está tudo muito
bem, Portugal está na linha da frente. Não é isso o que se deduz da leitura do
seu livro.
Fala-se
nisso por uma razão apenas: é que em relação às emissões de gases com efeito de
estufa Portugal reduziu bastante. A transição energética é a grande bandeira e
no que diz respeito às energias renováveis, de facto Portugal está a melhorar
bastante. E também na melhoria dos transportes públicos, por exemplo. Mas em
relação à adaptação e em relação à gestão dos recursos hídricos vivemos numa
situação caótica que não sei como vai ser resolvida. É possível dentro de pouco
tempo as pessoas abrirem a torneira e não terem água.
Isso pode acontecer daqui a quanto tempo?
Na
região de Odemira isso até pode ser daqui a dois ou três anos, para algumas
populações. É essa a perspetiva dos ambientalistas. O acesso à água é um
terreno super pantanoso e confuso. Vai haver agora um estudo da APA que vai
mostrar região a região qual a escassez. Mas isso é uma coisa que já devia ter
sido feita. E vai haver a disputa entre a água para a agricultura – e isso
vê-se sobretudo a sul do Tejo – e para consumo humano. É por isso que a
agricultura tem que ser desenvolvida no sentido da agrofloresta, para o ciclo
da água se manter e não ser tão necessário recorrer à água das albufeiras e dos
furos.
É o que acontece no caso de que fala da Herdade do Freixo
do Meio.
Exatamente. Era uma exploração intensiva de trigo. Quando um ano corria mal, não havia nada. E ao mesmo tempo estava-se a destruir o solo. E desde 1995, o Alfredo Sendim, o dono da herdade, conseguiu converter a propriedade numa zona de agrofloresta. É um exemplo. Era uma questão de ter uma terra mais rica e de isso o proteger de más colheitas, de maus anos. É o que financeiramente faz mais sentido, diversificando muito as colheiras, num sistema mais complexo, mas que ao mesmo tempo já estava a adaptar-se às alterações climáticas. Claro que ele tem muito mais resultado que outros vizinhos que fazem um cultivo intensivo ou pecuário. A Herdade do Freixo do Meio tem animais, mas que andam à solta e prestam o seu serviço num ciclo completo de natureza. É um ambiente saudável que foi sendo criado e que pode ser replicado por toda a região sul.
No seu livro há uma citação do filósofo e ambientalista
Viriato Soromenho Marques em que ele diz que o comum dos mortais não faz a mais
pequena ideia da gravidade do que se passa. Acha que mudava alguma coisa se as
pessoas tivessem uma ideia mais correta da gravidade das alterações climáticas
e da falta de preparação? A falta de conhecimento da população é um risco?
Acho que sim. Essa informação podia ser dada de forma a permitir que as pessoas visualizassem o futuro. Porque em relação às alterações climáticas, é difícil para a população em geral sentir o que vai acontecer. Não é palpável ainda. As pessoas acham normal que haja uma onda de calor. Se conseguissem transpor para 30 ou 50 anos iam ver o que vai acontecer e iriam exigir mais medidas públicas. Na área privada já há decisores que percebem o que é preciso fazer, mas em relação aos decisores públicos que têm acesso a estes relatórios, como o que foi publicado agora, esses são mais lentos a reagir.
Mas como disse no livro, a investigação científica em
Portugal está bastante desenvolvida.
Antes
da covid começámos a ver mais notícias em relação às alterações climáticas,
sobretudo a nível mundial. Mas há muitos estudos feitos cá. E os estudos são
cada vez mais localizados, por área, por regiões. Eu fiquei muito surpreendida
com o nível de investigação que se faz em Portugal e com o acesso à informação
que as câmaras, por exemplo, têm. E vivermos num país pequenino tem a vantagem
de os municípios trabalharem por iniciativa própria. Primeiro houve o
Climadapt.local e depois o adapt-local.pt , que consiste num trabalho em rede muito grande que começou
em 2015, e onde os municípios têm acesso a muita informação e começam a tomar
medidas concretas. Acho que tem que ser por aí. Não podem ter que estar à
espera que as decisões sejam a nível central. No Algarve, o presidente da
câmara e o município de Loulé trabalham muito nesse sentido. Não é fácil,
porque temos um turismo muito virado para o golfe e com as explorações
agrícolas intensivas a instalarem-se. Mas a nível local pode começar-se a
trabalhar, e as pessoas encarregues na área do ambiente têm que estar
informadas.
E estão suficientemente informadas?
A
maior parte dos investigadores com quem falei fizeram workshops e ações
de formação nos municípios. Claro que encontraram muita iliteracia, mas há
muito trabalho a ser feito. E muitos investigadores têm muito prazer nisso.
Porque vão ao encontro de situações específicas e encontram muitas pessoas nos
municípios que são muito abertas a isso. A Luísa Schmidt (uma investigadora e
comunicadora na área do ambiente) teve contatos com a população e ela foi uma
das pessoas que andaram de município em município. E ela passou-me essa noção
de que estas pessoas podem ser facilmente instruídas e fazer a mudança, porque
até já têm poder para o fazer. E ao nível do poder local pode-se também
desenvolver uma ação mais pedagógica nas escolas. Se as crianças tiverem mais consciência ambiental
vai ser muito diferente o que vão fazer, já está dentro delas o amor pela
natureza. Tenho esperança que as gerações futuras sejam mais ativas.
As cheias, os incêndios e as ondas de calor deste ano já
são suficientes para as pessoas terem noção dos impactos de um mundo mais
quente?
Há
muitas pessoas que ainda acham normal isto acontecer de vez em quando. Mas
também há muita gente que em relação a estas cheias na Europa já percebeu,
porque os media estão a dar a entender isso. Porque se nós vamos ter menos
chuva, os países do norte da Europa vão ter muito mais e podem acontecer estas
desgraças. Em Portugal vamos ter as marés vivas. E quando tivermos as primeiras
que entram por um estuário é que as pessoas vão ver quão graves as alterações
climáticas são. O que neste verão aconteceu na Europa mostra que a população
tem que acordar para uma situação mundial.
Portugal é um dos países da Europa mais vulneráveis às
alterações climáticas e que, ao mesmo tempo, é um dos países que mais pode
recuperar em termos de biodiversidade uma vez que teve uma industrialização
atrasada e portanto menos destrutiva. Acha que o seu livro conseguiu mobilizar
as pessoas para que se envolvam?
Espero
que sim, tenho recebido um feedback ótimo. E há muitas pessoas atentas e
informadas que desconheciam muitas das coisas que relatei. Foi esse também o
grande objetivo, dar esta informação de forma acessível. Perceber que não se
pode construir mais ao pé da água e que tem que se proteger a população junta à
costa, por exemplo, é um dos desafios. Mas a adaptação só é possível com
políticas públicas. Telma Miguel – Luxemburgo in “Contacto”
Isabel Lindim
nasceu em Lisboa e é jornalista. Colaborou em publicações como Grande
Reportagem, Elle, Luz ou Visão e em programas como Pop-Up, da RTP. O seu
interesse pelo Ambiente e o futuro do Planeta acentuou-se significativamente
depois de trabalhar no programa À Descoberta Com..., emitido pela SIC e
dedicado à conservação das espécies e dos ecossistemas naturais. Desde então
abraçou um dos grandes desafios do jornalismo atual: entender a crise ambiental
em que vivemos ouvindo os cientistas e transformando essa informação numa
linguagem rigorosa mas acessível a todos. WOOK
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