“A imaginação mergulhou no passado e procurou avançar para o futuro: «Vejo raiar na grande noite a Estrela que anuncia eternamente o nascimento do Menino; vejo o estábulo sem conforto onde a vaca rumina e o burro sonha; e vejo os Pais que se debruçam com ternura sobre o filho que vai remir a Humanidade. A criação do Homem e a sua redenção sobre o Amor continuam».”(artigo publicado originalmente no Diário dos Açores, na edição de 24/12/2023)
Tempo
repleto de memórias e que faz evocar na intimidade do lar e em redor da mesa
da família os nomes de todos os que já passaram pelas nossas vidas, os amigos
de longe e os amigos de perto. Os amigos das horas difíceis e os amigos das
horas alegres.
Jaime
Cortesão voltara do exílio, no Brasil, em 1957 e faleceu em 1960. O regresso
a Portugal e com residência em Lisboa, permitiu-lhe completar investigações
em arquivos nacionais e percorrer o País de norte a sul, detendo-se em tudo
quanto lhe interessava. Entretanto, teve horas de tribulação política ao ser
preso, com mais de 70 anos, em Caxias, (juntamente com António Sérgio, Vieira
de Almeida e Mário de Azevedo Gomes) por estarem a organizar uma conferência
sobre Democracia, a proferir por um deputado trabalhista britânico.
Mesmo
assim, Jaime Cortesão manteve a atividade intelectual até quase aos últimos
dias e fez, no seu último Natal (1959), uma divagação entre o humano e o
simbólico. Estávamos numa época já assinalada pelas aventuras espaciais,
cujos primórdios Jaime Cortesão acompanhou com interesse. O lançamento do
primeiro Sputnik ocorreu a 4 de Outubro de 1957 e, pouco depois, a 31 de
Janeiro de 1958, surgiu o primeiro satélite, o Explorer. O mundo inteiro,
apesar da desconfiança e o ceticismo de muitos perante estas e outras
audaciosas inovações, viria a assistir à chegada à lua. Foi a 21 de Julho
de 1969, com a nave Apollo 11. Neil Armstrong protagonizou este acontecimento
que ficou na história universal.
O
Natal de Jaime Cortesão convocou os valores e ensinamentos tradicionais.
Aprofundou as raízes de Ançã, terra onde nasceu e da qual nunca se desligou.
Ele próprio confessa a emoção que sentia das suas origens, de «uma terra
de dunas e lagunas, de bairrada e de pinhais, gândaras e pedreiras e de tão
pródigas entranhas que a sua pedra, o calcário macio de Ançã de Outil e de
Portunhos, serviu para construir retábulos, púlpitos e imagens distribuídas
através de meio Portugal».
“Nascemos
todos – escreveu – no mesmo estábulo. O melhor tesouro de cada um será
o riso das crianças, as lágrimas de ternura, a alegria sem palavras, a
bondade que brota, espontânea e gratuita como as flores na primavera».
A
imaginação mergulhou no passado e procurou avançar para o futuro: “Vejo
raiar na grande noite a Estrela que anuncia eternamente o nascimento do Menino;
vejo o estábulo sem conforto onde a vaca rumina e o burro sonha; e vejo os Pais
que se debruçam com ternura sobre o filho que vai remir a Humanidade. A
criação do Homem e a sua redenção sobre o Amor continuam».
Mas
Jaime Cortesão distinguiu-se de todos os seus contemporâneos, da Águia e da
Renascença Portuguesa de Pascoaes a Afonso Duarte e da Seara Nova, de Aquilino
a Raúl Brandão, sem esquecer Santiago Prezado, do Auto dos Pastores Brutos,
em poesias e prosas com a marca que singulariza cada um. Cortesão associou a
era espacial aos momentos alegóricos da comemoração do Natal: «O ser
terrestre conhecerá em breve outros seres. Outros Céus. Outras Terras. Outras
manhãs e ocasos múltiplos de sóis. Quando sobre nós raiarem todos os sóis
dos Céus, então os homens – ao mesmo tempo vermes da Terra e águias do
Universo – terão forças para realizar todas as promessas do Natal e ouvidos
para escutar o coro dos Anjos e a música das estrelas”. As prodigiosas
aventuras que se realizavam para além do planeta levaram o homem – interrogava
ainda – a sentir-se «desterrado do seu próprio mundo onde viveu milénios».
A
chegada à Lua constituiu uma etapa de uma exploração espacial que tem
prosseguido, nos últimos 70 anos, que não se sabe quando virá a ser
concluída, que abre ampla reflexão acerca da cultura humanista e a cultura
científica, entre as dimensões culturais, políticas e mediáticas.
Confronta-nos com dinâmicas de conflito que caracterizam a contemporaneidade.
Todas
as situações da natureza humana, neste tempo de Natal, vêm à superfície
nos dias tão íntimos, em que fantasmas reais ou imaginários andam dentro de
nós e caminham dentro de nós. Ganham um rosto de inquietação ou de
esperança, que aproxima ou separa os laços que nos prendem à terra.
António Valdemar – Portugal in “Blog de São João del-Rei”
António Valdemar - Jornalista, carteira profissional número UM; sócio
efectivo da Academia das Ciências de Lisboa.
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