Alberto
da Costa e Silva falece aos 92 anos, mas seus versos e livros ficam para sempre
I
A um tempo em que a carreira diplomática atraía muitos homens de letras e de alta cultura, Alberto da Costa e Silva (1931-2023), que nos deixou há poucos dias, foi um símbolo dessa época. Poeta de fina sensibilidade, ensaísta, memorialista e historiador, notabilizou-se especialmente como africanólogo, depois do lançamento de A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992), livro fundamental para quem quiser conhecer a história daquele continente, em que descreve povos e etnias, técnicas agrícolas e de navegação, expressões religiosas e artísticas, reinos extintos, cidades desaparecidas, costumes e crenças, línguas e dialetos, construindo “uma obra que já nasceu clássica”, na definição do crítico Wilson Martins (1921-2010).
A
sua paixão pelo continente africano, porém, deu-se muitos anos antes, ao longo
da primeira etapa de sua carreira diplomática, com a publicação de artigos em
revistas e jornais do Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Recife, Teresina,
Lisboa e Madri, cinco dos quais compõem a parte inicial de O Vício da África
e outros vícios (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1989), obra que reúne
também resenhas de livros e textos sobre pintores e escultores e ainda sobre
suas viagens e experiências vividas em sua vida cigana, de embaixada em
embaixada.
A
nossa aproximação deu-se há exatamente trinta anos, à época em que ele estava
encerrando sua passagem por Bogotá como embaixador, depois de sua nomeação para
a Embaixada em Assunção. À época, eu havia publicado em A Tribuna, de
Santos, uma recensão de A Enxada e a Lança, que, em boa hora, tive a
ideia de lhe enviar em forma de fotocópia pelo correio para a Embaixada na
Colômbia. Eu estava prestes a seguir para Portugal, com bolsa de doutoramento
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da
Fundação Calouste Gulbenkian, de Lisboa, a fim de pesquisar e preparar uma tese
sobre o poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), e ele, com destino a Assunção,
fez questão de parar em São Paulo para que almoçássemos num restaurante e me oferecer
alguns exemplares de seus livros (com as devidas dedicatórias). Aproveitou a
ocasião para me passar alguns contatos importantes, já que, de 1986 a 1990,
havia dirigido a Embaixada em Lisboa.
II
Desde
então, mantivemos esporádicos contatos por correspondência, até porque a
Internet nem havia ainda chegado por aqui. Então, à época da defesa de minha
tese de doutoramento na Universidade de São Paulo (USP), sugeri ao meu
orientador, o professor Massaud Moisés (1928-2018), que o convidasse para fazer
parte da banca. De início, modesto, ele relutou em aceitar o convite, alegando
que não dispunha de titulação acadêmica, além da graduação em 1957 pelo
Instituto Rio Branco, que desde 1945 forma os diplomatas brasileiros, embora
tivesse recebido o título de doutor honoris causa em Letras pela
Universidade Obafemi Awolowo, na Nigéria, em 1986. Foi, então, que Massaud Moisés
lhe respondeu que a Universidade levava em conta principalmente o seu “notório
saber”.
Assim,
numa tarde de outubro de 1997, Costa e Silva participou da banca, ao lado de
Massaud Moisés, do escritor e crítico Fábio Lucas e dos professores Francisco
Maciel Silveira (1947-2019) e Lênia Márcia de Medeiros Mongelli, que fora quem
me indicara àquele que seria o meu orientador. Mas o ponto alto da defesa de
tese foi mesmo a sua participação, com uma oração que encantou por sua fluência
aos poucos que tiveram a oportunidade de estar presentes, confirmando a sua
fama de orador e declamador impetuoso e erudito.
Entusiasmado,
não só aceitou escrever o prefácio como ainda convenceu a Editora Nova
Fronteira, do Rio de Janeiro, a publicar, em 1999, a tese, que “não só é uma
biografia do autor de Marília de Dirceu, a coleção de poemas líricos
mais popular da literatura de língua portuguesa”, mas “um instigante ensaio de
história social das Minas Gerais e do Moçambique da segunda metade do século
XVIII”, como observou. Por fim, considerou que Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo, “um livro escrito com o gosto de um jornalista pelo ineditismo
e pela surpresa, assenta-se na aplicação e no rigor de um scholar”.
Por
iniciativa de Costa e Silva, a Academia Brasileira de Letras (ABL) e a Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo (Imesp) publicaram, em 2012, Tomás Antônio
Gonzaga, estudo biográfico-crítico que escrevi e saiu na coleção Série
Essencial, em homenagem ao patrono da cadeira 37 da ABL. De certa forma, graças
a Costa e Silva, este livro abriu-me as portas da Imesp e acabei por publicar
por aquela editora Direito de Justiça em Terras d´El Rei na São Paulo
Colonial (2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo - 1788-1797 (2019) e a edição brasileira de Bocage:
o Perfil Perdido (2021). Aliás, por decisão extemporânea de um
governador de pouca cultura, essa obra, infelizmente, marcaria o encerramento
da Imesp como editora de livros impressos.
III
Nascido
na cidade de São Paulo, mas de origem nordestina, tendo passado a infância em
Sobral, no Ceará, e a adolescência e juventude no Rio de Janeiro, filho de
(Antônio Francisco) Da Costa e Silva (1885-1950), um dos mais importantes
poetas brasileiros do início do século XX e nome representativo da Belle
Epoque nacional, Costa e Silva, desde menino, sempre foi um exímio orador,
que declamava poemas de seu pai e de outros, além de alguns já de sua própria
lavra, como recordou o crítico Antônio Carlos Villaça (1928-2005), seu
contemporâneo de curso colegial, amigo desde então, no prefácio que escreveu
paras As Linhas da Mão (Rio de Janeiro/São Paulo, Difel, 1978). Villaça
recordou que, em 1956, no Rio de Janeiro, foram ambos visitar o poeta Manuel
Bandeira (1886-1968) em seu apartamento no edifício São Miguel, na avenida
Beira-Mar, no bairro da Glória. E que já a essa época Costa e Silva
impressionava a todos como declamador.
Como
recordou Villaça, o seu livro de estreia foi O Parque, de 1953, que
marca o seu retorno depois de uma temporada em Campos do Jordão, onde se
recuperara de uma pneumonia e da perda precoce do pai, que morrera em 1950, após
vários anos acamado, destino que marcaria sua obra poética para sempre. Dessa
época, são os versos do poema “Canção às moças tísicas” em que diz: (...) Ó
jovens que caminhais tristonhas como se chorásseis, / ide recolher a inocência
das manhãs e das rosas, / antes que soprem do sul os ventos desordenados! Depois
desse livro, viriam Alberto carda, fia, doba e cresce (1962), O
Tecelão (1962) e Livro de Linhagem (1966), que seriam reunidos em As
Linhas da Mão, com cinco sonetos rurais.
De
As Linhas da Mão, é “O Menino a Cavalo”,
considerado pelo poeta e crítico José Paulo Paes (1926-1998) “um dos poemas
mais bem logrados, jamais escritos em seu gênero, na língua portuguesa”, em que
o poeta evoca o pai doente:
A mão do meu pai sobre o papel desenha, / quase num só
traço, o menino a cavalo. / Sai de sua mão a mão com que lhe aceno, / e vai
sobre o papel o menino a cavalo. (...) / O rosto longo, e só, rasgado pelas
rugas, / o olhar a rever o que perpétuo tinha, / e que nunca me disse, em seu
pensar cortado / do dia em que vivia (no seu convívio raro / com a cadeira de
braços, o pijama, os seus pássaros, / a cinza e a rotina de estar morto,
acordado), / no papel ele unia a mão que desenhava / à mão com que acenava ao
menino a cavalo, / neste adeus em que estou, desde então, ao seu lado, / o
menino que volta, a chorar, a cavalo.
Em
seguida, viriam A Roupa no Estendal, o Muro, os Pombos (1981), edição de
autor, Consoada (1993), publicado em Bogotá, também edição de autor, Ao
lado de Vera (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997), Poemas Reunidos
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000) e Alberto da Costa e Silva: melhores poemas
(São Paulo, Global, 2007), com seleção e o prefácio “A memória acesa como
um círio”, de André Seffrin, republicado em O demônio da inquietude (Santarém-Portugal,
Rosmarinho Editora de Arte, 2023).
Dessa
safra, são ainda Le linee dela mano, tradução italiana de Adelina Aletti
e Giuliano Macchi, com estudo da professora Luciana Stegagno Pecchio,
publicado em Milão por All´Insegna del Pesce D´Oro, em 1986, e Poemas de Da
Costa e Silva e Alberto da Costa e Silva, tradução castelhana e ensaios de
Carlos Germán Belli, publicado em Lima pela editora Tierra Brasileña, em 1986.
IV
De
espírito incansável, foi extensa a sua obra também como historiador. Além do
citado A Enxada e a Lança, que teve reedições em 1996 e 2006, publicou As
Relações entre o Brasil e a África Negra, de 1822 à primeira guerra mundial,
que, depois de publicado em O Vício da África, saiu em Luanda pela
editora Cadernos do Museu Nacional da Escravatura (1996), A Manilha e o Libambo: a África e a
Escravidão, de 1500 a 1700 (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2002), Um
Rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África (Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 2003), Francisco Félix de Souza, mercador de escravos(Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 2004-2012), Das mãos do oleiro (Rio de Janeiro,
Nova Fronteira, 2005), Imagens da África: da Antiguidade ao Século
XIX, organização e notas (São Paulo, Companhia das Letras, 2012), Um
passeio pela África (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006), A África
explicada aos meus filhos (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008-2013) e,
por fim, A África e os africanos na história e nos mitos (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 2021).
Como
ensaísta nas áreas de História e Literatura, além do citado O Vício da
África, publicou Guimarães Rosa, poeta, tradução castelhana de
Nora Ronderos, Bogotá, Centro Colombo-Americano
(1992), Mestre Dezinho de Valença do Piauí (Teresina, Fundação Cultural
Monsenhor Chaves, 1998), O Pardal na Janela (Rio de Janeiro, Academia
Brasileira de Letras, 2002), Castro Alves: um poeta sempre jovem
(São Paulo, Companhia das Letras, 2006-2008) e O quadrado amarelo (São
Paulo, Imesp, 2009).
No
ensaio “As relações entre o Brasil e a África Negra, de 1822 à primeira guerra
mundial”, que consta de O Vício da África, o leitor irá encontrar uma
defesa do processo de miscigenação e uma exaltação ao “Brasil mulato e
tropical”, numa contestação ao conde de Gobineau, ministro da França no Rio de
Janeiro entre 1869 e 1870, que condenava as uniões carnais entre brancos,
indígenas e negros, que produziriam “nas classes baixas, como nas altas, uma
degenerescência do mais triste aspecto”.
Em
resposta, diz o ensaísta: “Bem podemos imaginar os desgostos que o diplomata
francês experimentaria, ao ter de lidar com os políticos do Império do Brasil,
pois alguns dentre eles, e dos mais eminentes, tinham ascendência africana,
como o visconde de Jequitinhonha, o visconde de Inhomirim e o barão de
Cotegipe, um mestiço que foi chefe de governo, na monarquia, como seriam
presidentes da República o caboclo Floriano Peixoto e os mulatos Nilo Peçanha
e, se não mentem as fotografias, Campos Sales, Rodrigues Alves e Washington
Luiz”.
V
Como
memorialista, Costa e Silva publicou Espelho do Príncipe: ficções da memória
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994), Invenção do Desenho (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 2007), e O Pai do Menino (edição de autor, 2008),
extrato dos dois livros anteriores, com tiragem de 100 exemplares. Organizou e
participou de várias antologias.
Por
tão extensa obra, merecidamente conquistou o Prêmio Camões de 2014. Já afastado
da carreira diplomática e vivendo no Rio de Janeiro, foi eleito para a cadeira de
número 9 da Academia Brasileira de Letras, em 27 de julho de 2000, tendo sido presidente
de entidade de 2002 a 2003. Em 2004, foi escolhido pela União Brasileira de
Escritores (UBE) e pelo jornal Folha de S. Paulo como o Intelectual do
Ano, recebendo o Prêmio Juca Pato. Foi também sócio correspondente da Academia
das Ciências de Lisboa.
Como
diplomata, ocupou relevantes funções em Brasília, tendo servido inicialmente
nas embaixadas em Lisboa, Washington, Caracas, Madri e Roma, antes de ser
embaixador na Nigéria (1979-1983) e cumulativamente em Cotou, Benin
(1981-1983), em Portugal (1986-1990), na Colômbia (1990-1993) e no Paraguai
(1993-1995). Em nota a propósito de seu falecimento, o Ministério das Relações
Exteriores destacou a sua valiosa e extensa contribuição diplomática que o
tornou “um dos artífices da política externa brasileira para a África”.
Viúvo,
deixou três filhos, todos vinculados ao Itamaraty – a embaixatriz Elza Maria,
casada com embaixador João André Dias Lima, e os embaixadores Antônio Francisco
e Pedro Miguel –, sete netos e uma bisneta. Foi casado com Vera Queiroz da
Costa e Silva, falecida em 2011, premiada pela tradução de O Mundo se
Despedaça (São Paulo, Companhia das Letras, 2009), romance de estreia do
nigeriano Chinua Achebe (1930-2013), um dos mais importantes da literatura
africana do século XX. A ela, dedicou os versos de Ao lado de Vera. Adelto
Gonçalves - Brasil
_______________________
Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), e O Reino a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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