O outono surgiu, pontualmente, no dia do equinócio, a 23 de setembro e vai prolongar-se até 22 de dezembro, o dia do solstício de inverno. Anoitece mais cedo. A atmosfera permanece carregada de melancolia e de angústia. Tempo de frio intenso, de chuva forte e de neve. Mais perto ou mais longe os lobos têm as guelas ávidas de sangue. Mas, por alguns dias, assistimos ao regresso das manhãs luminosas e das tardes claras e repousantes.
O
dia de São Martinho, celebrado em quase todas as regiões do País, coincide
com a opulência dos castanheiros e a variedade das castanhas. É um
espetáculo que nos transmite a energia cósmica da terra. Costumo chamar a
quinta estação do ano. Os contrastes do outono, na Beira Alta,
acentuam-se nos itinerários da serra, na profundidade dos vales, no curso dos
rios, em tudo o que define a região e as suas populações. Aquilino retratou
esta paisagem geográfica e humana, logo no início da sua carreira literária,
na Via Sinuosa, nas Terras do Demo e na Estrada de Santiago.
Manteve, na reta final, essa pujança inicial na crónica romanceada da Casa
Grande de Romarigães e no protesto vigoroso contra a situação política
nas páginas escaldantes de Quando os Lobos Uivam.
A
Beira Alta foi para Aquilino um manancial. A retrospetiva da infância e da
adolescência ficou em Cinco Réis de Gente e Uma Luz ao Longe. É a
memória dos olhos que olham e que sonham, dos ouvidos que escutam as vozes e
os rumores, de todos os sentidos despertos para o que o rodeava. Na série de
«ensaios ocasionais» (dixit António Sérgio) – para mim é o «Quinteto da
Beira» – reuniu artigos dispersos em jornais e revistas, em livros que nos
surpreendem ainda. Tais como Aldeia, Avós dos Nossos Avós, Geografia
Sentimental, O Homem da Nave, Arcas Encoiradas: a natureza na sua
diversidade, o património edificado, o perfil granítico das ruas e do
casario, o dia a dia mergulhado na continuidade da rotina.
Alberto
Correia, mestre em estudos aquilinianos, procedeu ao reencontro do «Aquilino
total», destacando o prazer da mesa e a excelência da gastronomia da
região: «Comeram-lhe à tripa forra» – escreveu Aquilino – «carniça
refogada, cozida, assada, de porco, de vaca, de chibato, carniça para todos os
paladares. O arroz estava de se trocar por um prato dele a imortalidade, o
cabrito, rechinado no espeto e picadinho do sal, até fazia cócegas no
céu-da-boca».
Trancreveu
a entrevista de Aquilino concedida a Igrejas Caeiro para a rádio onde se
orgulha da terra onde nasceu: «Sernancelhe, terra de pergaminhos», situada
no meio dos castanheiros, «árvore bonita, árvore cheia de força e de
beleza». (...) «Um castanheiro é uma cidade. É uma cidade para os
pássaros. (...) Referiu, ainda, «as pastoras, com os seus tamanquinhos,
britar o ouriço, com os britadores especiais, com a sua capuchinha para
apanhar as castanhas, todas as manhãs, quando vem um bafo de vento.»
Nos
Cinco Réis de Gente, com a minúcia dos mestres da pintura flamenga,
Aquilino já descrevera a configuração das castanhas «tão bonitas com sua
oval fantasiosa, seu sépia de veludo, tão ternas quando espreitam juntinhas
às duas, às três e até às quatro, inclusa a boneca, do ouriço
arreganhado, tão bonitas até mesmo no chão, uma das faces plana, outra
convexa à semelhança da broa no açafate».
Também
Paulo Pinto investigou o São Martinho na Beira Alta. A tradição de «abrir os
pipos» – conforme salientou – «já não está presente na cultura
sernancelhense como na década de 80 e 90 do século XX». Sobreviveu,
contudo, o ritual dos magustos. A jeropiga ganhou especial relevância.
Composta por duas partes de mosto de uva – observou Paulo Pinto – «uma parte de
aguardente e outra de açúcar, a mistura resulta numa bebida com o equilíbrio
perfeito entre a doçura e um aroma persistente a frutos secos. Nada melhor
para acompanhar as deliciosas castanhas assadas ou cozidas».
O
modo de ser e de estar do beirão – na opinião de Aquilino – consiste na «brutalidade
e melancolia, rijeza e desespero, perspetivas abstratas e um sentido da vida
muito concreto». Todavia a «cediça estagnação» interrompe-se com
a balbúrdia das feiras, a algazarra das romarias, as brigas com o varapau e a
navalha. Regala-se com volúpia das comidas e bebidas, a vitela, o cabrito, as
trutas e com o vinho da região. A existência decorre – advertiu Aquilino – «rindo,
lutando, matando, mesmo se apertados pela necessidade ou pela raiva». Em
suma: «capazes de grandes rasgos de bravura e de inesperada bondade.»
Ontem,
como hoje, esta Quinta Estação do Ano, apesar das mudanças radicais, perdura
nas reminiscências que Aquilino evocou na sua linguagem feita de heranças
vernáculas, de epicurismo e rebeldia. As narrativas e as derivas da
imaginação refletem o inconformismo militante para exaltar a terra,
caracterizar os homens, enaltecer os bichos e louvar os pássaros. É um
testemunho de Aquilino para se opor a todas as formas de sujeição e de
intervir na defesa dos valores fundamentais da liberdade. António Valdemar –
Portugal
António Valdemar - Jornalista, investigador, sócio efetivo da Academia
das Ciências
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