Os bens culturais fazem parte da história de um povo, cultura e sociedade. Sua preservação, de acordo com Lúcio Gomes Machado, serve também para entendê-la para além dos livros escritos
Em
novembro, um ostensório foi furtado da Igreja São Francisco de Paula, no centro
do Rio de Janeiro. O objeto, uma peça sacra do século 18, é usado para expor a
hóstia sobre o altar durante cerimônias religiosas. Esse não foi o único caso
registrado de roubo de bens culturais no Brasil, que ocupa o 26° na lista de
países com o maior número de bens patrimoniais extraviados.
Estima-se
que o crime de roubo de bens culturais possa ser equiparado, financeiramente,
ao comércio ilegal de armas e drogas. Em 2023, o Brasil passou a integrar o
Comitê Subsidiário da Convenção de 1970 da Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), órgão responsável por fiscalizar bens
culturais.
Bens materiais e imateriais
Segundo
o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), um bem
cultural, de acordo com as convenções internacionais, pode ser entendido como
um bem que deve ser protegido, em virtude do seu valor e sua representatividade
para determinada sociedade.
Para
Lúcio Gomes Machado, professor do Departamento de História da Arquitetura e
Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, no senso
comum, “bem” é um item herdado com valor pecuniário; porém, qualquer item –
seja ele material ou imaterial – que tenha um valor simbólico ou valor cultural
pode ser considerado um bem patrimonial.
“Vamos
dizer que você tenha uma bola de futebol que foi utilizada no campo de futebol
que serviu para marcar o milésimo gol do Pelé. A bola em si tem um valor. Mas
ela, assentando essa simbologia de um marco histórico de futebol, ela passa a
ser um bem cultural”, explica o professor. Normalmente, a nomeação “bem
cultural” é atribuída, por exemplo, a itens artísticos de grande valor, como
obras expostas em museus, edifícios – que tenham um projeto arquitetônico
especial ou que representam um momento importante da história – e igrejas, por
exemplo.
Já
os bens imateriais, como o próprio nome indica, não necessariamente existem
fisicamente. São coisas, das mais variadas naturezas, que possuem um valor
cultural atrelado. Aqui, estão contempladas práticas religiosas, práticas de
uma comunidade, jogos, técnicas de construção e até pessoas. Quando os bens
culturais materiais são protegidos por algum órgão governamental, eles estão
registrados no “livro do tombo”.
Já
os bens imateriais não podem ser tombados, mas são registrados. Entretanto, de
acordo com o professor, são itens mais complexos de serem preservados, porque
dependem da comunidade em que o bem está inserido.
De
acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio
Grande do Sul (Iphae), a expressão tombamento tem origem na estrutura
responsável por abrigar o Arquivo Público do Reino. A Península Ibérica, antes
de ser tomada pelos cristãos, abrigava os mouros, povo islâmico originado do
norte da África. No século 8, foi retomada pela cristandade, e o Castelo dos
Mouros, símbolo de poder do povo norte-africano, tornou-se o Castelo de São
Jorge, nova residência da realeza.
Posteriormente, em uma das torres do Castelo, o Arquivo Público do Reino foi instalado e passou a ser chamado de Torre do Tombo. A palavra tombo, em português, significa, de acordo com a Infopédia, “arquivo de um conjunto documental (manuscritos, livros, fotografias, impressões digitais, etc.)”. A partir desse significado, a expressão tombamento foi criada, para abarcar todo patrimônio que será inscrito no Livro do Tombo, e que será preservado e protegido por lei.
Conservação de bens culturais: uma prática histórica
O
primeiro país a estabelecer uma proteção institucional do patrimônio foi a
França, no início do século 19. Inicialmente, o objetivo do Estado era coletar
e preservar os monumentos religiosos e aristocráticos que a Revolução Francesa
tinha destruído. A partir disso, um museu com peças recolhidas de toda a França
foi montado.
Para
Machado, a construção do patrimônio é realizada para estruturar a história de
um País e registrar a “versão oficial” desses acontecimentos. No Brasil, o
primeiro órgão de preservação do patrimônio, o Iphan, foi criado em 1937,
durante a Era Vargas. A ideia de Getúlio Vargas, presidente do Brasil na época,
era construir um país com uma história significativa.
A
linha inicial do Iphan era proteger os monumentos que correspondiam aos grandes
ciclos econômicos e históricos do Brasil – aqueles que faziam referência à
cana-de-açúcar e ouro no Nordeste, às Minas Gerais, o ciclo bandeirista em São
Paulo e o ciclo de missões no Rio Grande do Sul.
Esse
modelo de preservação de monumentos excepcionais, segundo o professor,
aconteceu de maneira semelhante em todo o mundo. “Mas, ao longo do século 20,
essa prática teve uma diminuição e passou-se a fazer também a preservação das
coisas que representavam a vida da população e a economia como um todo”,
aponta.
Os
bens culturais fazem parte da história de um povo, cultura e sociedade. Sua
preservação, de acordo com Machado, serve também para entendê-la para além dos
livros escritos.
Extravio de bens culturais
O
roubo de bens culturais não é uma prática exclusiva da atualidade. De acordo
com o professor, durante os impérios coloniais, era frequente que
empreendedores e cientistas organizassem excursões para realizar escavações
arqueológicas. O fruto da coleta era dividido entre os dois e uma parte era
comercializada, enquanto outra ia para acervos de museu.
Algumas
coleções arqueológicas de Berlim, na Alemanha, e a seção de Egito do Museu do
Louvre, na França, foram formadas a partir dessas expedições, segundo Machado.
Os mármores de Elgin, que hoje em dia estão no Museu Britânico, faziam parte do
Parthenon da Acrópole. Atualmente, entretanto, um novo tópico está em
discussão: o regresso dessas obras aos seus locais de origem.
No
artigo 216 da Constituição Federal de 1988, todo patrimônio arqueológico é
parte constituinte do patrimônio cultural brasileiro, então cabe ao poder
público proteger e promovê-lo. De acordo com Machado, no Código Penal, há uma
duplicidade de punição para itens tombados que são extraviados: pelo furto do
item, que possui um valor pecuniário, e pelo fato de ele ser um bem tombado.
No
incidente de 8 de janeiro de 2023, por exemplo, indivíduos envolvidos na
depredação da Praça dos Três Poderes estão recebendo uma pena por dois
capítulos do Código Penal: um pelo dano ao patrimônio público e outro por dano
ao patrimônio protegido. “Toda Brasília faz parte de um tombamento único,
especialmente os monumentos de fundamento – uma forma usual de tratar as
arquiteturas tombadas que fazem parte da Praça dos Três Poderes e a Esplanada
do Ministério”, pontua. Beatriz Pecinato – Brasil in “Jornal
da Universidade de São Paulo” com supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela
Caldeira
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