I
Esta é uma biografia que vai muito além dos estreitos limites do gênero. Em suas páginas, constata-se que é resultado de uma admiração que já passou de meio século por Fiodor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881), o romancista e contista russo que, hoje, ombreia com grandes autores universais, como Dante Alighieri (1265-1321) e Miguel de Cervantes (1547-1616), ou outros gigantes da literatura russa, como Nicolai Gogol (1809-1852) e Alexandre Pushkin (1799-1837), ou o nosso Machado de Assis (1839-1908).
Talvez
impedido por muitos obstáculos – que incluiria a distância dos arquivos russos
–, em vez de construir uma extensa biografia semelhante à que o norte-americano
Joseph Frank (1918-2013) fez, que resultou em quatro volumes e mais de três mil
páginas, o autor desta obra, o romancista, contista e cronista Edson Amâncio
(1948), preferiu, em muitos momentos, recorrer à ficção para tentar traçar
alguns ângulos da personalidade de Dostoiévski e daqueles que conviveram com
ele, além de documentar o percurso de sua paixão literária, que teve início em
1962 quando se deparou na biblioteca pública de sua cidade natal, Sacramento,
no interior de Minas Gerais, com Recordação da Casa dos Mortos, obra
basilar do currículo dostoievskiano.
Essa
admiração pelo escritor russo aumentou quando o autor, já então estudante de
Medicina, passou a ouvir os professores de neurologia citarem Dostoiévski, que
sofria de epilepsia e que, por isso mesmo, criou vários personagens que
padeciam do mesmo mal, cujo exemplo mais significativo é o príncipe Michkin, do
romance O idiota (1869). Depois, já formado, conheceu uma biografia de
Dostoiévski e, desde então, nunca deixou de ler os livros do autor russo e ensaios,
artigos e outras obras que se referiam a ele.
Desde
então, sempre que pôde, não deixou de tentar reconstituir o périplo de Dostoiévski
pelo mundo, procurando rastros do autor em Paris, Londres, Basel, Dresden, Genebra,
Vevey, Florença, Milão, Moscou, São Petersburgo e outros lugares. Viagens que
incluíram não só uma visita ao túmulo de Dostoiévski como um encontro com um
tataraneto do escritor no Museu Literário-Memorial F. M. Dostoiévski, em São
Petersburgo, dia em que, a caminho daquele local, sofreu um acidente no metrô
que quase lhe custou a perda da perna direita, que ficara presa entre o vagão e
a plataforma, depois de uma queda provocada por um atropelo de uma multidão de
usuários. Desse tataraneto de Dostoiévski, Dmitri, o biógrafo-itinerante
receberia algumas cópias da correspondência inédita que o escritor trocara com
o poeta Apollon Máikov (1821-1897), seu fiel amigo.
II
Na
obra, além de passagens registradas ao longo dessa busca de possíveis rastros
deixados por Dostoiévski, obviamente, há muitas referências à permanência do
escritor na Fortaleza de Omsk, na Sibéria, por uma década, ou seja, quatro anos
como preso carregando grilhões de cinco quilos de ferro, por delito político de
conspiração contra o czar, e outros seis como soldado forçado do exército
russo.
No
Museu Dostoiévski, que está instalado exatamente no prédio em que o escritor
passou a última etapa de sua vida e escreveu o seu derradeiro romance – Os
Irmãos Karamazov (1879) – e o célebre Discurso sobre Pushkin
(1880), Edson Amâncio teve também a oportunidade, a convite dos diretores da
instituição, de ler sua versão para “O crocodilo”, o conto inacabado de Dostoiévski.
O
Museu fica no cruzamento da rua Kuznetchny com a rua Dostoievskogo, antiga
Iamskaïa que teve o nome alterado em sua homenagem, não muito distante da
igreja do Ícone de Nossa Senhora de Vladimir. Lá o escritor morou, sempre de
aluguel, primeiro, por um curto período, na década de 1840, e, depois, com a
família, de outubro de 1878 até o dia de sua morte, em 1881.
Foi
naquele apartamento que Dostoiévski, quando ainda solteiro, escreveu Gente
Pobre (Biédnie Liúdi), que ganhou nova edição em português, em 2011, em
tradução de Luís Avelima, pela editora Letra Selvagem. É de se lembrar que,
publicado em 1846, este romance epistolar, gênero que teve seu auge no século
XVIII, mas que já declinava à época, foi recebido de maneira entusiástica por
Vissarion Belinsky (1811-1848), renomado crítico literário russo, que previu
com acerto que o seu autor, então com 25 anos de idade, seria um dos gigantes
da literatura russa.
Mas
que espécie de homem foi Dostoiévski? O homem da mansarda, como se autodefinia?
Soturno, raivoso, perverso, de poucas palavras e gestos comedidos? Ou um homem
cercado de familiares e amigos, que sempre tinha uma palavra de encorajamento a
quem o procurava? Por este livro de Edson Amâncio, o leitor vai perceber que
Dostoiévski, se foi tudo isso, foi também homem de muitas mulheres, pois,
depois de Maria Dmitirevna (1824-?), sua primeira esposa, casou-se com Anna
Grigórievna Sinitkin (1846-1918). Em São Petersburgo, obrigado a sustentar
também a família do irmão falecido, Mikhail, acabou por ditar o romance O
Jogador para sua secretária, Anna, com quem acabaria por se casar, embora
ela fosse 25 anos mais jovem. Mas antes de se casar com Anna teve como amante
Appolinaria Súslova, contista também conhecida como Polina Súslova (1839-1918).
III
Se
este prefaciador pode acrescentar algo a uma obra tão bem imaginada e
delineada, é para recordar a visita que fez, em 2011, ao Museu Dostoiévski. Trata-se
de um típico prédio de apartamentos da São Petersburgo oitocentista, simples e
ordinário, sem nenhum mérito arquitetônico em particular, que começou a ser
restaurado em 1968 já com o objetivo de se preservar e reconstruir o
apartamento de Dostoiévski. Hoje, todos os dias, exceto nas segundas-feiras,
quando está fechado, o apartamento-museu atrai turistas e estudiosos de todas
as partes do mundo, sendo um dos locais mais visitados de São Petersburgo,
cidade que pode ser definida como um museu a céu aberto. E todo dia 2 de julho,
desde 2010, em frente ao apartamento-museu, é comemorado o Dia de Dostoiévski,
com encenações que rememoram personagens da obra do escritor.
Entra-se
no Museu por um hall no rés do chão em que estão um boxe para a venda de
livros de Dostoiévski e souvenires e um reservado de cabides em que
todos os visitantes são obrigados a deixar os seus sobretudos em dias de
inverno, o que é comum durante pelo menos dez meses do ano. Depois, sobe-se por
uma escada de poucos degraus para o espaço onde ficavam a sala de visitas e,
provavelmente, a cozinha. Acima, estão os quartos, hoje todos transformados em
espaço dedicado à memória do escritor. O museu comporta ainda uma exposição
literária consagrada à vida e à obra do autor.
O
apartamento foi restaurado não só com base em documentos de arquivo e anotações
deixadas por contemporâneos do escritor como nas memórias deixadas por sua
segunda esposa, Anna Grigórievna, autora de Meu Marido Dostoievski (Editora
Mauad, 1999, tradução de Zoia Prestes), além de fotografias que foram tiradas
um mês depois da morte de Dostoiévski.
Logo à entrada do apartamento, chama a atenção um sinete que funcionaria
como campainha para anunciar a chegada de visitas. Se não é o original da casa,
é exatamente o sinete que se usava à época.
No
primeiro andar, pode-se ver a mesa de trabalho do escritor em cima da qual,
dentro de uma redoma de vidro, está a pena de metal que ele costumava usar para
escrever suas obras. Há ainda fotocópias de manuscritos dostoievskianos. No
segundo andar, formado por seis quartos, depois do hall de entrada, há a
biblioteca e uma cozinha. Sete janelas dão para a rua Kuznetchny. De uma delas, é possível contemplar a cúpula
da igreja de Vladimir.
No
quarto que teria sido do casal, vê-se igualmente dentro de uma redoma de vidro
uma receita médica que lista os medicamentos que o epiléptico Dostoiévski usou
para combater o mal que o atacou nos últimos dias. Detalhe: a receita médica
tem a data exata do dia em que o escritor morreu. No quarto está ainda a cama,
acima da qual há uma fotografia do quadro A Madona Sistina, de Raphael
(1483-1520/21), pintado em 1513, símbolo da cidade de Dresden, capital da
Saxônia, na Alemanha, onde Dostoiévski viveu um período de sua vida. Numa
pequena mesa próxima à janela, um relógio marca o dia e a hora da morte do
escritor (28 de janeiro de 1881, 8h36).
Naquele
andar, dois quartos são dedicados à mulher do escritor. Entre o mobiliário, há
uma escrivaninha que lhe pertencia, além da sala de jantar em que se reunia
toda a família todas as noites. Em lugar de destaque, uma curiosidade: uma
pequena caixa de latão em que o escritor, fumante inveterado, costumava
acondicionar o tabaco.
IV
O
Museu dispõe de uma vasta coleção de gráficos e objetos de arte e decoração,
além de um fundo considerável de fotografias de São Petersburgo da época em que
viveu Dostoiévski. Na sala de fotografias, pode-se ainda ver a máscara
mortuária de Dostoiévski. Por ali, o visitante pode imaginar as ruas de
edifícios baixos e regulares que o escritor costumava percorrer até chegar a
sua casa. Mais adiante, há um chapéu de feltro negro que seria aquele com o
qual Dostoiévski costumava enfrentar as noites frias de São Petersburgo.
O
Museu comporta igualmente uma coleção de cartazes de teatro, programas de
adaptações de obras do escritor e um fundo de manuscritos. Boa parte do
material foi fornecido por uma sobrinha de Dostoiévski, filha de seu irmão mais
velho Mikhail (1820-1864), contista e crítico literário. Além disso, há uma
biblioteca que guarda mais de 24 mil volumes, reunindo não só edições em russo
dos livros do escritor como outras publicadas em numerosas línguas, inclusive Gente
Pobre, edição da Letra Selvagem.
Ao
lado do apartamento, está o Teatro Dostoiévski, que constitui uma parte
independente do Museu e costuma levar à cena, durante o ano, várias adaptações
de obras de Dostoiévski, que, aliás, era grande amante da arte cênica, tendo
sido amigo de diretores, atores e atrizes. Nicolai Gogol, Henrik Ibsen
(1828-1906) e outros contemporâneos de Dostoiévski também já tiveram suas obras
ali encenadas.
Antes
da Revolução Russa (1917), artigos apareceram em jornais defendendo a
necessidade de se abrir um museu em homenagem à memória de Dostoiévski em São
Petersburgo. Mas o máximo que se fez foi a colocação de uma placa comemorativa
no prédio, já em 1956. O primeiro Museu Dostoiévski surgiu em Moscou em 1928,
num prédio que abrigara o Hospital Mariinsky, onde Dostoiévski nascera e
passara boa parte da infância, já que seu pai, o médico Mikhail Andreevich
Dostoiévski (1788-1839), ali clinicava.
Durante
os anos de regime soviético, pouco se fez em São Petersburgo, então Leningrado,
porque as convicções religiosas e a ficção psicológica de Dostoiévski seriam
incompatíveis com a ideologia do marxismo-leninismo. Mesmo assim, muitos
escritores e estudiosos de sua obra não hesitaram em defender a criação de um
museu na cidade onde ele havia passado a maior parte de sua vida.
Por
recordar tudo isso e muito mais, este livro, antes de uma biografia como tantas
que já foram escritas sobre o autor russo, é uma reconstituição da trajetória
do seu autor em busca do perfil perdido de Dostoiévski. Em outras palavras: é uma
biografia reinventada, pois constitui também um exercício de ficção, como o
relato de Pavel Issáiev, enteado de Dostoiévski, filho de Maria Dmitirevna, ou
a imaginada viagem do escritor russo a Índia.
Sem
contar que, como é um renomado médico e neurocirurgião, com mestrado e
doutoramento na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), o seu autor conhece à exaustão o que provoca um ataque de
epilepsia, a sensação de conviver com a morte iminente, como deixou claro em
seu recente livro Experiências de Quase Morte (EQMs): Ciência, Mente e Cérebro
(Summus Editorial, 2021).
Por
tudo isso, o que o leitor vai encontrar aqui não é mais uma biografia de Dostoiévski,
mas, como o título da obra já anuncia, é o Dostoiévski, que a partir de muitos
fatos verídicos, saiu da imaginação de Edson Amâncio. Seja como for, o mais importante
aqui é o conhecimento que se ganha do ser humano, ou seja, de seus sentimentos,
suas expectativas de vida, suas alegrias e suas tristezas. Adelto Gonçalves
- Brasil
(*)
Prefácio do livro Meu Dostoiévski: Os Minutos Finais, de Edson Amâncio.
______________________
Meu Dostoiévski: Os Minutos Finais, de Edson Amâncio, com prefácio de Adelto Gonçalves e texto de apresentação de Aurora Bernardini. Taubaté-SP, Editora Letra Selvagem, 256 páginas, R$ 80,00, 2023. Sites: www.letraselvagem.com.br www.livrariaselvagemcom.br
E-mail: editoraelivrarialetraselvagem@gmail.com
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Adelto Gonçalves, jornalista, é mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a
Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Editorial Caminho,
2003; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra
Selvagem, 2015) e O Reino a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania
de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros.
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