Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Fundação Calouste Gulbenkian - A Incoerência dos Filósofos

Uma das obras seminais da história do pensamento, A Incoerência dos Filósofos, foi recentemente editada pela Fundação Gulbenkian. Nesta entrevista, a tradutora Catarina Belo ajuda-nos a compreender o seu contexto


Da autoria de al-Ghazali, pensador muçulmano que viveu no final do século X e princípio do século XI, a obra A Incoerência dos Filósofos foi traduzida da língua árabe por Catarina Belo, docente da Universidade Americana do Cairo. A vasta produção de al-Ghazali no campo da teologia, filosofia e mística islâmicas fez dele, de acordo com alguns estudiosos, o pensador e teólogo sunita mais influente de todos os tempos. Nesta obra, al-Ghazali promove, ao longo de uma série de discussões temáticas, um aceso debate entre a filosofia e a teologia islâmicas, vestindo a pele de teólogo para por a nu as insuficiências do pensamento filosófico. Esta obra teve bastante impacto na época, conduzindo a discussões acaloradas com outros pensadores, como Averróis, cujas teorias se inspiravam em Aristóteles.

Falámos com Catarina Belo, que traduziu também para a Fundação outro clássico da cultura árabe, A Cidade Virtuosa de Alfarabi, e que contextualizou a obra, explicando o modo como o pensamento grego e árabe se entrelaçavam intimamente no período clássico do pensamento islâmico.

Qual a importância desta obra na história das ideias?

A Incoerência dos Filósofos é uma obra muito importante porque trata do encontro e do debate entre a filosofia islâmica, que foi influenciada pela filosofia grega e helenística, e a teologia islâmica, que se baseia sobretudo no Alcorão. A obra contém dezasseis discussões temáticas sobre metafísica e quatro questões temáticas sobre filosofia natural, num total de vinte discussões. Al-Ghazali continua a ser um pensador estudado no mundo islâmico hoje, e esta é uma das suas obras mais importantes.

É uma obra que data de 1095, e que pertence ao período clássico do pensamento islâmico. Um dos seus temas fundamentais é o conceito de ortodoxia num contexto islâmico. Nela, al-Ghazali procura definir aquilo que é aceitável do ponto de vista da doutrina islâmica, e aquilo que não é aceitável.

Desse ponto de vista, o que é que o autor defende e critica?

Defende que os filósofos islâmicos não têm provas demonstrativas e conclusivas de teorias fundamentais da filosofia islâmica, como por exemplo a tese sobre a eternidade do mundo, e várias teorias sobre a natureza de Deus, tal como os filósofos a concebem.

Critica a posição dos filósofos islâmicos, em particular Alfarabi (m. 950) e Avicena (m. 1037) em relação à filosofia grega antiga, apontando que imitam a filosofia antiga, de Platão e de Aristóteles, sem se aperceberem das suas contradições, e do modo como pode contrariar a doutrina islâmica. Al-Ghazali trata estes filósofos como uma espécie de seita herética que abandonou a prática dos rituais islâmicos.

No texto introdutório a esta obra considera que al-Ghazali tornou a ligação entre a filosofia e a teologia mais forte. De que modo?

Al-Ghazali fala enquanto teólogo, mas utiliza a lógica aristotélica para atacar as posições dos filósofos, daí a convergência entre filosofia e teologia, pelo menos em termos formais. Al-Ghazali escreveu uma autobiografia em que descreve os seus estudos e a sua busca da verdade. Afirma que passou dois anos a estudar filosofia, o que incluía a lógica aristotélica. De certo modo, a posição de al-Ghazali nesta obra, A Incoerência dos Filósofos, é racionalista, não porque ele ache que a razão humana tem acesso a toda a verdade, uma vez que precisamos da revelação, mas porque procura apontar os erros dos filósofos islâmicos utilizando a lógica aristotélica, ou seja, utilizando os próprios métodos dos filósofos, sobretudo com base na razão.

Havia, então, uma proximidade entre a filosofia grega e o pensamento árabe…

Sim, a filosofia clássica ou medieval islâmica desenvolve temas e questões da filosofia grega e helenística. A maior parte das obras de Aristóteles e de outros pensadores gregos e helenísticos foi traduzida para árabe a partir de finais do século VIII em Bagdade, durante o Califado Abássida. Esse movimento de tradução significou que o pensamento grego e helenístico foi transladado para o coração do Califado e se espalhou posteriormente por todo o Califado. Essas traduções continuaram nos séculos seguintes, e, desse modo, a tradição intelectual grega e helenística teve uma influência decisiva no pensamento árabe e islâmico. A filosofia islâmica medieval ou clássica baseia-se sobretudo no pensamento antigo grego e helenístico, mas também é influenciada pelo islão.

O filósofo Averróis responde a este livro com a obra A Incoerência da Incoerência

Nessa obra, Averróis responde ponto a ponto a al-Ghazali e defende as suas próprias teorias, inspiradas na filosofia de Aristóteles. Averróis afirma que as teses propostas por Alfarabi e Avicena, e que são criticadas por al-Ghazali, se desviam das teorias aristotélicas sobre a origem do mundo, daí a necessidade de voltar ao pensamento de Aristóteles. Averróis não menciona uma obra em árabe que teve muita influência no pensamento islâmico medieval, A Teologia de Aristóteles (também já traduzida para português e editada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda), que supostamente teria sido escrita por Aristóteles, mas na realidade consistia numa tradução parcial das Enéadas de Plotino. Logo, A Teologia de Aristóteles era uma obra neoplatónica, e apesar de Averróis não estar explicitamente ao corrente das influências neoplatónicas na obra de Alfarabi e de Avicena, apercebe-se de que estes filósofos não transmitem de forma fiel o pensamento de Aristóteles. Logo, Averróis procura recuperar esse pensamento original aristotélico, que julga ser compatível com a doutrina islâmica.

Quais os desafios encontrados na tradução desta obra?

Utilizei a edição crítica de Maurice Bouyges que tem quase cem anos, mas é muito completa e é uma referência fundamental no panorama das edições das obras de al-Ghazali. Consultei também a edição de Michael Marmura, mais recente, e que apresenta poucas variações em relação à edição de Maurice Bouyges. Tanto Marmura como Bouyes têm também uma importante obra erudita sobre al-Ghazali. Fundação Calouste Gulbenkian - Portugal


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