Uma das obras seminais da história do pensamento, A Incoerência dos Filósofos, foi recentemente editada pela Fundação Gulbenkian. Nesta entrevista, a tradutora Catarina Belo ajuda-nos a compreender o seu contexto
Da
autoria de al-Ghazali, pensador muçulmano que viveu no final do século X e
princípio do século XI, a obra A Incoerência dos Filósofos foi traduzida da língua árabe por Catarina Belo, docente
da Universidade Americana do Cairo. A vasta produção de al-Ghazali no campo da
teologia, filosofia e mística islâmicas fez dele, de acordo com alguns
estudiosos, o pensador e teólogo sunita mais influente de todos os tempos.
Nesta obra, al-Ghazali promove, ao longo de uma série de discussões temáticas,
um aceso debate entre a filosofia e a teologia islâmicas, vestindo a pele de
teólogo para por a nu as insuficiências do pensamento filosófico. Esta obra
teve bastante impacto na época, conduzindo a discussões acaloradas com outros
pensadores, como Averróis, cujas teorias se inspiravam em Aristóteles.
Falámos
com Catarina Belo, que traduziu também para a Fundação outro clássico da
cultura árabe, A Cidade Virtuosa de Alfarabi, e que contextualizou a
obra, explicando o modo como o pensamento grego e árabe se entrelaçavam
intimamente no período clássico do pensamento islâmico.
Qual a importância desta obra na história das ideias?
A Incoerência dos Filósofos é uma obra muito importante porque trata do encontro e
do debate entre a filosofia islâmica, que foi influenciada pela filosofia grega
e helenística, e a teologia islâmica, que se baseia sobretudo no Alcorão. A
obra contém dezasseis discussões temáticas sobre metafísica e quatro questões
temáticas sobre filosofia natural, num total de vinte discussões. Al-Ghazali
continua a ser um pensador estudado no mundo islâmico hoje, e esta é uma das
suas obras mais importantes.
É
uma obra que data de 1095, e que pertence ao período clássico do pensamento
islâmico. Um dos seus temas fundamentais é o conceito de ortodoxia num contexto
islâmico. Nela, al-Ghazali procura definir aquilo que é aceitável do ponto de
vista da doutrina islâmica, e aquilo que não é aceitável.
Desse ponto de vista, o que é que o autor defende e
critica?
Defende
que os filósofos islâmicos não têm provas demonstrativas e conclusivas de
teorias fundamentais da filosofia islâmica, como por exemplo a tese sobre a
eternidade do mundo, e várias teorias sobre a natureza de Deus, tal como os
filósofos a concebem.
Critica
a posição dos filósofos islâmicos, em particular Alfarabi (m. 950) e Avicena
(m. 1037) em relação à filosofia grega antiga, apontando que imitam a filosofia
antiga, de Platão e de Aristóteles, sem se aperceberem das suas contradições, e
do modo como pode contrariar a doutrina islâmica. Al-Ghazali trata estes
filósofos como uma espécie de seita herética que abandonou a prática dos
rituais islâmicos.
No texto introdutório a esta obra considera que
al-Ghazali tornou a ligação entre a filosofia e a teologia mais forte. De que
modo?
Al-Ghazali
fala enquanto teólogo, mas utiliza a lógica aristotélica para atacar as
posições dos filósofos, daí a convergência entre filosofia e teologia, pelo
menos em termos formais. Al-Ghazali escreveu uma autobiografia em que descreve
os seus estudos e a sua busca da verdade. Afirma que passou dois anos a estudar
filosofia, o que incluía a lógica aristotélica. De certo modo, a posição de
al-Ghazali nesta obra, A Incoerência dos Filósofos, é racionalista, não
porque ele ache que a razão humana tem acesso a toda a verdade, uma vez que
precisamos da revelação, mas porque procura apontar os erros dos filósofos
islâmicos utilizando a lógica aristotélica, ou seja, utilizando os próprios
métodos dos filósofos, sobretudo com base na razão.
Havia, então, uma proximidade entre a filosofia grega e o
pensamento árabe…
Sim,
a filosofia clássica ou medieval islâmica desenvolve temas e questões da
filosofia grega e helenística. A maior parte das obras de Aristóteles e de
outros pensadores gregos e helenísticos foi traduzida para árabe a partir de
finais do século VIII em Bagdade, durante o Califado Abássida. Esse movimento
de tradução significou que o pensamento grego e helenístico foi transladado
para o coração do Califado e se espalhou posteriormente por todo o Califado.
Essas traduções continuaram nos séculos seguintes, e, desse modo, a tradição
intelectual grega e helenística teve uma influência decisiva no pensamento
árabe e islâmico. A filosofia islâmica medieval ou clássica baseia-se sobretudo
no pensamento antigo grego e helenístico, mas também é influenciada pelo islão.
O filósofo Averróis responde a este livro com a obra A
Incoerência da Incoerência…
Nessa
obra, Averróis responde ponto a ponto a al-Ghazali e defende as suas próprias
teorias, inspiradas na filosofia de Aristóteles. Averróis afirma que as teses
propostas por Alfarabi e Avicena, e que são criticadas por al-Ghazali, se
desviam das teorias aristotélicas sobre a origem do mundo, daí a necessidade de
voltar ao pensamento de Aristóteles. Averróis não menciona uma obra em árabe
que teve muita influência no pensamento islâmico medieval, A Teologia de
Aristóteles (também já traduzida para português e editada pela Imprensa
Nacional – Casa da Moeda), que supostamente teria sido escrita por Aristóteles,
mas na realidade consistia numa tradução parcial das Enéadas de Plotino.
Logo, A Teologia de Aristóteles era uma obra neoplatónica, e apesar de
Averróis não estar explicitamente ao corrente das influências neoplatónicas na
obra de Alfarabi e de Avicena, apercebe-se de que estes filósofos não
transmitem de forma fiel o pensamento de Aristóteles. Logo, Averróis procura
recuperar esse pensamento original aristotélico, que julga ser compatível com a
doutrina islâmica.
Quais os desafios encontrados na tradução desta obra?
Utilizei
a edição crítica de Maurice Bouyges que tem quase cem anos, mas é muito
completa e é uma referência fundamental no panorama das edições das obras de
al-Ghazali. Consultei também a edição de Michael Marmura, mais recente, e que
apresenta poucas variações em relação à edição de Maurice Bouyges. Tanto
Marmura como Bouyes têm também uma importante obra erudita sobre al-Ghazali. Fundação
Calouste Gulbenkian - Portugal
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