O
sinal toca três vezes, indicando que a peça vai começar. Mas a plateia não está
mais reunida. Agora, o público é disperso e tem o tamanho do mundo. A peça de
teatro é exibida simultaneamente em várias casas de várias cidades, no Brasil e
fora dele.
O
“Ensaio sobre a Perda” é um dos diversos espetáculos teatrais que precisaram
deixar os palcos e migrar para plataformas digitais por conta da pandemia. Na
peça, um casal recebe um comunicado de que foi contemplado em um edital que
ambos se inscreveram enquanto ainda eram casados. Apesar do término turbulento,
eles decidem retomar o projeto.
Os
teatros, por serem ambientes fechados, com pouca circulação de ar e gerarem
aglomerações, estão entre os primeiros espaços que foram fechados, no início da
pandemia, em março de 2020, no Brasil. Sem ter onde se apresentar, os artistas
precisaram se reinventar. No Dia Mundial do Teatro, celebrado no sábado (27), a
Agência Brasil conversou com atores, dramaturgos e produtores que convivem
diariamente com esse desafio.
“Exatamente
no dia que a gente ia começar o ensaio, foi anunciado o lockdown e a gente
pensou que a pandemia duraria 15 dias. Pensamos que logo retomaríamos o ensaio
presencial”, conta o dramaturgo, roteirista e ator Herton Gustavo Gratto, que
escreveu e atuou em “O Ensaio sobre a Perda”. Não foi o que aconteceu. Com
isso, a equipe teve de se reinventar: todo o preparo da peça foi feito à
distância, entre Rio de Janeiro e Mato Grosso. E a apresentação também.
“Foi
um processo muito bonito de descoberta de uma nova linguagem. A gente chegou e
era tudo mato, eu brinco. Fomos descobrindo como estar no jogo e ao mesmo tempo
manipulando e descobrindo imagens e ações. Não estamos fisicamente juntos e a
gente contracena o tempo todo olhando para o botão verde da câmera. Porque se
você olha para a outra pessoa, quem está assistindo tem a sensação de que está
olhando torto. Fomos desenvolvendo uma narrativa, um jogo, onde buscávamos usar
as limitações a nosso favor”.
A
internet, segundo Gratto, possibilitou que o espetáculo chegasse a mais pessoas
e a lugares onde antes não chegaria. Ele está com outros trabalhos
engatilhados. No sábado (27), no Dia Mundial do Teatro, estreou Moléstia,
espetáculo que já passou pelos palcos, e que agora chega às telas
Retração
e expansão
O
digital entrou definitivamente na vida da diretora Luciana Martuchelli. As
aulas e as preparações de atores que antes eram feitas apenas ocasionalmente
pelo computador, migraram de vez. “As fronteiras, que eram antes geográficas e
físicas, romperam-se. As turmas que eu faria presenciais, a grande maioria
migrou para online. Minhas turmas de preparação de ator têm [pessoas] de Porto
Alegre, Rio de Janeiro, Colômbia, Peru, Londres, Portugal”, diz.
“Acho
que existe um processo de transformação, de reinvenção, de mudanças, onde as
tradições aí estão, mas ao mesmo tempo, abrem-se possibilidades, rompeu-se o
lacre”. Luciana, é diretora da TAO Filmes – escola de atores para o teatro, televisão,
cinema e música e da Companhia YinsPiração Poéticas Contemporâneas, ambas com
sede em Brasília. Ela conta que, antes da pandemia, a companhia estava com a
agenda lotada, em turnês pela Europa e América Latina. Tudo precisou ser
interrompido.
A
produção foi revisitada. Para viajar mais, a companhia precisou enxugar grandes
produções, investir mais em espetáculos com poucos atores e equipe reduzida
para viabilizar economicamente os deslocamentos. Por isso, a pandemia trouxe de
volta um espetáculo que eles imaginaram que não voltaria a ser exibido: “Sonhos
de Shakespeare”. A peça, de 2016, precisa de uma semana apenas para ser
montada. Nela, cenas acontecem simultaneamente em um ambiente que simula uma
casa. O público fica posicionado no meio desse cenário e pode viver
experiências diferentes. O espetáculo foi filmado com cinco câmeras para que
tudo ficasse registrado. ”
Quando
veio a pandemia, os [espetáculos] pequenos, que não estavam filmados, foram
encaixotados. E esse, que pensamos que nunca mais fosse viver, foi a mais de
sete festivais nacionais e internacionais, foi comprado por [uma emissora de]
TV. Coisa da pandemia. O que vira restrição em um lugar, vira expansão em
outro”, diz Luciana.
Para
ela, os artistas têm um papel essencial nesse momento de dor, que é histórico.
“O mundo só vai saber o que foi essa época pelos artistas, por toda a produção
artística, de música, teatro, cinema, literatura. Tudo que puder, de alguma
forma, contar essa história em todos os níveis e camadas que essa história
merece ser contada”.
Redes sociais
“O
teatro parou. Os artistas não. Estamos fazendo arte, nos adaptando. Torcendo
pela volta. Não será fácil”, diz o ator Nobu Kahi, de Taguatinga, Distrito
Federal. Kahi conta que estava habituado a uma rotina de ensaio de segunda a
quinta e de apresentações nos finais de semana. Tudo mudou na pandemia. “Para
continuar fazendo arte, decidi utilizar minhas redes sociais. Fazer arte dentro
de casa”, revela.
Kahi
é ator há dez anos. Antes da pandemia trabalhava na companhia Agrupação Teatral
Amacaca, dirigida por Hugo Rodas. Acabou se licenciando da companhia, pedindo
um período sabático. Começou, então, a lecionar no ensino público a disciplina
Teatro e Cinema.
Na
internet, ele descobriu um universo distinto ao que estava habituado. “Nas
redes sociais encontrei um bom espaço para divulgar meu trabalho. Como se eu
fosse o dono do meio. Diferente do teatro, que não dá pra fazer sozinho. Na
internet eu posso alcançar o mundo dentro do meu quarto. É um local incrível.
Inspirador”. Mas, esse espaço, segundo ele, não substitui os palcos. “Teatro só
acontece ao vivo. Olho no olho. O que tempos agora são produtos audiovisuais.
Algo que flerta com o cinema”, diz.
Criação na pandemia
A
Companhia Dos à Deux já planejava iniciar uma nova criação antes mesmo da
pandemia. No entanto, logo no início do ano passado, Artur Ribeiro e André
Curti viram-se em uma imersão em casa, onde têm também uma sala de ensaio. “A
gente decidiu entrar em pesquisa, sabendo que seria diferente esse início,
porque não tínhamos data de estreia”, diz Ribeiro, que é ator e diretor da
Companhia. “Quando não se tem data de estreia, você, então, se coloca como
objeto de pesquisa. Isso para a gente foi um momento muito importante. Um
momento que a gente foi para a sala de ensaio diariamente e criamos pílulas
poéticas, expressando o que a gente estava vivendo a cada dia”, conta.
Agora,
“Enquanto você voava, eu criava raízes” já tem data de estreia, em abril de
2022. “O título entrou como uma metáfora muito bonita dentro disso tudo, porque
entre céu e terra, o que estamos buscando agora é um espetáculo de sensações e
um espetáculo muito metafórico sobre esse homem que está nessa busca tentando
driblar os seus medos num momento tão caótico, quase de fim de um tempo para
início de outro”.
A
Companhia recentemente exibiu produções online e, para manter o contato com o
público, realizou conversas após as apresentações. “A gente viu que é muito
importante, nesse momento, de alguma forma, comunicar. Para a gente foi muito
prazeroso isso e acho que de qualquer forma, essa nova maneira de comunicar vai
permanecer porque conquistamos novas plateias, que depois que acabar a pandemia
a gente vai ter que se comunicar com elas. A gente não pode simplesmente
esquecê-las”.
Ribeiro
apoia-se no teatro, nas criações, na arte, para viver cada um dos dias.
“Estamos à deriva e a gente fica jogando boias e nada até elas. Se a gente
ficar nadando no mesmo lugar, a gente vai se afogar. Então, nada um pouquinho,
joga a bóia, nada de novo. Assim a gente vai conseguir passar por isso de forma
mais lúcida, acredito eu”.
Broadway
Em
2020, a Barho Produções preparava-se para trazer para o Brasil o musical
“Barnum – O Rei do Show”. Em 2017, o enredo, apresentado na Broadway, foi
adaptado para o cinema com o filme Rei do Show, estrelado pelo ator Hugh
Jackman. O musical conta a história de Phineas Taylor Barnum, mais conhecido
como P. T Barnum, considerado um dos pioneiros do circo. No Brasil, ele será
interpretado por Murilo Rosa.
“Nossa
estreia seria em setembro de 2020. Com a chegada da pandemia, um ano atrás,
remanejamos para março deste ano, o que infelizmente não foi possível. Estamos
aguardando o caminhar da situação para entender a viabilidade e possível nova
data junto ao Teatro Opus [em São Paulo]”, diz o diretor de produção Thiago
Hofman.
Somente
em dezembro de 2020, seguindo uma série de protocolos de segurança sanitária,
foi possível realizar audições e selecionar o elenco, de 200 pessoas. “Ter
vivenciado esse processo durante a pandemia nos deu ainda mais força para
continuarmos lutando pelo projeto. Em termos de pré-produção já está tudo
praticamente pronto e, como tivemos um ano inteiro, todo o processo de criação
e planejamento foi muito bem estudado e desenvolvido”, diz.
Hofman
explica que a Barho adquiriu testes rápidos, termômetros, oxímetros, máscaras,
álcool gel, divisórias de acrílico para a testagem e acompanhamento recorrente
de toda equipe e está estabelecendo parcerias com laboratórios e empresas do
segmento de saúde na tentativa de, ainda este ano, retornar aos palcos. Uma das
saídas encontradas foi diversificar o portfólio. Eles adquiriram a licença de
uma nova peça “4000 Miles by Amy Herzog”, que conta apenas com quatro pessoas
no elenco, para minimizar os riscos. “O
que sempre nos motivou e nos motiva a continuar é o fato de levarmos a magia e
alegria ao público. Ver o brilho nos olhos no final de cada sessão é impagável!
Ficou iminente também durante esta pandemia que a cultura é de extrema
importância para a sanidade e crescimento de todo ser humano e por isso
continuaremos lutando por mais conteúdo com acessibilidade a todos”, diz.
Um ator brasileiro em Portugal
O
ator e produtor Danilo Bethon viajou para Lisboa, Portugal, em 2017, para fazer
um curso de teatro. Não gostou do curso, mas decidiu ficar na cidade e começar
a atuar e produzir. Descobriu um nicho, levar o teatro para as escolas. Algo
que, segundo ele, no Brasil é mais comum, mas, em Lisboa, era novidade. “Acabei
produzindo um espetáculo infantil e comecei a vender. Vendemos para uma escola,
que foi nosso teste. Funcionou super bem. Depois disso, outra escola pediu
outro espetáculo. Todas as escolas que íamos pediam mais e mais espetáculos”,
conta.
O
carro chefe da companhia é o espetáculo “A galinha Nanduca – Uma aventura em
Portugal”, livre adaptação da obra de Ganymédes José, sucesso no Brasil de
1983. Nela, dois palhaços, Azambuja e Zé Pelanca, contam a história de Nanduca,
uma galinha em busca de aventuras pelo mundo. “Conquistamos Lisboa com esse
espetáculo”, diz.
Foi
com a agenda cheia que a Companhia Dona Persona começou o ano de 2020. Mas, com
a pandemia, as peças começaram a ser canceladas. “As escolas fecharam, tudo foi
cancelado. Estávamos sem previsão nenhuma para nada. Estava escalado para um
filme e cancelaram as filmagens”, conta. “Vem a questão financeira. Estávamos
preparados para um ano de espetáculos. Começamos a investir nas produções
porque sabíamos que receberíamos de volta. Quando chegou a pandemia, tínhamos
investido toda a grana que a gente tinha. Sobrou um pouquinho por mês para
pagar o aluguel e comprar o básico do mercado”.
As
escolas chegaram a reabrir no final do ano e a companhia pode fazer
apresentações de natal. Mesmo a apresentação presencial precisou ser diferente,
com público reduzido. Um espetáculo que seria apresentado uma única vez na
escola, agora precisou ser apresentado até seis vezes, para que todas as
crianças, divididas em grupos menores pudessem assistir.
Bethon
tem participado de editais, conseguiu apoio para outros projetos e abriu espaço
para experimentar o teatro pelas telas. “Estamos tentando gostar, aprendendo a
gostar dessa linguagem online. A gente sabe que consegue atingir muito mais
pessoas. Mas é difícil prender a pessoa na tela do computador”, diz. Para ele,
o futuro do teatro não está tanto nas telas, mas em voltar ao início, voltar
para às ruas, como eram os primeiros espetáculos teatrais, para evitar
aglomerações em espaços fechados. “Acho que a solução vem lá de trás. Que lindo
vai ser ter mais teatro nas ruas”.
Impactos no setor
“O
impacto da pandemia é totalmente negativo. A gente não tem os palcos liberados,
não podemos nos apresentar. Nós vivemos de aglomeração. O público nada mais é
do que aglomerados que se juntam com um objetivo comum, de assistir a um
espetáculo, seja de dança, de teatro. Uma das principais, senão a principal,
profilaxia da covid-19 é o distanciamento”, diz o presidente da Associação dos
Produtores de Teatro (APTR), Eduardo Barata.
Desde
março, os teatros estão fechados em todo o país. Muitos migraram para a
internet. O retorno econômico, no entanto, de acordo com Barata, não é
suficiente para manter todas as equipes. “O setor está completamente
fragmentado economicamente. A internet se abriu como possibilidade de expressão
artística, mas não de mercantilização. Não se consegue sustentar e manter de
forma digna não apenas a cadeia produtiva criativa, mas a cadeia produtiva do
setor cultural através da internet”, diz. “A economia do setor não é mantida
através das ações que são feitas na internet. A gente não tem estrutura. As
pessoas não têm o costume de pagar”, acrescenta.
Dados
da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) indicam que o
setor de economia criativa no país, que inclui o teatro, contribui,
diretamente, para cerca de 2,61% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional e 1,8%
do total de empregos do país.
Com
a pandemia, houve a redução média de 43,9% do volume de produção das
atividades, a expectativa é que o PIB do setor encolha 31,8% em 2020 e que, em
2021, fique 4,5% abaixo do resultado de 2019. Isso significa uma perda de R$
69,2 bilhões, ou 18,2% na produção total do período. As informações são da
Pesquisa de Conjuntura do Setor de Economia Criativa – Efeitos da Crise da
Covid-19, conduzida ano passado pela Fundação Getulio Vargas (FGV) Projetos, em
parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
(Sebrae) e a Secretaria de Cultura e Economia Criativa de São Paulo.
A
pesquisa aponta também que o setor de economia criativa é composto, em grande
parte, por micro e pequenas empresas e profissionais autônomos, formalizados ou
não, que não possuem capital de giro suficiente para suportar grandes períodos
sem faturamento. Ao todo, 88,6% indicaram ter sofrido com queda do faturamento.
“Há
de se ter ações de sobrevivência para o setor cultural e artístico, para o
setor teatral. Não tem como sobreviver economicamente sem que o poder público
atue de forma expressiva e significativa para tentar manter a sobrevivência dos
profissionais da cultura e das artes”, diz Barata.
A
retomada de ações de fomento é uma das propostas para a retomada do setor
feitas na pesquisa da FGV Projetos. Os pesquisadores propõem ainda a
facilitação do acesso a crédito, a renegociação de dívidas de impostos, a
renegociação de empréstimos e créditos concedidos e a preparação para o novo
mercado de consumo pós covid-19. In “África 21 Digital” – Brasil com “Agência Brasil”
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