Luiz
Fernando Lisboa viveu em Moçambique durante vinte anos, dos quais 8 como bispo
na região de Cabo Delgado, diocese de Pemba. Brasileiro, 65 anos e destemido.
Foi preciso o Papa Francisco para convencê-lo a deixar Moçambique em fevereiro
deste ano. As ameaças de morte estavam se tornando pesadas demais. Desde 2017,
ano do primeiro grande ataque ao Norte dos extremistas moçambicanos, Lisboa
nunca deixou de falar. Ele deu voz ao povo da sua diocese, mais pobre do que os
já pobres moçambicanos, denunciando o início de uma guerra que, se não tivesse
sido ouvida por Maputo, teria posto de joelhos toda uma região do país. Eles o
chamam "a voz do povo", e estava certo. O atentado contra a cidade de
Palma em 24 de março, com dezenas de mortos, valas comuns, cabeças decapitadas
e milhares de desaparecidos e deslocados, é uma prova disso.
A
entrevista é de Raffaella Scuderi, publicada por La
Repubblica, 11-04-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis
a entrevista.
D. Luiz, quem o estava ameaçando? Os extremistas?
Não.
O governo. Recebi primeiro ameaças de expulsão, depois de apreensão de
documentos e no final de morte.
Como tem certeza de que foi o governo?
Maputo
negou a guerra desde o início. Quando o conflito e o perigo se tornaram
evidentes, ele proibiu que se falasse sobre o assunto. Impediu que os
jornalistas fizessem seu trabalho. Um repórter está desaparecido desde abril do
ano passado. Ele trabalhava para uma rádio comunitária e falava sobre a guerra.
Em sua última mensagem, disse que havia sido cercado pela polícia. A Igreja era
a única que falava sobre a situação. E isso não agradava ao governo. Acima de
tudo, não tolerava que saíssem notícias sobre o estado. Orgulho nacional,
negócios. Quando há um ano a Conferência Episcopal condenou o que estava
acontecendo em um documento, as autoridades reagiram mal, começando a jogar
lama sobre mim.
Por que Maputo está minimizando a presença do extremismo?
Eles
não querem que se fale mal do país. Apelamos ao governo para que pedisse ajuda
à comunidade internacional. Sozinho ele não pode fazer frente a isso. E nós
estamos vendo isso. O nosso apelo chegou ao Parlamento Europeu e duas comissões
pediram-me para expor a situação.
O que o Papa disse a você?
Depois
da sua visita a Moçambique, o Papa Francisco sempre acompanhou a situação de
Cabo Delgado. Em agosto do ano passado ele me ligou para dizer que estava muito
perto de nós, que estava orando por nós e que queria nos dar sua bênção. Graças
à sua intervenção, a guerra se internacionalizou. Depois de suas palavras,
muitas pessoas começaram a se interessar pela guerra. Em dezembro doou 100 mil
euros para a construção de hospitais e para os deslocados.
Conversou com ele de novo depois das ameaças de morte?
No
dia 18 de dezembro encontrei-o no Vaticano. Ele queria saber como estava a
situação. Ele evidentemente tinha mais informações do que eu. Ele sabia que eu
estava correndo riscos e me ofereceu uma transferência para o Brasil.
O que está acontecendo em Cabo Delgado?
Recursos,
multinacionais e guerras. Três coisas que você sempre encontra juntos. A
situação está piorando rapidamente. Estou em contato com muitas pessoas da
diocese de Pemba e Palma (local do ataque de 24 de março, ndr). Muitas pessoas
ainda estão escondidas nos matos. Outros conseguiram chegar a outra cidade,
Nangade. Há muitos idosos, crianças e pessoas que não sabem como sobreviver.
Disseram-me que os helicópteros contratados lançaram bombas atingindo
terroristas, mas também civis.
Você viveu muitos anos em Moçambique. De onde se origina
essa violência extremista?
Moçambique
é um dos 10 países mais pobres do mundo. E a região Norte é a mais pobre. No
ano passado presenciei uma inversão da política pública, não mais preocupada
com a população: saúde, educação. Gente pobre, sem trabalho, doentes e
analfabeta. Os jovens não têm futuro porque não podem estudar: não há escola
secundária. Uma província pobre e abandonada, embora rica. A situação ideal
para a guerra: pobreza, muitos recursos e questões étnicas. Todos os elementos
importantes para um conflito.
O que você fez?
Vários
anos atrás, alertamos o governo local e central que havia grupos que
desrespeitavam os líderes muçulmanos. O governo não prestou a devida atenção. E
esses indivíduos cresceram e se tornaram cada vez mais fortes. Até a revolta de
2017.
Se eles são ou não patrocinados pelo ISIS permanece um
mistério. Analistas afirmam que a reivindicação do califado é falsa. Qual é sua
opinião?
Os
extremistas usam o nome do estado islâmico. Mas esta não é uma guerra
religiosa. Se fosse, eles teriam nos atacado. Mas eles atacam a todos e
destroem tanto igrejas como mesquitas. Eles matam líderes cristãos e
muçulmanos. Esta é uma guerra econômica pela apropriação dos recursos naturais:
gás líquido, ouro, rubis, pedras semipreciosas. No momento, existem mais de 700
mil pessoas deslocadas e mais de 2 mil mortos.
Como vive a população? Há quem diga que não opuseram
resistência ao ataque.
Há
uma total falta de respeito pelos direitos humanos. Tanto dos terroristas
quanto do governo. A população tem medo de ambos. Extremistas roubaram uniformes
do exército, armas e alimentos. Eles se apresentam como militares. Para o povo,
é uma situação terrível. Eles veem o exército e para eles são terroristas. As
forças militares de alguma forma abusam das pessoas. Mas também os soldados são
vítimas, porque estão numa guerra em que não querem estar.
Eles descobriram recentemente um campo de gás líquido.
Bilhões de dólares foram investidos em Cabo Delgado. Estão ali os franceses, os
estadunidenses e os italianos. O que isso acarreta?
A
relação das multinacionais com a região não é boa. A maneira como essas grandes
empresas atuam não é boa. Existem leis que orientam sobre como realizar os
passos: consultas com a população, participação na discussão. Mas eles não
fazem. E a população tem que deixar suas terras. Isso cria descontentamento.
Você nunca teve medo?
Não.
Nunca deixei de falar. A Igreja é a voz dos que não têm voz. Como eu poderia
ficar calado?
Você sente falta de Moçambique?
Eu
teria ficado. Sinto muita falta. Todos os dias peço informações e falo com
amigos e missionários. E mesmo daqui procuro sempre entender como ajudar aquele
país. Pedi a todos os missionários e as missionárias da região que deixassem
Palma imediatamente.
O que você carrega no coração desses 20 anos?
O
mais bonito foi ver aquela gente tão pobre acolher outros pobres em suas casas.
Eles acolhiam duas ou três famílias, não tendo quase nada, nem espaço, nem
comida. Isso eu nunca vou esquecer. São um exemplo de compartilhamento humano. In “Instituto
Humanitas Unisinos” – Brasil com “La
Repubblica”
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