I
A Espera do Nunca Mais – uma saga amazônica, de Nicodemos Sena, romance publicado pela primeira vez
em 1999 pela Editora Cejup, de Belém, chega, em 2020, a sua quarta edição em
volume de 1112 páginas lançado pela Kotter Editorial, de Curitiba. Livro de estreia, o romance, que recupera
lendas e mitos, permeadas por mistério e sortilégio, matas e rios, igarapés e
igapós da região amazônica, rendeu ao seu autor, em 2000, o Prêmio Lima
Barreto/Brasil 500 anos, da União Brasileira de Escritores (UBE), seção do Rio
de Janeiro. E foi tema de tese de doutoramento defendida na Universidade
Federal do Amazonas (Ufam), em 2018, por Iza Reis Gomes Ortiz, professora de
Língua Portuguesa e Literatura no Instituto Federal de Rondônia (Ifro).
Resultado
de muita pesquisa, esta obra, com muita imaginação e criatividade, reconstitui
o mundo amazônico e se torna um documento-denúncia que ganha cada vez mais
importância na medida em que aquela região é assaltada e destruída por grupos
de predadores nacionais e estrangeiros que precisam colocar sua vegetação
abaixo para dar espaço ao agronegócio, especialmente às plantações de soja,
principal produto de exportação brasileiro, responsável por quase 30% do total
das vendas ao exterior feitas em 2019. E que, não raro, acabam por cooptar
autoridades para o seu trabalho de destruição da floresta e do meio-ambiente, a
partir da exploração da mão de obra semiescrava, tudo em favor do grande
capital.
Dividido
em três longas partes, o romance começa por levar o leitor a conhecer o mundo
mágico e primitivo da floresta entre a década de 1950 e a época conturbada do
regime militar (1964-1985); depois, penetra nos meandros do mundo político-econômico marcado pela
ganância dos exploradores que não hesitam em destruir o pouco que resta das
culturas primitivas, desde que haja cada vez mais espaço para plantações e
pastagem; e, por fim, a especulação do que será a Amazônia em breves anos, com
perda total de sua identidade e as consequências que a sua destruição deverá
causar ao meio ambiente de todo o planeta.
II
O
romance começa em tom triunfal com a presença do caboclo Gedeão, resultado da
chegada do sertanejo Silvestre Bagata à região amazônica em outros tempos para
se tornar o primeiro morador branco do rio Maró. A exemplo do seu inspirador
bíblico, Gedeão teria sido escolhido pelas forças divinas para resgatar a
Amazônia das mãos daqueles que tramam a sua destruição. Ele tem de lutar contra
Estefano Alves Barbosa, seu “padrinho”, o vilão da obra, representante das
forças do mal, que seria a reencarnação do explorador e militar português Bento
Maciel Parente (1567-1642), que, em 1639, comandou as chamadas ‘tropas de
resgate’, que tinham por objetivo “libertar da escravidão e salvar da morte certa os infelizes índios
aprisionados por outras tribos, subjugando-os, porém, a uma nova e mais atroz
escravidão”. E que fez fama pela crueldade com que dizimava as tribos
indígenas.
De
notar é que neste romance há também personagens femininas de grande
significado: Diana, uma espécie de reencarnação das qualidades e mistérios da
população amazônica; e Dora, a fazendeira que mandou construir uma escola em
sua propriedade para que ela mesmo desse aulas aos tapuias e aos caboclinhos da
vila de Aritapera, semeando sonhos.
Profético,
este romance a cada dia se torna mais atual, já que muitas de suas disfarçadas
previsões começam a se confirmar, a partir da chegada ao poder de velhos
representantes dos chamados “porões da ditadura” e seus prosélitos, que
insistem em esvaziar os cofres das instituições governamentais que se dedicam à
educação e à pesquisa para fomentar, através da distribuição de migalhas entre
as massas famélicas, a troco de votos de cabresto, a perpetuação de uma sociedade
injusta e cada vez mais ágrafa que, assim, nunca haverá de se organizar para
defender os seus direitos.
É
o que se deduz das palavras que encerram este livro e que, portanto, merecem
ser transcritas aqui para que o leitor tenha pelo menos uma pálida ideia do
estilo mítico e iconoclasta do autor: “(...) Enquanto mastigava o delicioso
beiju que Matilde fizera para ela, Dora pensou que Tainacã, a estrela grande,
dera aos tapuios a semente da mandioca, do milho e de outros grandes plantas
que eles não conheciam. Mas de quê adiantou? Os brancos vieram e roubaram o
futuro dos índios. Ela faria a diferença; daria algo que ninguém ia poder
tomar. Ensinaria as crianças tapuias a
lerem e escreverem, a se defenderem no mundo hostil que estava para vir, mas
também contaria as histórias antigas que os velhos gostariam de esquecer,
plantando, assim, na mente das crianças, a semente dos sonhos, para que elas,
ao crescerem, não ficassem como seus pais: À ESPERA DO NUNCA MAIS”.
Enfim,
como observa no posfácio que escreveu para esta obra o escritor Ronaldo
Cagiano, sem demérito para Márcio Souza, Dalcídio Jurandir (1909-1979), Thiago
de Mello e Ferreira de Castro (1898-1974), que produziram obras antológicas
sobre a Amazônia, Nicodemos Sena conseguiu “formular um diálogo com a natureza
desafiadora de uma região muito explorada (e agredida) pelo homem e pouco
visitada pela literatura”. É obra que veio para ficar.
III
Nascido
em 1958 em Santarém do Pará, Nicodemos Sena passou parte de sua infância entre
os índios maués, na região de fronteira entre os Estados do Pará e Amazonas. Em
1977, seguiu para São Paulo, onde teve seu primeiro emprego numa indústria
têxtil localizada no bairro do Ipiranga, vivendo num cortiço, onde conheceria
“seres da noite” semelhantes ao que povoariam seus futuros romances. Estudando
à noite, formou-se em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) e
em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Depois de passar pelas
redações de vários órgãos da imprensa paulista, no início de 2000, recebeu
convite para dirigir a redação do jornal A Província do Pará e a
principal editora de Belém, a Cejup, trabalhando na capital paraense até o fim
do ano, quando retornou ao Estado de São Paulo, mais especificamente à cidade
de São José dos Campos.
Em
2003, saiu à luz o seu segundo romance, A Noite é dos Pássaros,
igualmente recebido com entusiasmo pela crítica, publicado em forma de
folhetim, em dezoito episódios semanais, de 3 de abril a 31 de julho, no jornal
O Estado do Tapajós, de Santarém, e na revista eletrônica portuguesa
TriploV, editada pela escritora Estela Guedes. Ainda em 2003, A Noite é dos
Pássaros foi publicado em formato de livro (Editora Cejup), conquistando
neste mesmo ano o prêmio Lúcio Cardoso, da Academia Mineira de Letras e, em
2004, a menção honrosa do prêmio José Lins do Rego, da UBE, seção do Rio de
Janeiro. Já o terceiro romance de Sena, A
Mulher, o Homem e o Cão (Taubaté, LetraSelvagem, 2009), não só confirmou o
talento do escritor como se tornou também obra de referência para o estudo temático
da vida das populações marginalizadas da Amazônia (indígenas e caboclos).
Nicodemos
Sena é hoje nome reconhecido fora da Amazônia, tendo se tornado verbete na Enciclopédia
de Literatura Brasileira, direção de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa
(edição conjunta da Global Editora, Fundação Biblioteca Nacional e Academia
Brasileira de Letras, 2ª edição, 2001). Em 2007, criou a editora a
LetraSelvagem, que tem como objetivo incentivar o gosto pela leitura e promover
a linguagem literária, além de desenvolver atividades que estimulem a tomada de
consciência pelas populações, povos e etnias submetidos a qualquer tipo de
dominação.
Em
2017, publicou pela editora LetraSelvagem, com prefácio deste articulista, Choro
por Ti, Belterra!, obra escrita em
prosa poética e formada por 19 episódios, em que reconstituiu o dia em que fez
viagem de retorno às origens, em companhia de seu pai, depois de um percurso de
algumas horas pela rodovia Santarém-Cuiabá, até entrar numa estradinha de terra
que leva à Estrada Um e, enfim, às ruínas da cidadezinha de Belterra, que, na
década de 1940, foi dirigida pela Ford Motor Company, empresa do magnata
norte-americano Henry Ford (1863-1947), que, em plena Segunda Guerra Mundial
(1939-1945), tentaria fazer da extração da borracha uma atividade lucrativa,
fornecendo os pneumáticos para movimentar os veículos militares. Adelto
Gonçalves – Brasil
A Espera do Nunca Mais: uma saga amazônica, de Nicodemos Sena, com posfácio de Ronaldo Cagiano.
Curitiba-PR: Kotter Editorial, 1112 páginas, 2020. E-mail: contato@kotter.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de são Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999;
Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003),
Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e
Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (José Olympio Editora, 1981; LetraSelvagem, 2015) e O Reino, a Colônia
e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019),
entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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