A
publicação de O Reino, a Colônia e o Poder: o Governo Lorena na Capitania de
São Paulo 1788-1797, de Adelto Gonçalves, constitui um acontecimento
editorial de vulto. Estamos em presença de uma obra relevante para a
compreensão da história brasileira e portuguesa do último quartel do século
XVIII. Nela é equacionada uma época conturbada da história universal. Com
efeito, a Revolução Francesa estava omnipresente e as suas realizações
repercutiam-se de forma exponencial, dando um novo rosto à ordem social e
política. Portugal encontrava-se num período de transição – a Viradeira,
que reverteu algumas das medidas mais profundas implementadas pelo Marquês de
Pombal, entretanto caído em desgraça – e no Brasil as ideias independentistas
das elites fermentavam.
Adelto
Gonçalves perspectivou, de forma dialéctica, além das linhas de força da época,
aquelas que caracterizavam São Paulo. Sucessivamente, o leitor tem acesso ao
quotidiano multímodo e estuante de uma cidade colonial: a forma com era
exercido o poder, o diálogo entre a metrópole e a periferia, as instituições
existentes, a economia, as mentalidades e a cultura. Por outro lado, é
introduzido na mundividência de Bernardo Lorena, que governou aquela urbe
durante uma década. Para melhor problematizar o consulado daquele aristocrata,
Adelto Gonçalves analisou, ao longo de cerca de duzentas páginas, os primórdios
da Capitania de São Paulo, debruçando-se diacronicamente sobre os factos
marcantes que ali tiveram lugar.
O
escopo deste ensaio é, portanto, amplo e de extrema complexidade. Para ser
levado a bom porto era condição sine qua non que o seu autor
consultasse, de forma aturada, uma bibliografia extensa e ainda que procedesse
a um exaustivo trabalho de arquivo, aliás, como é seu timbre. Deste modo,
Adelto Gonçalves percorreu, durante anos, algumas das principais instituições
brasileiras e portuguesas, exumando documentos que «dormiam o sono dos
arquivos», cuja consulta lhe facultou matéria-prima para descrever, com rigor,
sem especulação, aquele período e para formular teses que os historiadores
vindouros não poderão deixar de ponderar atentamente. Registe-se ainda que tal
metodologia, por vezes, não é seguida por investigadores menos probos,
porquanto exige muita energia, perseverança, dispêndio considerável de tempo e uma
competência específica. Optam, na verdade, com alguma frequência, por repetir
aquilo que já foi dito e redito, nem sempre com proficiência, acrescente-se.
II
Com
a presente obra, Adelto Gonçalves revela honestidade intelectual, atributo
igualmente notório em outras obras que assinou. A consulta de inúmeros
documentos inéditos permitiu-lhe corrigir erros que a historiografia tradicional
cristalizara e abriu novos horizontes relativamente à interpretação da natureza
do colonialismo português e à forma como São Paulo estava estruturada.
Adelto
Gonçalves, natural de Santos, é mestre em Língua Espanhola e Literaturas
Espanhola e Hispano-americana, tendo-se doutorado em Literatura Portuguesa,
pela Universidade de São Paulo. Leccionou nas Universidades Paulista (Unip) e
Santa Cecília (Unisanta), bem como no Centro Universitário Monte Serrat
(Unimonte, Santos), e Centro Universitário Amparense (Unifia, Amparo). A sua
actividade estende-se, também, desde 1972, ao jornalismo, tendo colaborado,
entre outros periódicos, em O Estado de S.
Paulo, A Tribuna (Santos), Revista Época (São Paulo), Revista
Vértice (Lisboa), As Artes entre as Letras (Porto), Pravda
(Moscovo) e Jornal de Opção (Goiânia), desempenhando, actualmente, o
cargo de assessor de imprensa na área empresarial.
A
cultura brasileira e a cultura portuguesa devem muito ao labor de Adelto
Gonçalves, graças à sua extensa e relevante obra, que se espraia pela análise
de poetas consagrados como Bocage, Tomás António Gonzaga, Machado de Assis e
Fernando Pessoa; pelo ensaio histórico, como Direito e Justiça em Terras
d’el-Rei na São Paulo Colonial e o texto agora em apreço; pelo romance e o
conto (Os Vira-Latas da Madrugada, Barcelona Brasileira e Mariela
Morta). É ainda de referência obrigatória a crítica literária, que mantém
há anos, com regularidade pendular, dando a conhecer, em múltiplos periódicos,
obras de autores maioritariamente brasileiros e portugueses, contribuindo,
deste modo, para a formação e a orientação de inúmeros leitores.
III
A
sua competência e o seu magistério têm merecido o reconhecimento de várias
entidades e instituições, que lhe atribuíram galardões. Recordemos alguns:
Prémio Fernando Pessoa, da Fundação Cultural Brasil-Portugal, por O Ideal
Político de Fernando Pessoa; Prémios Assis Chateaubriand e Aníbal Freire,
da Academia Brasileira de Letras; Prémio Ivan Lins de Ensaios da União
Brasileira de Escritores e da Academia Carioca de Letras, por Gonzaga, um
Poeta do Iluminismo, que constitui a sua tese de doutoramento.
Em
suma, eis uma obra seminal, redigida num estilo límpido, profusamente anotada,
que corrige teses erróneas, problematiza e reequaciona um período determinante
da história do Brasil e de Portugal, confirmando, outrossim, a actividade
singular de um investigador com créditos há muito firmados. Daniel Pires – Portugal
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O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo – 1788-1797,
de Adelto Gonçalves, com prefácio de Kenneth Maxwell, texto de apresentação de
Carlos Guilherme Mota e fotos de Luiz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 408 páginas, R$ 70,00, 2019. Site: www.imprensaoficial.com.br
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Daniel Pires, professor, licenciado em Filologia
Germânica, é doutor em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa e diretor
do Centro de Estudos Bocageanos, de Setúbal. É autor de Fábulas de Bocage
(2000), Bocage: a Imagem e o Verbo (2015), Padre Malagrida: o Último
Condenado ao Fogo da Inquisição (2012), O Marquês de Pombal, o Terramoto
de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida (2013), Dicionário da Imprensa Periódica
Portuguesa no Século XX (1996), Dicionário Cronológico da Imprensa
Macaense no Século XIX (2016) e de ensaios sobre Camilo Pessanha, Wenceslau de Moraes e Raul Proença.
Foi responsável pela edição da Obra Completa de Bocage, publicada pela
Edições Caixotim, do Porto, entre 2004 e 2007. Organizou as Obras Completas
de Bocage: Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, publicadas pela
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de Lisboa, em 2017.
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