I
Uma
poesia que traz à tona ideias cabalistas tradicionais que desestabilizam
lógicas tradicionais e contemporâneas e, portanto, constitui uma poesia do
movimento que retorna e se renova na perspectiva do laço sem fim nem começo. É
assim que o tradutor Moacir Amâncio define, no prefácio, o labor poético do
poeta israelense Amir Or que chega pela primeira vez ao Brasil com o livro A
paisagem correta (Belo Horizonte, Relicário, 2020), traduzido diretamente
do hebraico.
É
uma poesia que alinha várias tendências, o que a torna difícil de ser
explicitada, mas que sobretudo é marcada pela sensação de incompletude, de
coisas que não se completam e não chegam ao final. Tradutor do grego clássico e
conhecedor de religiões, inclusive aquelas de cunho budista, Or coloca-se numa
posição superior diante do mundo, à imitação do Deus criador do Gênesis, mas
não pense o leitor que estará diante de um poeta indecifrável porque em sua
poesia pode-se encontrar temas tratados sob uma ótica muito pessoal que, de
certo modo, como observa o tradutor, ecoa a literatura da beat generation,
em meio a elementos orientais, cristãos e judaicos.
Aliás,
Or é autor de uma obra intitulada On the Road (2018), espécie de
homenagem ao livro de 1957 com o mesmo título traduzido como Pé na Estrada,
no Brasil, e Pela Estrada Fora, em Portugal, do norte-americano
Jack Kerouac (1922-1969), um dos líderes do movimento literário da geração
beat, que no Brasil teve como principal representante o poeta Cláudio Willer
(1940).
II
A
filiação à literatura beat fez de Or um divisor de águas na poesia
praticada em Israel porque, até pouco antes do aparecimento de sua geração, os
poetas e os escritores israelenses de um modo geral estavam ainda vinculados ao
sionismo tradicional que procurava fazer com que a construção da nação fosse
pautada por ideais coletivistas, com oportunidades para todos aqueles que
deixavam seus países de origem, imigrando para a parte que idealmente lhes
caberia naquela faixa do Oriente Médio.
Segundo
o seu tradutor, “Or já se formou num ambiente menos submetido ao peso da
sociedade ideológica”. O que não significa, porém, que tenha deixado de lado o
tom majestoso e mesmo religioso que caracteriza a poesia épica porque a
tradição ainda marca lugar em sua produção. Só que, em vez contar façanhas de
um herói que pudesse simbolizar as grandezas de sua pátria, o que o poeta faz é
realçar as vivências de anti-heróis, a partir da contemplação do novo mundo que
nasce naquela faixa que, de certa maneira, marca o surgimento do mundo judeu e,
depois, do cristão, na raiz também da cultura muçulmana.
III
Um
exemplo dessa perspectiva pessoal que Or passa ao leitor é o poema “Não longe”
que pode ser classificado mais como prosa poética: “Não longe da agitação da
rua, da hábil colmeia e do barulho do pensamento, além das torres do enxame,
além da margem pavimentada, o jorro dos rios de asfalto, / estirada aos olhos
do dia e se bronzeando, a nudez animal da cidade das gentes; / escancarada como
uma fossa, miqvê de lágrimas e pecados, Tel Aviv de fora / mas dentro,
delicia-se consigo mesma no jogo de fluxo e refluxo no baldio da areia e do
mar, no rito de mergulho e adoração ao sol, / um burburinho sem sentido faz com
que esqueçamos toda vítima / humana, todo esforço, todo heroísmo e toda oração
respondida em ato (...). Como observa o tradutor, miqvê é aqui uma
referência ao mar de Tel Aviv, comparado com um reservatório de água, em que é
feito o banho ritual judaico de purificação.
Pela
amostra acima, o leitor já pode ter uma ideia do que vai encontrar neste livro:
alguns poemas de Or constituem epigramas, que às vezes são reflexões ou
digressões, embora, em outras ocasiões, sejam textos breves. Seja como for, o
importante é que, como diz o escritor e professor universitário João Anzanello
Carrascoza, que assina o texto de apresentação do livro, a beleza da poesia de
Or “está acima das explicações”. E que pode ser resumida na frase inicial do
poema “Lembrança. O fora é rasgado de dentro dele” em que ele diz: “(...) o
poema é memória, como sol/ que fica no olho após a olhadela no sol; assim / é o
poema, verso após verso (...).
IV
O
poeta Amir Or (1956), nascido em Tel Aviv, estudou religião comparada na
Universidade Hebraica de Jerusalém, onde, mais tarde, foi professor de grego e
religião. É também romancista, tradutor de poesia erótica grega, ensaísta e
editor, além de ativista cultural, tendo organizado vários festivais. Criou a
publicação Helicon, da qual surgiu a Escola de Poesia Árabe-Hebraica.
Coordenou
o programa Poetas pela Paz, patrocinado pela Organização das Nações Unidas
(ONU), que reuniu escritores árabes e israelenses. Recebeu os mais importantes
prêmios literários de seu país e tem sido convidado a fazer conferências sobre
escrita criativa em universidades de Israel, Europa, Estados Unidos e Japão.
Viveu alguns anos no Japão e atualmente reside em Tel Aviv.
É
autor de treze livros de poesia em hebraico, dois romances e onze livros de
traduções para o idioma hebreu. Um de seus livros mais conhecidos é A Canção
de Tahira (2001), ficção épica em prosa métrica. Também atua como ensaísta
e tem sido reconhecido como uma das principais vozes da nova geração. Suas
obras foram publicadas em mais de 50 idiomas. É autor de The Madman's
Prophecy (2012), Loot (poemas), Child (2018) e Discourse,
ensaios (2018), entre outros. Em 2015, publicou o romance The Kingdom
sobre a vida do rei Davi e a sociedade contemporânea.
Já
o tradutor Moacir Amâncio (1949), nascido em Espírito Santo do Pinhal-SP, poeta
e professor de Literatura Hebraica na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), estreou na literatura com a
novela O Saco Plástico (1974), que foi seguida pela prosa fragmentária
de Estação dos Confundidos (1977). Jornalista, passou a maior parte de sua
vida profissional nas redações dos jornais Folha de S. Paulo, O
Estado de S. Paulo, Gazeta Mercantil e O Globo e das revistas
Visão e Shalom. Foi correspondente do Estadão em Israel.
Publicou
os livros de contos O Riso do Dragão (1981) e Súcia de Mafagafos
(1982). Mas, a partir de 1993, rendeu-se de vez à poesia com o livro Do objeto
útil, que lhe valeu o Prêmio Jabuti. Em Figuras na Sala (1996), fez uma
homenagem à melhor tradição modernista brasileira, assumindo-se como herdeiro
do impulso poético de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João Cabral de
Melo Neto (1920-1999).
Em
1997, publicou um livro de reportagens e artigos, Os Bons Samaritanos e
Outros Filhos de Israel. Logo voltou à poesia com O Olho do Canário
(1998). Em 1999, deu à luz Colores Siguientes em que reuniu poemas
escritos em castelhano. É o livro que marca o início de uma série de
peregrinações poliglotas, que vão atingir o seu auge com Abrolhos (2007)
em que várias composições estão escritas em hebraico. Publicou ainda o livro de
poemas Kelipat Batsal (Book Link, 2005), que também foi impresso em
ousada edição da antiga e histórica revista de literatura e arte Et Cetera,
nº 5, de Curitiba.
Em
Ata (Record, 2007), reuniu seis livros de poemas publicados até então e
outros inéditos. Publicou também Yona e o Andrógino — Notas
Sobre Poesia e Cabala (Nankin/Edusp, 2010), que aborda a obra da poeta
israelense Yona Wollach (1944-1985), além de uma antologia de poemas do israelense
Ronny Someck (1951), intitulada Carta a Fernando Pessoa (Annablume,
2015).
Depois,
em Contar a Romã prestou homenagem ao idioma de Cervantes (1547-1616).
Em 2001, publicou sua tese de doutoramento, Dois Palhaços e uma Alcachofra —
Uma Leitura do Romance ‘A Ressurreição de Adam Stein’ de Yoram Kaniuk
(Nankin), na qual discute as diferentes formas de se ver o Holocausto em estudo
sobre a obra do escritor israelense Yoram Kaniuk (1930-2013). Sua tradução
anterior é o volume de poemas Terra e Paz, do poeta israelense Yehuda
Amichai (1924-2010), publicada pela Bazar do Tempo em 2018.
Também
traduziu Badenheim 1939 (2012), livro de Aharon Appelfeld (1932-2018), e
participou da tradução dos poemas da poeta israelense Tal Nitzán (1960),
incluídos no livro O Ponto da Ternura (2013). É autor ainda de O
Talmud, tradução de trechos e estudos (1995), e organizador de Ato de
Presença: Hineni (2005), coletânea de ensaios em homenagem à professora
Rifka Berezin, da FFLCH/USP. Em 2016, publicou Matula (Annablume), seu
sétimo livro de poesia.
Uma
série de poemas hebraicos medievais e contemporâneos, traduzidos por Moacir
Amâncio, saíram neste ano na monumental antologia Pelo Tejo vai-se para o
mundo, sob coordenação geral da professora Helena Buescu, da Universidade
de Lisboa, publicada pela editora Tinta da China, em Portugal. Adelto
Gonçalves – Brasil
A paisagem correta, de Amir Or, com tradução, prefácio e organização de
Moacir Amâncio. Belo Horizonte, Relicário, 76 páginas, R$ 38,00, 2020.
________________________________________________
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura
Portuguesa pela USP e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (José Olympio
Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Sem comentários:
Enviar um comentário