I
Para
marcar uma trajetória literária de mais de meio século, o poeta goiano Gabriel
Nascente (1950) lançou, em 2019, Galáxia dos dias, uma caixa com quatro
volumes com mais de mil páginas cada um, com poemas de toda uma vida, revisados
e até ampliados. Publicada pela Editora Kelps, de Goiânia, a coletânea reúne a
obra do poeta em verso e prosa de 1966 até 2019, ao menos aquela publicada em
livros, inclusive os primeiros que estavam esgotados e não são encontrados nem
mesmo em alfarrábios, ainda que de fora tenham ficado muitos poemas esparsos
que saíram em revistas, jornais e antologias.
Enfim,
trata-se de uma extensa coletânea que vai de Os gatos (1966) até Nunca
lhe direi adeus (2018), que marcam a produção de quem fez da poesia um
“instrumento para melhor compreender o mundo, dissecá-lo, fazendo-o avançar ou
retroceder às origens clássicas, com
deuses e deusas, mas sempre dando ao homem a sua exata dimensão”, como bem
observa no prefácio ao primeiro volume o professor Adovaldo Fernandes Sampaio,
linguista e ensaísta, autor de Letras e memória – uma breve história da
escrita (São Paulo, Ateliê, 2010), entre outras obras.
É
de se lembrar que, para comemorar os seus 40 anos de poesia, Gabriel Nascente
já havia lançado Inventário poético (2005), pela Editora Alternativa,
também de Goiânia, em bem cuidada edição que reuniu o melhor de sua produção
até então, de acordo com seleção feita por Aidenor Aires e Vera Maria Tietzmann
Silva, que também foi responsável pela organização e pelo texto introdutório.
Ao mesmo tempo, lançou com o apoio cultural da Central dos Concursos, de
Goiânia, Um poeta em ação (2005), que contém sua biografia e fortuna
crítica, com o qual chegou a sua 40ª obra publicada, o que resulta na média
impressionante de um livro editado por ano de atividade literária.
Não
se sabe de outro poeta que tenha alcançado tamanho volume de trabalho. Quinze
anos depois, o balanço registra 49 livros de poesia, aos quais se deve
acrescentar mais 14 de outros gêneros. Sem contar ainda os ensaios críticos
sobre a sua obra escritos pelo grande escritor português Joaquim de Montezuma
de Carvalho (1927-2008), reunidos em A poesia de Gabriel Nascente,
publicado em 2008 pela Editora Kelps.
É
verdade que quantidade não significa qualidade, mas esta é uma observação
injusta quando se trata do fazer poético de Gabriel Nascente, marcado
principalmente por uma preocupação existencial extravasada por um lirismo não
muito comum na literatura brasileira. E que já se constata em suas primeiras
manifestações poéticas, como se pode comprovar com o poema “Antes do abismo”,
de Os gatos: Deste muro/ mal acabado pelos séculos,/ desta calçada
estreita/ fechada pelo lodo,/ eu saí à procura/ da rosa sedutora,/ atordoado de
medo,/ mas airoso de Cristo/ em mim,/ (de chutar pedras/ na cara do mundo)./
Fui crescendo/ na medida dos homens. / Fui diminuindo/ na ausência de Deus./
Mostrei/ meu reboque de amor./ Mostrei/ minha alma/ de amar estrela.
II
Na
produção de Gabriel Nascente, em muitos poemas, a natureza assume reações
humanas, valendo-se o autor de uma figura de linguagem, a prosopopeia ou
personificação, que só grandes mestres da literatura sabem como utilizar em seu
maior grau de transcendência, atribuindo qualidades humanas a personagens
não-humanos, ao transferir para árvores seus próprios traços psicológicos, como
se vê nos versos de "A palmeira de Morrinhos", que faz parte do livro
Os passageiros (1979): “(...) A palmeira de Morrinhos/ tem silêncio
de que dormiu/ com as águas. O rosto sempre virado/ para os lábios da brisa”.
Ou nos versos de “As bananeiras”, que consta do
livro Ventania (1995): “(...) As bananeiras estão fartas e amarelas de
fadiga./ Mas quando nas madrugadas as ventanias/ são impiedosas a ponto de
maltratá-las,/ elas ficam a chorar de inveja dos telhados,/ porque abaixo dos
telhados há corações,/ relógios e cobertores./ E por baixo das bananeiras, não
(...)”.
Ou
ainda nos versos de “O rio é uma flauta”, que faz parte de Cora, a pitonisa
da ponte (Kelps, 2006), livro em homenagem a poeta Cora Coralina
(1889-1985): “Ali é onde o rio/ vai à forca./ O parto de suas águas/ vem do
oco das pedras./ E o rio, como um pulmão,/ arma seus abismos/ das vidas sem
retorno. O rio é estrela rolando/ como o viver/ é pesado e fundo e leve/ na
carne dos cardumes./ Manso como a sandália/ ou a casca de uma fruta/ o rio é
ermo, espremido./ E suspira longo/ num corredor de terra./ O mistério de suas
águas/ é tão leve como a cinza:/ o rio é levado pelas asas/ de outro rio (...)”.
Por
aqui se vê que, a exemplo do que notou o professor Leodegário A. de Azevedo
Filho (1927-2011) no opúsculo “Fernando Pessoa, seus heterônimos e a emergência
do novo” (Porto, 2008), em relação ao heterônimo Álvaro de Campos, a poesia de
Gabriel Nascente busca assumir a libertação plena da metáfora, “ao sabor das
mais desencontradas sensações subjetivas”, o que o faz buscar dar vida às
“personagens” não-humanas, com a prevalência do verbo sentir sobre o
verbo pensar. Obviamente, Gabriel Nascente como poeta tem numerosas
faces, como poderá comprovar quem fizer a longa travessia por estes quatro
volumes, mas, seja como for, o que da imensa maioria destes versos sairá sempre
será essa simultaneidade de sensações que, a rigor, caracteriza o seu ideal
poético.
III
Filho
de um marceneiro, um dos pioneiros na construção de Goiânia, Gabriel Nascente é
ainda hoje funcionário público, servindo como assessor cultural da presidência
do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Atuou profissionalmente também no
jornalismo, mas não se limitou às experiências vivenciais e profissionais em
sua terra: passou uma longa temporada em São Paulo, onde trabalhou na Editora
Martins como redator de textos de “orelhas” de livros de autores famosos, deu
aulas em cursinhos de pré-vestibular e trabalhou na redação da Folha de S.
Paulo.
Quando
deixava a redação do jornal, na alameda Barão de Limeira, no centro da capital
paulista, aproveitava para vender exemplares de seus livros nas noites
paulistanas. Como o poeta português Manuel Maria de Barbosa du Bocage
(1765-1805) e o russo Vladimir Maiakovski (1893-1930), a quem confessadamente
procurou imitar em muitos de seus poemas, sempre teve a mania de ir aos bares e
cafés à noite não só para declamar os seus versos como para vendê-los, pois
muitas das edições de seus muitos livros foram pagas à gráfica com seus
próprios recursos, o que exigiu esforços redobrados para recuperar o capital
investido.
Em
Goiânia, fez o jardim da infância e o curso primário no Instituto Araguaia e
concluiu o ginásio industrial pela Escola Técnica Federal de Goiás, onde
estudou também o curso de Eletrotécnica, equivalente ao científico, mas não fez
estudos universitários. Aos 16 anos, publicou seu primeiro livro de poesias, Os
gatos, mas não deixou de incursionar por outros gêneros, como ensaio,
ficção, reportagens, narrativas, crônicas e poesia.
Durante
o regime militar (1964-1985), chegou a morar em Buenos Aires e Montevidéu, na
clandestinidade. Por essa época, em 1975, o poeta Dilermando Rocha, do Centro
de Estudos Brasileiros, de Buenos Aires, traduziu para o espanhol o seu livro El
llanto de la tierra, publicado em 1999, em Concepción, no Chile. Tem poemas
traduzidos e publicados em diversos idiomas, dos Estados Unidos a Grécia, com
extensa participação em jornais, revistas e antologias brasileiras e
estrangeiras.
Foi
editor de diversas revistas e jornais de Goiânia, destacando-se principalmente
como editor adjunto do suplemento literário do Diário da Manhã, além de
ter sido cronista durante anos de O Popular. É colaborador do Jornal
Opção. Seu nome mereceu um alentado texto no livro História da
Literatura Brasileira: da carta de Caminha aos contemporâneos (São Paulo,
Editora Leya, 2011), do poeta e acadêmico Carlos Nejar, que lhe dedicou ainda o
poema “Gabriel Nascente de Goiás”, reproduzido na contracapa de Galáxia dos
dias.
Nos
últimos tempos, o poeta tem encetado uma campanha pessoal para viabilizar o seu
ingresso na Academia Brasileira de Letras, o que, diga-se de passagem, seria
bem merecido, não fosse aquela instituição marcada por extremo favoritismo
carioca. Afinal, seu labor poético tem arrancado elogios de poetas, romancistas
e críticos consagrados como Ivan Junqueira (1934-2014), Ferreira Gullar
(1930-2016), Olga Savary (1933-2020), Affonso Romano de Sant´Anna e Antonio
Carlos Secchin, entre outros. É membro da Academia Goiana de Letras. Adelto
Gonçalves - Brasil
Galáxia dos dias: obra reunida, de Gabriel Nascente, vols. I a IV.
Goiânia: Editora Kelps, 2019.
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de são Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999;
Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003),
Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e
Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a
Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp,
2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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