O livro “No Tempo do Bambu – Identidade e Ambivalência
entre Macaenses”, lançado em 2015, acaba de ganhar uma versão revista e
traduzida, editada pela Berghahn Books. Marisa Gaspar, antropóloga, acredita na
continuação da comunidade macaense e lamenta que, apesar das inúmeras
distinções, continue a existir um fosso entre o Executivo e as associações
macaenses
De onde vem a ambivalência do macaense, tema que aborda
neste livro?
Publiquei
este livro em 2015 e já sofreu alterações. É o resultado da minha tese de
doutoramento em que o trabalho de campo foi feito em Lisboa, com o grupo do
Partido dos Comes e Bebes. É um grupo informal de amigos, todos eles ex-colegas
de turma do Liceu ou da Escola Comercial de Macau que ao longo dos anos foram
vindo para Portugal por diferentes razões. Foi com este grupo que me debrucei
mais sobre as questões da definição identitária, relacionadas com a memória e
ambivalência. O último capítulo de livro aborda o facto de o macaense
pertencer, não pertencendo, a dois mundos e duas culturas. Na verdade, eles
tiram das duas e constroem uma cultura que é sua.
Nunca sabem muito bem o que são.
Discordo
nesse sentido. Acho que fazem um uso muito prático do facto de se moverem bem
nos dois mundos. O macaense tira um partido positivo dessa sua ambivalência e
consegue adaptar-se e saber ser o que tem de ser numa determinada situação
social. Em termos profissionais essa é também um bocado a história dos
macaenses em Macau. Sempre fizeram a ponte entre a comunidade chinesa e a
Administração portuguesa.
Isso leva-me à questão da elite macaense e aos cargos que
ainda tem em Macau, um ponto também abordado no livro. Era esperada a
continuação dessa elite tão activa após a transição?
A
elite anterior, que ainda estava no poder no tempo da Administração portuguesa,
e que hoje está quase na idade da reforma, está a preparar novas gerações para
essas posições e a forma como o fazem é através do associativismo. Foi criada a
Associação dos Jovens Macaenses, os descendentes dessa antiga elite ainda
activa, mas que em breve deixará de estar, e há uma consciência disso. Essa
preocupação de passar o testemunho é permanente. Há também a organização dos
Encontros dos Jovens Macaenses que acontecem há três anos. A ideia que eu tenho
é que eles [os participantes dos Encontros] conhecem muito pouco do seu
património. São estas associações, como os Doci Papiaçam di Macau ou a
Confraria de Gastronomia Macaense [que fazem esse trabalho]. Querem que a
gastronomia seja reconhecida pela China e mais tarde pela UNESCO como
património da humanidade, mas não sei se chegará lá. Mas há essa vontade.
Os jovens macaenses que estão em Macau têm um maior
conhecimento da sua cultura, por comparação aos da diáspora?
Os
jovens [da diáspora] têm a noção de que há um título atribuído a esse
património e acho que é por aí. São jovens muito diferentes dos de Macau. Os
jovens macaenses de Macau têm a perfeita noção do seu papel na sociedade, dessa
passagem de testemunho para que continuem a lutar pelos seus direitos e por um
posicionamento quase único naquela sociedade, onde ainda existe o modelo de “um
país, dois sistemas”, com uma cultura e identidade próprias. O Governo de
Macau, um pouco por obediência do que a China dita, continua a dar valor à
comunidade macaense, muito mais agora do que era dado antes na Administração
portuguesa. Pela primeira vez o macaense começou a definir-se em termos
mestiços, de mistura, uma coisa que não acontecia antes da transição.
Porque é que acha que se dá mais importância hoje à
comunidade? Deve-se à China?
Acho
que é mesmo só por isso. De resto, os macaenses queixam-se até de um certo
“chega para lá” da parte do Governo local. Mas eventualmente também tem a ver
com o Executivo que está no poder na altura. Agora, com este novo Chefe do
Executivo as coisas podem mudar. No final do mandato do anterior Chefe do
Executivo [Chui Sai On], o património material macaense recebeu alguns títulos,
mas as associações esperavam outras regalias, nomeadamente melhores condições.
Todas as associações recebem um montante da Fundação Macau, mas como se trata
de uma comunidade especial, reconhecida por Macau e pela China, deveriam
dar-lhes mais condições para trabalhar. Por exemplo, para o teatro [Doci
Papiaçam di Macau] deveria ser dada uma sala para os ensaios, e na gastronomia
[Confraria da Gastronomia Macaense] deveria ser dada uma sala própria para
confeccionarem os pratos, para que desta forma possam chegar ao público. De
outra forma estão sempre um bocado encurralados nessa limitação logística com
falta de condições que o Governo não lhes proporciona. Ao mesmo tempo, Macau
venceu a candidatura a cidade da gastronomia e uma das principais causas para
ter integrado essa rede foi o facto de existir uma culinária única no mundo.
Mas depois as comunidades patrimoniais não entram nesse sistema, não participam
nesse tipo de iniciativas e é sempre um jogo um bocado estranho.
Em que sentido?
Os
técnicos do turismo fazem as coisas por iniciativa própria, sem grandes
colaborações das associações. Agora está a ser feita uma base de dados para o
levantamento de todas as receitas. Mas parece que isto é feito sem uma
integração entre as partes. Falta uma comunicação entre os técnicos, os
académicos e a comunidade que é detentora do património e que pode fornecer
mais informações. Este é um projecto meu que está em curso, sobre o turismo
gastronómico em Macau. Estive lá há dois anos, entrevistei muitas pessoas e a
sensação com que fiquei é que as coisas não fluem. Em Macau há esse problema de
comunicação. Eu própria me vi aflita para falar com pessoas que têm esses
dossiers em mãos porque tinham receio de falar. Acho que cada vez mais a mão da
China se começa a notar em Macau e as pessoas têm medo de falar. Uma coisa é as
coisas acontecem no plano simbólico e formal, outra é o que acontece no
dia-a-dia. A gastronomia e a o patuá são super importantes, são reconhecidos
pelos governos e pela UNESCO, mas na prática as pessoas não sabem o que são.
Não se distingue a comida macaense das restantes gastronomias. Os próprios
profissionais que trabalham sobre este assunto não sabem e isso é um bocado
aflitivo. Tudo funciona de forma simbólica.
Falando das associações dos jovens macaenses. Que
desafios antevê na continuação da comunidade? Há que adoptar novas estratégias?
Sou
uma optimista permanente em relação aos macaenses, ao contrário do discurso
deles, fatalista, de que a comunidade vai acabar. A verdade é que não se vêem
muitos jovens nos Encontros. No caso do patuá deixar-se-á de falar uma língua
completamente arcaica, porque não é usada na comunicação diária. As pessoas
conhecem expressões e é isso que vai ficar. A comunidade tem tudo para
continuar a existir. As pessoas que se sentem macaenses vão continuar a dizer
que o são, mas a identidade não vai ser igual à dos seus bisavós. Esta
comunidade tem de se preparar para esse contexto que é Macau, cada vez mais
globalizado, com muitos emigrantes vindos da China. Portanto, é uma comunidade
que vai ter de aprender mandarim senão, não sobrevive em Macau. E isso já se
nota nos jovens. Vai ser uma comunidade que se vai adaptando e nesse sentido
continua a existir.
A comunidade macaense tem também um papel económico nos
dias de hoje?
Não
ia tão longe quanto ao papel de captação de investimento, por exemplo. O que
ainda existe é essa preocupação de colocar à frente [alguns macaenses]. Pelo
menos com os dois primeiros Chefes do Executivo, continuaram a ter macaenses à
frente de instituições determinantes para Macau. Foi o caso de Rita Santos no
Fórum Macau e José Sales Marques no Instituto de Estudos Europeus de Macau. São
figuras reconhecidas pela sociedade e também pela elite chinesa. Mas Macau
continua a ter uma sociedade de emigrantes que estão lá para ganhar a vida, que
não conhecem muito sobre Macau, vivem na sua bolha e depois vão à sua vida.
Continuam a existir muitos problemas.
A comunidade macaense poderia ser mais interventiva nesse
aspecto?
Sim.
Todas as comunidades em Macau deveriam ser mais interventivas. Não nos podemos
esquecer que a comunidade macaense tem esta carga simbólica, é muito
minoritária. O macaense, mesmo enquanto intermediário cultural, tem consciência
de que ainda tem esse papel para desempenhar e que pode ser útil nesse sentido,
mas temos de pensar isto muito ao nível de relações diplomáticas. Não se pode
pensar que o macaense vai para o terreno reivindicar direitos. O macaense
queixa-se muito do facto de, quando se deu transição, ter sido obrigado a optar
por uma das duas nacionalidades, chinesa ou portuguesa. E discuto isso no
capítulo sobre a ambivalência, porque aqui neste ponto é levada ao expoente
máximo. A China, não concordando com a dupla nacionalidade, impôs a escolha aos
cidadãos de Macau. Os macaenses tinham esta ambivalência de ser as duas coisas.
Foi-lhes dada a possibilidade de escolher e isso foi uma ofensa atroz para
eles. Quem não quis abrir mão de ser português não pode exercer determinadas
funções. A comunidade tem esse papel [reivindicativo], mas a um nível muito
diplomático. Os macaenses também não querem ter muitos problemas, [então pensam
que] se calhar é melhor continuar nos bastidores. Todos os anos a comunidade é
convidada para encontros [com o Governo] e isso tem de facto mão da China.
Quase como se fossem artefactos de museu.
Vão continuar a existir macaenses na Administração ou vão
sendo progressivamente afastados?
(Hesita). Temos
de perceber se existem macaenses com competência ou vontade para estarem nesses
cargos. Não é só o facto de ser macaense que garante um lugar com competência
política. Mas se houver, acho bem que continuem a fazer parte, porque o Governo
de Macau foi sempre tendo macaenses. Mas não sei quem virá a seguir.
Mas, tal como disse, acredita que a comunidade se vai
manter.
Os
macaenses vão continuar a existir nem que seja desta forma mais simbólica ou
para justificar um discurso político de que Macau é este sítio pacífico de
encontro de culturas. O papel de Macau hoje para a China tem vários
componentes. Faz a ponte com os países de língua portuguesa onde a China tem
interesses comerciais. Não nos podemos esquecer também do projecto “uma faixa,
uma rota” e mais uma vez Macau tem um papel para se aproximar de Portugal. Nos
20 anos da transição foram assinados vários acordos. E Macau é também um sítio
de referência para a Grande Baía. Andreia Silva – Macau in “Hoje
Macau”
Andreia Sofia Silva - Jornalista, 31 anos de idade. Formada em Jornalismo
com uma pós-graduação em Ciência Política e Relações Internacionais. Escreve
sobretudo sobre política, sociedade e cultura. Email:
andreia.silva@hojemacau.com.mo
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