Depois
da entrevista coletiva para a imprensa internacional, me coloquei no caminho da
saída do entrevistado e à sua passagem lhe estendi a mão, me identificando em
francês: "sou jornalista do Brasil, tenho seguido seus filmes e suas
denúncias. Espero que seja bem acolhido no país no qual vai viver seu
exílio".
Houve
um forte aperto de mãos. Enquanto eu fixava seu rosto ele me sorria, ouvindo a
tradutora lhe transmitir em persa meu recado. Talvez lhe tenha parecido
original a preocupação do jornalista com a acolha no lugar onde vai viver, mas
isso é próprio de quem já viveu o exílio.
Foram
apenas alguns segundos, revividos por mim nestes dias em que as manchetes dos
noticiários falam do Irão. O entrevistado era Mohammad Rasoulof, cujo filme As
Sementes do Figo Sagrado tinha recebido o Prêmio Especial do Júri no Festival
de Cinema de Cannes e foi exibido no telão de 400m2 da Piazza Grande, no
Festival suíço de Locarno.
O
cinema é também uma maneira de se contar um país. Isso, nós brasileiros
vivemos, durante a ditadura militar. Naquela época, em praticamente todos os
festivais no exterior, o cinema brasileiro aparecia e dava sua mensagem
denunciando a ditadura e os crimes cometidos pelos militares. Existe mesmo um
ótimo texto do cineasta Thiago B. Mendonça sobre esse período de censura e
controle, com o título A ditadura e o cinema brasileiro, ilustrado com
uma conhecida foto do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha.
Retornando
ao Irão, existe um texto mais antigo, de Natalia Barrenha, que trata do
redescobrimento do cinema iraniano, há vinte anos, mas já começando a se
defrontar com o problema do fundamentalismo da teocracia islâmica.
Talvez
seja instrutivo agora, sob os clarões das explosões dos mísseis iranianos
lançados sobre Israel, contar a história do filme de Rasoulof.
Mesmo
porque existe a preocupação de alguns setores em mostrar aos brasileiros
frequentadores de redes sociais só a visão positiva do Irão, quase uma
propaganda, mesmo na questão dos direitos humanos em geral e, na questão da
liberdade das mulheres, fazendo de conta ignorar que a teocracia iraniana, um
tipo de ditadura religiosa, é também misógina ao extremo.
A
curiosidade popular com relação à situação das mulheres iranianas surgiu depois
do assassinato da jovem curda Mahsa Amina pela "polícia da
moralidade", em 2022, pelo "crime" de não ter o véu
"chador" cobrindo a cabeça, exigido pela religião. Isso foi bastante
divulgado pelas televisões brasileiras e, no Irão, provocou numerosas
manifestações de mulheres e a criação do movimento "Mulher, Vida, Liberdade".
A repressão às mulheres foi violenta e o presidente da época Ibrahim Raisi
aplicou a pena de morte na forca para muitas delas.
O
filme de Rasoulof, que precisou fugir do Irão para não ser preso, conta a
história de Iman, um jurista fiel e de dedicação servil à teocracia, que chegou
ao ápice de sua carreira ao ser nomeado juiz do Tribunal Revolucionário de
Teerão. Iman logo descobre que uma de suas funções é a de assinar as sentenças
de morte, decididas pelo Tribunal. A situação se complica para Iman, quando sua
filha mais velha, progressista, abriga em casa uma colega de escola ferida nas
manifestações depois do assassinato da jovem Mahsa Amina.
O
filme quer ser uma antecipação, pois aposta na revolta da família contra o
marido e pai, em outras palavras, numa revolta popular contra a ditadura
teocrática, mesmo porque o Irão vai mal economicamente e uma importante parcela
da população não apoia o governo.
Uma
parte da esquerda francesa se pergunta por que alguns líderes como Mélenchon
apoiam o Irão, que não é nenhum exemplo a seguir. Essa atração pelo Irão vem da
época da revolução do aiatola Khomeini, em 1979, contra a monarquia do Xá Rheza
Pahlevi. E um dos líderes pensantes e influentes da esquerda dessa época,
Michel Foucault não escondia sua admiração por Khomeini. Enquanto Jean Daniel,
diretor do semanário Le Nouvel Observateur, dava trânsito livre para Foucault
na revista que funcionava como guia do pensamento da esquerda da época.
Jean-Paul
Sartre também nutria admiração pelo aiatola Khomeini, que viveu algum tempo
perto de Paris, no município de Yvelines no Neauphle-le-Château, depois de um
longo exílio no Iraque. Sartre acreditava que a queda do Xá daria origem a um
regime anticolonialista e anti-imperialista. Na verdade, surgiu uma rigorosa
teocracia xiita baseada na lei corânica da charia, incompatível com a
observância dos direitos humanos no que se refere à liberdade de expressão,
liberdade de crença, liberdade sexual e liberdade das mulheres.
Foucault
chegou a criar a expressão "espiritualidade política", depois de uma
viagem ao Irão, para definir o islamismo do aiatola Khomeini, embora lhe
criticassem ignorar os perigos imanentes de um regime religioso islâmico. Em
síntese, Foucault avalisou o regime de Khomeini, que se tornou uma ditadura
islâmica, de tal forma que, mesmo hoje, com as interpretações sociológicas do pós-colonialismo,
Sul Global e wokismo, o Irão se beneficia de uma certa proteção e apoio junto
da esquerda.
É
o caso do Brasil, onde o Sul Global e a presença do Irão no BRICS têm levado a
uma islamização da esquerda, reforçada depois da resposta israelense na Faixa
de Gaza ao ataque do Hamas no 7 de outubro. A proibição por muitos países
europeus, em nome do respeito à laicidade, de que crianças e jovens frequentem
as aulas nas escolas públicas usando roupas religiosas que lhes cubram a
cabeça, as pernas e o corpo, chegou a ser criticada e considerada islamofobia
pela professora Francirosy Campos Barbosa. Na Bélgica, houve protestos
semelhantes com a decisão governamental de tornar obrigatória a presença dos
alunos do curso ginasial nas aulas de educação sexual.
As
redes sociais de esquerda passaram o pano nos crimes do ex-presidente iraniano
Ibrahim Raisi, chamado de "açougueiro", acusado de condenar à morte
oito mil pessoas. Na sua rede social dedicada principalmente à promoção e
conhecimento do Irão, o professor Salem Nasser, da FGV, também ignorou a má
reputação de Ibrahim Raisi e insinuou serem as leis iranianas melhores que as
brasileiras em matéria de direitos humanos. Também não comentou a morte da
jovem Mahasa Amina.
A
campanha paralela contra o sionismo, por setores da esquerda, fez com que
Israel, cujos primeiros kibutz eram de inspiração marxista, venha sendo
abandonado em nome do colonialismo imperialista. O contraponto é estar havendo
apoio a ditaduras e teocracias, cujas ideologias significam retrocesso
inclusive em questões de direitos humanos, gênero, liberdade e paridade das
mulheres com os homens. Rui Martins – Suíça
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Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador
do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas,
que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos
emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da
corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto
Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do
Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de
Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de
Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso
de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
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