O ano de 2024 tem sido pródigo em várias celebrações de uma efeméride que muito toca a identidade lusitana: os 500 anos do nascimento de Luís Vaz de Camões. Foi à volta do tema que o Jornal Tribuna de Macau entrevistou José Cardoso Bernardes, presidente da Comissão Nacional de Portugal para as Comemorações do V Centenário do Nascimento do poeta. Como parte do programa, que será apresentado em Lisboa dentro de dias, foram feitos contactos para a participação de Macau nas comemorações. “Acreditamos na resposta das entidades locais”, disse o professor catedrático, que se encontra no território para proferir algumas palestras. O académico salienta que a grande aposta no ensino de Camões tem de ser feita nos professores. “Eles são os mediadores e necessitam de formação camonística”, frisou
- Qual é o objectivo desta sua deslocação a Macau?
- Esta
vinda estava prevista há um ano, quando eu ainda não exercia este cargo. O
convite foi-me feito pela Universidade de Macau para vir proferir uma série de
palestras e só lateralmente é que viria a falar de Camões. Entretanto, assumi o
cargo em 12 de Setembro passado e a visita transformou-se numa espécie de
cruzada camoniana. Portanto, não foi um convite que possa integrar-se no âmbito
das comemorações.
- Sabemos que irá proferir várias palestras. Que temas
vai abordar?
- Vou
falar sobre o ensino de Camões, o ensino de Camões em Portugal, o ensino do
poeta nas escolas portuguesas espalhadas pelo mundo. De resto, as comemorações
camonianas vão ter uma grande componente dedicada ao ensino. Porque é na escola
que os portugueses se encontram com Camões, é aí que se decide tudo. É aí que
os portugueses guardam ou não guardam uma imagem boa do contacto com as obras
do poeta e a percepção que nós temos é que a escola está em mudança profunda.
- E de que forma é possível levar a efeito essa reforma
no ensino sobre Camões?
- Adaptar
conteúdos que normalmente não causam estranheza a alunos portugueses, mas
causam uma estranheza enorme a alunos de culturas muito diversas. E, portanto,
as acumulações vão acentuar muito a dimensão do ensino. É preciso intervir,
discutir, debater se realmente da maneira como estamos a ensinar Camões hoje se
adequa às realidades novas. Se não for assim, é preciso ter a coragem de mudar,
de ajustar.
- O que pode e deve ser feito para divulgar a obra de
Luís de Camões nas escolas portuguesas no estrangeiro?
- É
nosso propósito deslocarmo-nos a cada uma das escolas portuguesas no
estrangeiro. Aqui em Macau, eu próprio vou fazer isso, vou falar para alunos,
vou falar para professores e tenciono depois prolongar essa excursão pelas
outras escolas, em Moçambique, Dili, Luanda, etc.
- Isso acontecerá ao longo do próximo ano?
- Será
durante 2025 e 2026, porque as comemorações vão até 2026. Temos também
programadas acções em todas as cátedras portuguesas espalhadas pelo mundo e nas
universidades onde, não existindo cátedras, o departamento de português ou o
ensino de português tem alguma importância.
- Há, então, uma grande vontade em falar do poeta aos
alunos que se encontram fora de Portugal?
- Vamos
empenhar-nos muito em falar de Camões para os portugueses da diáspora.
- O que está pensado para Macau?
- Macau
tem muitas vantagens em relação a isso, porque tem a língua portuguesa e os
alunos da Escola Portuguesa. Todos eles sabem ou julgam que já têm muito
conhecimento de Camões, ainda que neste momento a Escola Portuguesa tenha mais
alunos que não falam português, que não são de língua portuguesa materna, do
que os que são oriundos de Portugal, o que havia antigamente. Eu costumo dizer
que Camões é o primeiro poeta que incorpora a ideia de mundo na sua obra, ou
seja, é possível falar de Camões a qualquer interlocutor independentemente de
ele ser português ou não, independentemente de ele estar em Macau ou em Lisboa,
porque as personagens e as situações que Camões criou, tanto n’ “Os Lusíadas”
como na lírica, interpelam a espécie humana no seu todo.
- Houve algumas críticas porque o programa das
comemorações dos 500 anos do nascimento de Camões tardava em aparecer. O que
levou a que fosse delineado tão tardiamente? Não é quase como que uma
desconsideração por Camões?
- Tenho
dificuldade em responder a essa questão. Eu fui nomeado no dia 12 de Setembro
deste ano e foi-me confiada uma tarefa que estou a procurar executar. O que
aconteceu é que, entre 2021, data em que o Governo da altura nomeou uma pessoa
para programar as comemorações, e a data da minha própria nomeação, eu não
consigo dizer-lhe. Imagino e quero crer que essa pessoa fez o que pôde. Terá
havido algum descaso do Governo, pelo menos foram as declarações que vieram a
público. O Governo nomeou a pessoa, mas depois não lhe deu os meios. Eu quando
assumi o lugar falei com a ministra que me convidou e coloquei condições.
- Que condições?
- Uma
delas era dispor de meios, ainda que não abundantes, desde já lhe digo, mas
meios para levar por diante um programa digno, e é isso que estou a procurar
fazer. O programa está pronto, vai ser anunciado nos primeiros dias de Novembro
e envolve muitas vertentes, académica, universitária, digamos convencional.
Vamos organizar um dia para Camões em cada capital, distrito, território
nacional e nas regiões autónomas. É um padrão. Já temos algumas confirmações,
esse programa vai arrancar em Coimbra, no dia 12 de Fevereiro de 2025 e
continuar no Funchal, no dia 31 de Março desse mesmo ano, e vai continuar pelas
restantes capitais. O que nós queremos é envolver as comunidades educativas
nesse dia.
- Como pretende estabelecer esse envolvimento?
- É
muito importante para nós envolver os jovens, é muito importante para nós que
os jovens guardem de Camões uma imagem prazerosa do seu contacto na escola. E
esses dias para Camões têm como objectivo chegar ao grande público, mas com
especial incidência nas escolas, nas comunidades educativas, nos jovens. É
possível e necessário falar de Camões num congresso universitário, mas também é
possível, e é muito desejável e muito necessário, falar de Camões de forma
acessível a um rapaz, a uma menina, que tenham hoje 14 ou 15 anos. Não é fácil,
mas é necessário.
- Em concreto, o que é que o programa prevê para Macau?
- Nós
temos como princípio dirigirmo-nos às entidades locais, é isso que temos estado
a fazer e acreditamos na resposta das entidades locais. Acredito que as
universidades, o Instituto Cultural, o Instituto Português do Oriente, a Escola
Portuguesa de Macau, se organizem. Estamos a aguardar respostas.
- Quais são as suas ideias?
- As
comemorações têm de ser feitas de acordo com a escala, com as aspirações, com
os desejos, com as necessidades que cada entidade local entende que se ajusta
mais. Aqui em Macau já foi feito um congresso sobre Camões. A Rede da Ásia vai
fazer agora o segundo congresso em 2025 na Ilha de Moçambique, mobilizando, no
entanto, pessoas de Macau, mas eu confesso que valorizo muito uma ida de um
professor à Escola Portuguesa de Macau, isso é como morar em Camões. Valorizo
muito uma conferência que é proferida no Instituto Português do Oriente, na
Fundação Rui Cunha, que é o que eu vou fazer. Não é preciso que haja uma sessão
solene sobre Camões. São maneiras convencionais de o celebrar. Eu valorizo mais
as pequenas iniciativas que chegam aos jovens, mas que sejam frequentes,
regulares. Por exemplo, uma iniciativa que tenha impacto junto dos professores,
porque eles são os mediadores e necessitam de formação camonística.
- Esse papel deve, então, caber às escolas?
- Em
Portugal é assim, eu não sei o que acontece na Escola Portuguesa de Macau, que
não conheço. Em Portugal nós organizamos acções de formação para os professores
comparecerem, às vezes centenas de professores de Português, e uma grande
percentagem desses docentes que ensinam Camões no 9º e 10º ano, nunca
aprenderam Camões nas universidades. Isto tem de ser corrigido. Se uma pessoa
vai ensinar Português a vida inteira, alguma vez tem de ter ouvido falar em
Camões, porque depois o vai ensinar. E o problema é que Camões não pode ser
ensinado como outro escritor qualquer. Um aluno de 14 ou 15 anos, que se abeira
de “Os Lusíadas” sem um mediador qualificado, não consegue entender nada. Ou
consegue entender pouco. Por isso é preciso apostar na formação de professores.
- Como é que Macau deveria comemorar Camões? Com uma
sessão solene, com muitas flores, com grande aparato, ou com acções pontuais?
- Eu
diria que com acções que sensibilizem os professores que têm essa missão. A
missão de contagiar os alunos com o seu próprio entusiasmo. Eu optaria por esta
modalidade. Camões disse sempre de si próprio que nunca teve sorte, mas nós
tivemos sorte daquilo que ele deixou, que já não é mau. A sorte de Camões
joga-se na escola. Para as pessoas que não tiveram a sorte de ir à escola, o
poeta é uma espécie de ícone da pátria. E quanto mais longe se está da pátria,
mais se valoriza esse ícone. Camões está na escola e é lá que os portugueses e
aqueles que frequentam escolas portuguesas, o conhecem.
- Em relação ao poeta e à vida dele, há muitas incertezas
e contradições. No que toca a Macau, o que há de concreto?
- À
luz daquilo que hoje se sabe, e sabe-se mais hoje do que há cinco ou 10 anos, a
presença de Camões em Macau é pelo menos muito provável. Claro que não está
documentada com nenhuma certidão, mas é muito provável. Há documentos, pelo
menos do século XVIII, que aludem àquele lugar como as pedras de Camões. Isto
não é probatório, quer dizer, não certifica, mas o que prova é que há 250 anos
a tradição que hoje existe já existia na altura.
- Aqui escreveu parte de “Os Lusíadas”?
- Isso
também não se sabe, porque não há um único autógrafo de Camões, mas eu acho que
ele nunca deixou de escrever os Lusíadas estivesse onde estivesse.
- Aquando da sua primeira deslocação a Macau, em 2014,
visitou a gruta e o busto de Camões. As diferenças para o que ali se encontra
hoje são pequenas. Com que impressões ficou do local?
- Tal
como hoje se encontram, as lajes com o busto do poeta assinalam uma memória
camoniana intensa e comovente. A tradição e também alguns documentos antigos
associam aquele lugar à passagem de Camões por Macau. Ora, se o poeta esteve
naquele ou noutro lugar, algures na década de 60 do século XVI, é certo que aí
pensou e escreveu parte d’ “Os Lusíadas”. Pelo menos nessa fase da sua vida,
ele estava sempre a escrever o seu poema. A escrever literalmente ou
mentalmente. Não podia deixar de ter os versos a ressoar na sua cabeça. Para
além da base histórica que parece ter, aquele lugar tem, por isso, uma força
evocativa incomparável.
- Que conhecimento tem sobre o ensino do Português no
estrangeiro? Na China, por exemplo?
- Diz-se
que há um número crescente de universidades chinesas a desenvolver o ensino do
Português, que antes estava confinado a Macau e hoje existe uma multiplicidade.
Compreende-se que assim seja, a China tem uma grande presença em África e quer
acentuar, há indicadores muito claros de que assim será. Portanto, tem muito
interesse.
- Mas há também o inverso. Portugal recebe muitos
estudantes chineses que querem aprender e aperfeiçoar o Português…
- Eu
falo-lhe especificamente de Coimbra, que é onde vivo e dou aulas. Nós
recebemos, mas em outras universidades do país também, contingentes crescentes
de alunos que se deslocam a Coimbra para frequentar cursos anuais, já não
apenas cursos de férias, para adquirirem proficiência no Português, e quando
lhes perguntamos porquê, respondem que depois querem ir para África, para
Moçambique, Angola, para o mundo lusófono, que é um mundo com potencialidades
económicas enormes. E há muitos alunos de Macau que vão fazer esses cursos.
- Por tudo isso, a relação entre Macau e Coimbra parece
forte e duradoura. Isso é uma realidade?
- Posso
dizer-lhe que Coimbra sempre teve uma ligação muito forte ao território de
Macau, até pela via desportiva, nós tivemos jogadores macaenses, como o Rocha,
e depois o filho. Jogaram os dois na Académica de Coimbra e ainda hoje têm, que
eu saiba, um restaurante famoso em Coimbra, onde se serve, dizem, a melhor
comida macaense. Portanto, Coimbra tem uma relação tradicional com o território
de Macau. Entretanto, vai chegar a Macau um vice-reitor da Universidade de
Coimbra. O circuito Coimbra - Macau está sempre a funcionar. Está sempre
aberto.
Quem é José Augusto Cardoso Bernardes?
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