Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Macau – Entrevista com José Cardoso Bernardes, presidente da Comissão Nacional de Portugal para as Comemorações do V Centenário do Nascimento de Luís Vaz de Camões

O ano de 2024 tem sido pródigo em várias celebrações de uma efeméride que muito toca a identidade lusitana: os 500 anos do nascimento de Luís Vaz de Camões. Foi à volta do tema que o Jornal Tribuna de Macau entrevistou José Cardoso Bernardes, presidente da Comissão Nacional de Portugal para as Comemorações do V Centenário do Nascimento do poeta. Como parte do programa, que será apresentado em Lisboa dentro de dias, foram feitos contactos para a participação de Macau nas comemorações. “Acreditamos na resposta das entidades locais”, disse o professor catedrático, que se encontra no território para proferir algumas palestras. O académico salienta que a grande aposta no ensino de Camões tem de ser feita nos professores. “Eles são os mediadores e necessitam de formação camonística”, frisou


- Qual é o objectivo desta sua deslocação a Macau?

- Esta vinda estava prevista há um ano, quando eu ainda não exercia este cargo. O convite foi-me feito pela Universidade de Macau para vir proferir uma série de palestras e só lateralmente é que viria a falar de Camões. Entretanto, assumi o cargo em 12 de Setembro passado e a visita transformou-se numa espécie de cruzada camoniana. Portanto, não foi um convite que possa integrar-se no âmbito das comemorações.

- Sabemos que irá proferir várias palestras. Que temas vai abordar?

- Vou falar sobre o ensino de Camões, o ensino de Camões em Portugal, o ensino do poeta nas escolas portuguesas espalhadas pelo mundo. De resto, as comemorações camonianas vão ter uma grande componente dedicada ao ensino. Porque é na escola que os portugueses se encontram com Camões, é aí que se decide tudo. É aí que os portugueses guardam ou não guardam uma imagem boa do contacto com as obras do poeta e a percepção que nós temos é que a escola está em mudança profunda.

- E de que forma é possível levar a efeito essa reforma no ensino sobre Camões?

- Adaptar conteúdos que normalmente não causam estranheza a alunos portugueses, mas causam uma estranheza enorme a alunos de culturas muito diversas. E, portanto, as acumulações vão acentuar muito a dimensão do ensino. É preciso intervir, discutir, debater se realmente da maneira como estamos a ensinar Camões hoje se adequa às realidades novas. Se não for assim, é preciso ter a coragem de mudar, de ajustar.

- O que pode e deve ser feito para divulgar a obra de Luís de Camões nas escolas portuguesas no estrangeiro?

- É nosso propósito deslocarmo-nos a cada uma das escolas portuguesas no estrangeiro. Aqui em Macau, eu próprio vou fazer isso, vou falar para alunos, vou falar para professores e tenciono depois prolongar essa excursão pelas outras escolas, em Moçambique, Dili, Luanda, etc.

- Isso acontecerá ao longo do próximo ano?

- Será durante 2025 e 2026, porque as comemorações vão até 2026. Temos também programadas acções em todas as cátedras portuguesas espalhadas pelo mundo e nas universidades onde, não existindo cátedras, o departamento de português ou o ensino de português tem alguma importância.

- Há, então, uma grande vontade em falar do poeta aos alunos que se encontram fora de Portugal?

- Vamos empenhar-nos muito em falar de Camões para os portugueses da diáspora.

- O que está pensado para Macau?

- Macau tem muitas vantagens em relação a isso, porque tem a língua portuguesa e os alunos da Escola Portuguesa. Todos eles sabem ou julgam que já têm muito conhecimento de Camões, ainda que neste momento a Escola Portuguesa tenha mais alunos que não falam português, que não são de língua portuguesa materna, do que os que são oriundos de Portugal, o que havia antigamente. Eu costumo dizer que Camões é o primeiro poeta que incorpora a ideia de mundo na sua obra, ou seja, é possível falar de Camões a qualquer interlocutor independentemente de ele ser português ou não, independentemente de ele estar em Macau ou em Lisboa, porque as personagens e as situações que Camões criou, tanto n’ “Os Lusíadas” como na lírica, interpelam a espécie humana no seu todo.

- Houve algumas críticas porque o programa das comemorações dos 500 anos do nascimento de Camões tardava em aparecer. O que levou a que fosse delineado tão tardiamente? Não é quase como que uma desconsideração por Camões?

- Tenho dificuldade em responder a essa questão. Eu fui nomeado no dia 12 de Setembro deste ano e foi-me confiada uma tarefa que estou a procurar executar. O que aconteceu é que, entre 2021, data em que o Governo da altura nomeou uma pessoa para programar as comemorações, e a data da minha própria nomeação, eu não consigo dizer-lhe. Imagino e quero crer que essa pessoa fez o que pôde. Terá havido algum descaso do Governo, pelo menos foram as declarações que vieram a público. O Governo nomeou a pessoa, mas depois não lhe deu os meios. Eu quando assumi o lugar falei com a ministra que me convidou e coloquei condições.

- Que condições?

- Uma delas era dispor de meios, ainda que não abundantes, desde já lhe digo, mas meios para levar por diante um programa digno, e é isso que estou a procurar fazer. O programa está pronto, vai ser anunciado nos primeiros dias de Novembro e envolve muitas vertentes, académica, universitária, digamos convencional. Vamos organizar um dia para Camões em cada capital, distrito, território nacional e nas regiões autónomas. É um padrão. Já temos algumas confirmações, esse programa vai arrancar em Coimbra, no dia 12 de Fevereiro de 2025 e continuar no Funchal, no dia 31 de Março desse mesmo ano, e vai continuar pelas restantes capitais. O que nós queremos é envolver as comunidades educativas nesse dia.

- Como pretende estabelecer esse envolvimento?

- É muito importante para nós envolver os jovens, é muito importante para nós que os jovens guardem de Camões uma imagem prazerosa do seu contacto na escola. E esses dias para Camões têm como objectivo chegar ao grande público, mas com especial incidência nas escolas, nas comunidades educativas, nos jovens. É possível e necessário falar de Camões num congresso universitário, mas também é possível, e é muito desejável e muito necessário, falar de Camões de forma acessível a um rapaz, a uma menina, que tenham hoje 14 ou 15 anos. Não é fácil, mas é necessário.

- Em concreto, o que é que o programa prevê para Macau?

- Nós temos como princípio dirigirmo-nos às entidades locais, é isso que temos estado a fazer e acreditamos na resposta das entidades locais. Acredito que as universidades, o Instituto Cultural, o Instituto Português do Oriente, a Escola Portuguesa de Macau, se organizem. Estamos a aguardar respostas.

- Quais são as suas ideias?

- As comemorações têm de ser feitas de acordo com a escala, com as aspirações, com os desejos, com as necessidades que cada entidade local entende que se ajusta mais. Aqui em Macau já foi feito um congresso sobre Camões. A Rede da Ásia vai fazer agora o segundo congresso em 2025 na Ilha de Moçambique, mobilizando, no entanto, pessoas de Macau, mas eu confesso que valorizo muito uma ida de um professor à Escola Portuguesa de Macau, isso é como morar em Camões. Valorizo muito uma conferência que é proferida no Instituto Português do Oriente, na Fundação Rui Cunha, que é o que eu vou fazer. Não é preciso que haja uma sessão solene sobre Camões. São maneiras convencionais de o celebrar. Eu valorizo mais as pequenas iniciativas que chegam aos jovens, mas que sejam frequentes, regulares. Por exemplo, uma iniciativa que tenha impacto junto dos professores, porque eles são os mediadores e necessitam de formação camonística.

- Esse papel deve, então, caber às escolas?

- Em Portugal é assim, eu não sei o que acontece na Escola Portuguesa de Macau, que não conheço. Em Portugal nós organizamos acções de formação para os professores comparecerem, às vezes centenas de professores de Português, e uma grande percentagem desses docentes que ensinam Camões no 9º e 10º ano, nunca aprenderam Camões nas universidades. Isto tem de ser corrigido. Se uma pessoa vai ensinar Português a vida inteira, alguma vez tem de ter ouvido falar em Camões, porque depois o vai ensinar. E o problema é que Camões não pode ser ensinado como outro escritor qualquer. Um aluno de 14 ou 15 anos, que se abeira de “Os Lusíadas” sem um mediador qualificado, não consegue entender nada. Ou consegue entender pouco. Por isso é preciso apostar na formação de professores.

- Como é que Macau deveria comemorar Camões? Com uma sessão solene, com muitas flores, com grande aparato, ou com acções pontuais?

- Eu diria que com acções que sensibilizem os professores que têm essa missão. A missão de contagiar os alunos com o seu próprio entusiasmo. Eu optaria por esta modalidade. Camões disse sempre de si próprio que nunca teve sorte, mas nós tivemos sorte daquilo que ele deixou, que já não é mau. A sorte de Camões joga-se na escola. Para as pessoas que não tiveram a sorte de ir à escola, o poeta é uma espécie de ícone da pátria. E quanto mais longe se está da pátria, mais se valoriza esse ícone. Camões está na escola e é lá que os portugueses e aqueles que frequentam escolas portuguesas, o conhecem.

- Em relação ao poeta e à vida dele, há muitas incertezas e contradições. No que toca a Macau, o que há de concreto?

- À luz daquilo que hoje se sabe, e sabe-se mais hoje do que há cinco ou 10 anos, a presença de Camões em Macau é pelo menos muito provável. Claro que não está documentada com nenhuma certidão, mas é muito provável. Há documentos, pelo menos do século XVIII, que aludem àquele lugar como as pedras de Camões. Isto não é probatório, quer dizer, não certifica, mas o que prova é que há 250 anos a tradição que hoje existe já existia na altura.

- Aqui escreveu parte de “Os Lusíadas”?

- Isso também não se sabe, porque não há um único autógrafo de Camões, mas eu acho que ele nunca deixou de escrever os Lusíadas estivesse onde estivesse.

- Aquando da sua primeira deslocação a Macau, em 2014, visitou a gruta e o busto de Camões. As diferenças para o que ali se encontra hoje são pequenas. Com que impressões ficou do local?

- Tal como hoje se encontram, as lajes com o busto do poeta assinalam uma memória camoniana intensa e comovente. A tradição e também alguns documentos antigos associam aquele lugar à passagem de Camões por Macau. Ora, se o poeta esteve naquele ou noutro lugar, algures na década de 60 do século XVI, é certo que aí pensou e escreveu parte d’ “Os Lusíadas”. Pelo menos nessa fase da sua vida, ele estava sempre a escrever o seu poema. A escrever literalmente ou mentalmente. Não podia deixar de ter os versos a ressoar na sua cabeça. Para além da base histórica que parece ter, aquele lugar tem, por isso, uma força evocativa incomparável.

- Que conhecimento tem sobre o ensino do Português no estrangeiro? Na China, por exemplo?

- Diz-se que há um número crescente de universidades chinesas a desenvolver o ensino do Português, que antes estava confinado a Macau e hoje existe uma multiplicidade. Compreende-se que assim seja, a China tem uma grande presença em África e quer acentuar, há indicadores muito claros de que assim será. Portanto, tem muito interesse.

- Mas há também o inverso. Portugal recebe muitos estudantes chineses que querem aprender e aperfeiçoar o Português…

- Eu falo-lhe especificamente de Coimbra, que é onde vivo e dou aulas. Nós recebemos, mas em outras universidades do país também, contingentes crescentes de alunos que se deslocam a Coimbra para frequentar cursos anuais, já não apenas cursos de férias, para adquirirem proficiência no Português, e quando lhes perguntamos porquê, respondem que depois querem ir para África, para Moçambique, Angola, para o mundo lusófono, que é um mundo com potencialidades económicas enormes. E há muitos alunos de Macau que vão fazer esses cursos.

- Por tudo isso, a relação entre Macau e Coimbra parece forte e duradoura. Isso é uma realidade?

- Posso dizer-lhe que Coimbra sempre teve uma ligação muito forte ao território de Macau, até pela via desportiva, nós tivemos jogadores macaenses, como o Rocha, e depois o filho. Jogaram os dois na Académica de Coimbra e ainda hoje têm, que eu saiba, um restaurante famoso em Coimbra, onde se serve, dizem, a melhor comida macaense. Portanto, Coimbra tem uma relação tradicional com o território de Macau. Entretanto, vai chegar a Macau um vice-reitor da Universidade de Coimbra. O circuito Coimbra - Macau está sempre a funcionar. Está sempre aberto.

Quem é José Augusto Cardoso Bernardes?

José Augusto Cardoso Bernardes, de 66 anos, é professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde tem sobretudo regido cadeiras no âmbito da Literatura Portuguesa do século XVI e da Didáctica da Literatura. Foi membro do Conselho Nacional de Educação, tendo coordenado o Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos e o Centro de Literatura Portuguesa. Publicou “O Bucolismo Português”, “Sátira e Lirismo no teatro de Gil Vicente”, “História Crítica da Literatura Portuguesa Vol. II – Humanismo e Renascimento”, “Revisões de Gil Vicente” e “A Literatura no Ensino Secundário”. Assumiu, há pouco mais de um mês, o cargo de presidente da Comissão Nacional de Portugal para as Comemorações do V Centenário do Nascimento de Luís de Camões. Vítor Rebelo – Macau in “Jornal Tribuna de Macau”

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