João do Rio, pseudónimo do jornalista e escritor Paulo Barreto, que retratou a alma do Rio de Janeiro e morreu defendendo pescadores portugueses da Póvoa de Varzim, é o homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), que começou ontem, quarta-feira 09.
Nome
conhecido da toponímia de Lisboa, com uma praça em seu nome entre a Alameda e o
Areeiro, João do Rio ficou conhecido pelas crónicas que retrataram as belezas e
as mazelas do Rio de Janeiro, na passagem do século XIX para o século XX, em
textos que permanecem atuais.
O
escritor registou as transformações que aconteceram na antiga capital
brasileira com a chegada do automóvel, do telefone e de outras modernidades da
‘belle époque’, antes das duas guerras mundiais, e desvendou parte da
alma e dos sonhos da sociedade ‘carioca’ que ambicionava criar uma ‘Paris
tropical’ no Brasil de há um século.
Nascido
no Rio de Janeiro, em agosto de 1881, filho de um pai branco e de uma mãe
mulata, Paulo Barreto (João do Rio) tornou-se jornalista aos 16 anos, profissão
que exerceu toda a vida.
É
conhecido como um dos primeiros jornalistas brasileiros a praticar géneros como
a reportagem e a entrevista, dentro dos padrões contemporâneos, expandindo a
expressão à literatura com a publicação de livros como “As religiões no Rio”,
‘best-seller’ de 1906, “A Alma Encantada das Encantada das Ruas” (1908) e
“Cinematógrafo” (1908), reunindo crónicas que escreveu nos jornais ‘cariocas’.
No
jornal A Pátria, que fundou em 1920, e numa conferência realizada em Lisboa na
mesma época, João do Rio defendeu uma reaproximação cultural e económica do
Brasil a Portugal, destoando da maioria dos seus contemporâneos que viam com
desconfiança a permanência de uma certa influência portuguesa no país
sul-americano.
“Nada
me devem os portugueses por amar e defender portugueses, porque assim amo,
venero e quero duas vezes a minha pátria”, lê-se na praça de Lisboa com o nome
do autor ‘carioca’, que fundou a revista luso-brasileira Atlântica, em 1915,
com o escritor português João de Barros.
Conhecido
por ter uma personalidade polémica e uma presença marcante, João do Rio usava
roupas extravagantes e era reconhecido por todos quando circulava nas favelas e
nas altas rodas da sociedade ‘carioca’. Foi o mais jovem membro eleito da
Academia Brasileira de Letras, em 1910, quando completou 29 anos. João do Rio
também foi membro da Academia de Ciências de Lisboa.
O
autor não passou despercebido no momento da morte, aos 39 anos, em junho de
1921. Sofreu um ataque cardíaco dentro de um táxi quando foi alvo de uma
campanha de difamação por defender pescadores portugueses da Póvoa de Varzim
que viviam no Brasil. O seu funeral reuniu milhares de pessoas, segundo o seu
biógrafo, João Carlos Rodrigues, autor de “João do Rio, uma biografia” (1996).
Em
entrevista à Lusa, Rodrigues explicou que o fascínio de João do Rio por
Portugal começou com a sua primeira viagem à Europa, em 1910.
“Desembarcou
em Lisboa para ir para Paris e pretendia ficar só dois dias em Portugal, mas
ficou duas semanas. Ele se apaixonou por Lisboa. Na segunda viagem, que acho
que ocorreu em 1915, viu a chamada intentona [do Movimento das Espadas]. Então,
ele que também ficaria em Portugal por poucos dias naquela viagem, acabou
permanecendo mais tempo e cobrindo esse evento como jornalista”, contou o
biógrafo.
O
especialista lembrou dois livros de João do Rio lançados em Portugal: a recolha
de “Fados, Canções e Danças de Portugal” (1909), que inclui partituras, e
“Portugal d’agora” (1911), sobre o país.
“Ele
realmente gostou muito de Portugal. Inclusive, no fim da vida, pretendia ser
embaixador do Brasil em Portugal”, afirmou o biógrafo, que também recordou
antigas chancelas portuguesas que editaram João do Rio, como Aillaud-Bertrand,
Chardron e Lello & Irmão, onde surgiram títulos como “Adiante!” (1919) e
“Os Dias Passam” (1912).
Sobre
os pescadores da Póvoa de Varzim que trabalhavam no litoral do Brasil,
Rodrigues recordou como João do Rio os defendeu publicamente contra a Marinha
que os obrigava a adotar a cidadania brasileira, imposição a que se opunham.
João do Rio acabou por ser considerado um agente português, e chegou a ser
agredido por oficiais da Marinha, no Largo da Carioca.
“Quase
todos os pescadores que trabalhavam no Brasil eram portugueses, mas houve uma
campanha da Marinha, em 1920, para naturalizar esses pescadores – não podiam
ser estrangeiros. João do Rio os defendeu no jornal dele. Isso é o que causa,
na verdade, a morte dele porque passou a ser perseguido e os portugueses
reagiram a essa naturalização forçada. Quase todos os pescadores eram da Póvoa
e eram chamados de poveiros.”
A
defesa dos pescadores rendeu a João do Rio várias homenagens em Portugal. Além
da praça em Lisboa, também está presente na Praça dos Poveiros, no Porto. Na
Póvoa de Varzim, na Avenida do Repatriamento dos Poveiros, a par da memória do
escritor, é recordada a sua participação nesse episódio histórico de 1920-1921.
Após
morte de João do Rio, a sua biblioteca particular foi doada ao Real Gabinete
Português de Leitura, instituição cultural luso-brasileira sediada no Rio de
Janeiro.
A
importância de João do Rio para o jornalismo e a literatura é também sublinhada
por João Rodrigues ao recordar o seu papel pioneiro, no começo do século
passado, na modernização da imprensa no Brasil, principalmente inspirado nos
jornais franceses.
“A
reportagem, a entrevista, todas essas novidades foram introduzidas no Rio de
Janeiro, no Jornal do Brasil e na Gazeta de Notícias, onde João do Rio
trabalhou. Ele, desde muito jovem, fez reportagens que marcaram a época, porque
entrevistou uma parte da população que ninguém levava em conta. Foi fazer
reportagem sobre o Candomblé [religião brasileira de matriz africana], foi o
primeiro repórter a subir a uma favela e foi às prisões entrevistar os presos”,
explicou o especialista.
“Como
escritor, João do Rio fez uma fusão da reportagem com a literatura e
transformou a crónica, que no Brasil era uma coisa muito literária, um género
que tratava de temas etéreos, mas que por influência dele tratou também de
assuntos populares e quotidianos sem perder o estilo literário”, concluiu.
A
Biblioteca Nacional de Portugal apresenta perto de dezena e meia de títulos do
escritor publicados por editoras portuguesas, incluindo “Cinematógrafo”, pela
antiga Chardron (1908). De publicação recente contam-se “O Fado” (2013), pela
Apenas Livros, e as reedições de “A Alma Encantadora das Ruas” (2018), da
Glaciar, com a Academia Brasileira de Letras, e de “Portugal d’agora” (2020),
pelo Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de
Lisboa, com a Unesp – Universidade Estadual Paulista.
A
FLIP, maior evento literário do Brasil, teve início ontem, em Paraty, e termina
no domingo. Entre os escritores da programação principal está a portuguesa Ana
Margarida de Carvalho, a autora premiada de “Que Importa a Fúria do Mar” e “Não
Se Pode Morar nos Olhos de Um Gato”.
Haverá
também em Paraty uma série de encontros com o autor português José Luís
Peixoto, homenageado no espaço Portugal: Livros e Sabores, onde acontecerão
‘bate-papos’ literários e apresentações de menus inspirados em livros, por
‘chefs’ portugueses e brasileiros. In “Mundo Lusíada” - Brasil
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