Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Portugal – Macau: mau tempo, avarias e troca de avião, o relato da viagem em 1924

Sarmento de Beires, Brito Paes e Manuel Gouveia, partiram de Portugal, em 1924, num pequeno monomotor biplano, o Breguet 16 Bn2, chamado Pátria, e chegaram a Macau, a 20 de Junho. No ano do centenário desta viagem, o Ponto Final foi saber o que se escrevia num dos jornais locais


“Descolámos com mau tempo. Esperámos que o tempo melhorasse além-fronteira de Portugal. Tal não aconteceu. E a ameaça de tempestade em Vila Nova de Milfontes tornou-se tempestade desfeita no Sul de Espanha”, relatava Brito Paes, que comandou a missão, numa conferência no Clube de Macau, conforme noticiado no já extinto jornal do território, A Pátria, na edição de 19 de Julho de 1924.

Em 1924, Sarmento de Beires, Brito Paes e Manuel Gouveia, na senda do que Gago Coutinho e Sacadura Cabral tinham feito em 1922, na viagem área de Portugal ao Brasil, juntaram-se num pequeno monomotor biplano e rumaram de Portugal a Macau.

Começaram por partir da Amadora, a 2 de Abril, até Vila Nova de Milfontes, para de lá descolar, a 7 de Abril, com destino ao território.

Depois do mau tempo no início, a aventura continuou com algumas peripécias e várias escalas pelo meio. “A viagem para Oran fez-se em boas condições, não obstante o ter mau começo”, relatava o comandante da missão. “Foi o caso que, cinco minutos depois de descolar, a bomba de gasolina deixou de funcionar, reduzindo-nos o raio de acção a metade”, dizia. O motor chegou até a “deixar de funcionar”, assustando o trio de aviadores. “Nós, que víamos o fim da viagem o despedaçar-se o avião na serrania, retomámos caminho e, seguindo os métodos aconselhados por Gago Coutinho, fizemos rumo, deixámos a ilha de Alboran uma milha por bombordo, atingindo a costa africana pela altura do Cabo das Três Forças, fomos aterrar em Oran […].”

Entretanto, a viagem continuou a desenrolar-se, até que os aviadores se depararam, pela primeira vez, com o deserto. “Duas horas depois de partir, apareciam-nos os primeiros turbilhões de areia. Um vento fortíssimo da proa na primeira metade da viagem retardou-nos muito e aterrámos em Tripoli depois de gastarmos seis horas e cinquenta e cinco minutos para percorrer os 700 quilómetros Tunis-Tripoli”, conta o comandante da viagem. “Um episódio singelíssimo que define, e eu bem a conhecia já, a alma lealíssima do meu mecânico”, diz Brito Paes, referindo-se a Manuel Gouveia.

Passando pelo deserto e apanhando ventos e chuva, passaram então pela “Palestina linda” e pelos “picos do Líbano cobertos de neve”. A partida de Rayak foi “um tanto difícil”, já que os aviadores estavam perante “um vale longuíssimo e aprazível entre duas cordilheiras de 3000 metros da altura”, que “fica ele mesmo a 900 metros”, com Sarmento de Beires a “puxar” pelo Pátria, que estava “pesado”. Já em Bushehr, tiveram um contratempo, com “um alferes manhoso e bem-posto” a pedir para ver o passaporte, percebendo que os aviadores não tinham vistos. Esse mesmo oficial veio a pedir dinheiro para que a situação ficasse resolvida.

Entretanto, com as peripécias superadas e a viagem a continuar, o comandante continua a relatar outros episódios, conforme citado no jornal A Pátria. ”De Chahbar para Karachi foi a etapa mais tormentosa de toda a viagem”, afirmava. “Aparece nas cartas uma pequena península Ormarah, uma espécie de Itália pequenina. O nosso avião atingira 1200 metros e voava bem. De repente, a terra escurece, o avião desce procurando manter a ligação com o solo. Vem para 1000, para 500, para 200, para 50 metros!!! O calor sufoca.”

Já em Jodhpur, na Índia, o avião perdia altura. “O motor metido a toda a força trabalhava como um relógio, mas o ar não tinha sustentação. “Era preciso aterrar depressa”, dizia Brito Paes. “Não era possível atingir Agra, nosso destino, nem Nezirabat, campo de recurso. Aterrou-se. O vento com uma crueldade de bandido atirou contra o chão o aparelho e partiu-o”, recorda.

O segundo avião

Com o Breguet 16 Bn2 destruído, o trio de aviadores regressa a Karachi para negociar com o Governo da Índia a compra de outro aparelho. Adquirido o avião por 4700 libras, um De Havilland 9 A, era tempo de seguir viagem, agora com o Pátria II.

Chegados ao Vietname, a partida para Macau “iniciou-se sob os melhores auspícios”, com “bom tempo e óptimo vento”. Acabaram, porém, por se debater com tempestades, que “queimaram o gerador”, e levaram a equipa a hesitar no destino. Com o “forte vento que soprava”, a viagem foi bem difícil.

Sabia-se que a costa estava “infestada de piratas” e que “para a frente não se via nada”. Tentaram “por três vezes” descer a menos de 100 metros rumo a Macau, apesar das chuvas. O vento teimava em soprar, atirando-os para as “serranias” da “ilha da Lapa”.

Com a bateria do aparelho a gastar-se, apesar de Macau estar perto, a equipa tinha de salvar o avião e a vida, subindo rumo a Cantão, alcançando o caminho de ferro Kowloon-Cantão. “Dois minutos sobre o caminho de ferro e o motor enfraquece e pára”, recorda. Acabaram por ter de escolher campo para aterrar, “debaixo de uma chuva terrível”. A aventura terminou ali, na aldeia de Shum-Chum, a poucos quilómetros de Hong Kong.

A recepção calorosa em Macau e a indiferença do Governo de Portugal

Por toda a parte, os aviadores foram bem recebidos pelas comunidades portuguesas, com “jantares, banquetes, bailes, récitas”, uma série de “manifestações festivas que quase deram razão aos que em Portugal julgavam que só faríamos uma viagem cheia de divertimentos e prazeres”.

Pelo contrário, recordando o início da viagem, diz Brito Paes, na Amadora “nada de representantes de entidades oficiais, a não ser o ajudante do Exmo. Comandante da Divisão”. E, para além dos aviadores Sacadura Cabral e Gago Coutinho, apenas uma dúzia de amigos.

Em jeito de balanço, nesse discurso no Clube de Macau, relatado em A Pátria, Brito Paes referia que nos Estados Unidos da América, em Inglaterra, França e Japão havia os melhores pilotos e aviões, com “recursos ilimitados”, ao passo que, quando o trio sugeriu fazer o mesmo em Portugal houve risos. “Pode lá ser? Não há motores nem aviões a experimentar… loucura […]”

No fim, com “a esmola da subscrição” do povo, que financiou a empreitada, os aviadores puderam partir, mas sem o devido apoio do Governo de então. “Quando nas vésperas de o fazer quisemos apresentar os nossos cumprimentos ao Sr. Presidente da República, S. Ex.ª não pôde receber-nos; o Sr. Ministro de Guerra, quando o procurámos para o mesmo fim, tinha saído; o mesmo o Sr. Ministro das Colónias.”

Com o objectivo de chegar a Macau e “de não deixar a aviação portuguesa estagnar-se e ficar quieta”, Brito Paes considera a missão cumprida.

No fim da conferência, conforme relatado em A Pátria, lia-se: “O público que se manifestara nalgumas passagens ergue-se como uma mola no final e faz aos aviadores a mais estrondosa manifestação que é possível.”

A aviação militar em choque com o Governo

Enquanto os aviadores portugueses, Sarmento de Beires, Brito Paes e Manuel Gouveia, concluíam a sua viagem histórica, em 1924, a aviação militar entrava em colisão com o Governo de Portugal da altura.

“A Aviação Militar recusa-se a aceitar o decreto que demitiu o major sr. Cifka Duarte”, lia-se no jornal A Pátria, a 19 de Julho. A partir daí, estava gerada uma crise que haveria de dominar a imprensa da altura, mas que se procurou esconder dos aviadores portugueses, Sarmento de Beires, Brito Paes e Manuel Gouveia.

A 3 de Junho de 1924, dia em que deveria tomar posse o novo comandante, Júlio Morais Sarmento, vários militares dirigiram-se à Aeronáutica Militar para expressar o seu desagrado. Entre eles encontrava-se o pai de Brito Paes, que manifestava o desejo de que o trio de aviadores, que se encontrava em plena viagem aérea até Macau, desconhecesse o que se passava em Portugal, além de querer saber mais informações sobre o filho.

“Foi publicado um decreto determinando que o director da Aeronáutica seja um coronel de qualquer arma ou em serviço ao Estado Maior. Imediatamente foi nomeado para director da Aeronáutica Militar o coronel sr. Morais Sarmento, e exonerado o major sr. Cifka Duarte”, lê-se no comunicado enviado pelos aviadores e publicado na edição de 19 de Julho de 1924.

Alegando que se trata de um “decreto inconstitucional e afrontoso para o seu brio e honra de homens e de oficiais do exército”, os aviadores rejeitam aceitar outro nome que não o de Cifka Duarte naquele cargo.

Geraram-se então debates no Parlamento, que culminaram com declarações do ministro da Guerra contrárias aos interesses destes aviadores. Dispostos a resistir, um grupo concentrou-se no Campo da Amadora e ali ficou retido, cercado por um aparato militar. “Os aviadores declararam que se entregariam ao Chefe de Estado depois da demissão do sr. ministro da Guerra”, lê-se. Neste impasse que se gerou, entretanto, alguns oficiais acabariam por ser presos, enquanto outros permaneceram em campo, resistindo.

A questão da viagem Portugal-Macau

No meio deste turbilhão, encontrava-se também o pai de Brito Paes, que se dirigiu ao Campo da Amadora para se encontrar com Cifka Duarte, para tratar de alguns assuntos. “Sabemos que se tratou da viagem Lisboa-Macau e das dificuldades económicas para a sua conclusão”, conforme relatado no jornal.

Entretanto, para a solução do conflito entra em cena o almirante Gago Coutinho e o comandante Cerqueira, responsáveis por apresentar a plataforma do Governo e negociar com os aviadores.

A 26 de Julho de 1924, no jornal A Pátria continuam a surgir notícias do conflito entre a Aviação Militar e o Governo de Portugal, ao mesmo tempo em que os nomes do trio de aviadores, que se encontrava a concluir a viagem aérea Portugal-Macau, continuavam a surgir. “Sabemos de fonte segura que o sr. ministro de Guerra porá à disposição dos intrépidos aviadores, Sarmento de Beires e Brito Paes, todos os recursos necessários para a conclusão da sua viagem.”

Com o cerco da Amadora a intensificar-se, a mediação do almirante Gago Coutinho acabou por se tornar infrutífera. Os aviadores renderam-se e foram detidos, mas Gago Coutinho propôs que fossem amnistiados.

Citando o Diário de Lisboa, na edição de 2 de Agosto de 1924 do jornal A Pátria, os jornalistas interpelaram Gago Coutinho sobre este processo e a viagem do trio de aviadores portugueses a Oriente. O almirante aproveitou então para deixar umas palavras de louvor para Sarmento de Beires, Brito Paes e Manuel Gouveia: “Saíram daqui três dias depois de mim. Chegaram três dias depois de mim e, ao mesmo tempo, andaram o dobro do que andei.”

Uma viagem paga pelo povo português

A viagem aérea entre Portugal e Macau, que agora faz o seu centenário, foi pioneira até no modo de financiamento. Sem apoio do Governo de então, contou com subscrições públicas, além do dinheiro da família de Brito Paes.

“A viagem só foi possível graças ao povo português”, dizia Sarmento de Beires, numa entrevista ao Jornal de Notícias, publicada no dia 7 de Abril de 1974, dois meses antes da sua morte.

Na viagem de Sarmento de Beires, Brito Paes e Manuel Gouveia, tanto o avião como as restantes despesas foram suportados por subscrições públicas. Organizaram-se iniciativas para angariação de fundos, como corridas de touros no Campo Pequeno, leiloou-se um vitelo para angariar fundos e rifou-se um terreno na Amadora para a subscrição aérea. “O povo foi o produtor que tornou possível a obra, que nós apenas realizámos”, lia-se no jornal.

Foi este acompanhamento pelo povo, que levou a que Sarmento de Beires tivesse “tido o cuidado de manter viva a chama desta viagem” nos escritos que foi fazendo dos diferentes jornais, ao longo dos anos, diz o sobrinho-neto, Nuno Beires, realçando que a viagem foi sempre acompanhada pela imprensa da época.

No ano em que se realizou este trajecto aéreo, Portugal vivia uma altura muito conturbada. “Estamos nos anos finais da primeira República e, com toda a confusão, com toda a carestia, a dificuldade de vida que havia no país e a confusão política económica que se vivia, por isso é que esta viagem, durante uns meses, ajudou a levantar o moral da população, que sentiu que fazia parte de algo maior e que, naquela altura, era mesmo algo maior”, recorda.

No que toca à aeronáutica, era também uma altura em que as diferentes potências procuravam destacar-se e competiam. E, ainda que Portugal não dispusesse dos mesmos recursos que França, Inglaterra ou os Estados Unidos, “encontrava-se ao mesmo nível na ousadia do empreendimento”.

Motivações patrióticas ou espírito de missão?

Contrariamente ao que muitos dizem, Nuno Beires não considera que este raid aéreo tenha tido o “ímpeto nacionalista ou de divulgação da dimensão patriótica”, porque, se assim fosse, o Governo teria tido um envolvimento mais forte. “O que há nestes homens é que vivem num momento único e desafiador”, revela. “A aviação, depois da Primeira Guerra Mundial, está num momento de afirmação e de procura de novas oportunidades e eles, que são aviadores de paixão, são militares, mas, em vez de irem para a artilharia, preferiram ir para a aviação militar”, acrescenta. Naquela época, na década de 20, o desafio era o de “ir longe, ligar povos e conhecer o diferente”.

A 17 de Junho de 1922, Gago Coutinho e Sacadura Cabral já tinham provado essa “valentia”, ligando Portugal ao Brasil, concluindo a primeira travessia aérea do Atlântico Sul. Sarmento de Beires, Brito Paes e Manuel Gouveia decidiram fazer uma viagem “comparável” na dimensão e no arrojo, mas na direcção do Oriente. “O desafio não era um oceano, não era a capacidade de sobreviver atravessando um mar imenso, mas era sobreviver a dificuldade de atravessar terrenos completamente diferentes daquilo que eles conheciam”, assinala.

Mas o desafio era também o do financiamento deste empreendimento, que começou com a fortuna pessoal de Brito Paes, mas avançou com subscrições públicas.

“De Portugal a Macau”, uma crónica de viagem para o mundo

Escrita pelo piloto José Manuel Sarmento de Beires, “De Portugal a Macau” é um relato da viagem pioneira de 1924, feita com o objectivo de chegar ao ponto mais distante do antigo império. Mas quem é o seu autor?

Figura alta, magra, seca, mas com os olhos vivos e uma voz muito própria. É assim que Nuno Beires se recorda do tio-avô José Manuel Sarmento de Beires, um dos três protagonistas do raid aéreo de 1924 e autor do livro “De Portugal e Macau”, uma crónica da viagem de então.

Sem filhos biológicos, era casado, tinha um enteado e 11 sobrinhos-netos, todos filhos do seu único irmão. “Cresci a ouvir falar desta epopeia aérea efetuada pelo tio José”, recorda Nuno.

Mas foi ao ler, por volta dos 9 ou 10 anos, os livros “De Portugal a Macau” e “Asas que naufragam”, que o sobrinho-neto “ficou verdadeiramente empolgado” com “o que era viajar de avião naquela altura”, tão diferente da experiência dos dias de hoje. “Lembro-me de, em miúdo, ter sido uma coisa que me levou a interessar pelos aviões e a acompanhar a questão da aeronáutica”, conta.

Não se viam com frequência. A família era numerosa, os encontros eram animados e “barulhentos” e, suspeita o sobrinho-neto, talvez fosse por isso que o tio-avô “não era presença assídua” nessas reuniões. Em alternativa, a família deslocava-se a Gaia, onde morou nos últimos anos de vida, para vê-lo.

A festa dos 80

Em 1972, por ocasião do seu 80.º aniversário, a família juntou-se para celebrar Sarmento de Beires, já Nuno era adolescente. Como presente, o sobrinho-neto montou e pintou um modelo de um avião SPAR, que muito entusiasmou o antigo militar. É uma das memórias mais bonitas que preserva desta figura, que olhava com um misto de amor e admiração. Quando entregou o presente, o aviador exclamou, muito entusiasmado: “Ah, eu pilotei tanta vez um avião deste!”. Seguiu-se depois uma conversa sobre aviões, com direito a explicações sobre a arte de pilotar. “Foi o momento mais fantástico de interacção que tive com ele: um pioneiro da aviação a mostrar como funcionava aquilo que eu só estava habituado a ver em kits e em brinquedos”, destaca.

Engenheiro de formação, Nuno acabou por nunca seguir profissionalmente nada ligado à aviação, apesar de sempre ter sentido uma curiosidade muito grande pela área. Também nunca conseguiu “descortinar melhor o homem por detrás do herói”, que era o seu tio-avô. Afinal, Sarmento de Beires morreu, em 1974, quando Nuno era apenas um adolescente de 16 anos.

Talvez seja por isso mesmo que, ao longo da sua vida, se tem dedicado também a perpetuar a memória do tio, envolvendo-se nos vários projectos que visam assinalar a sua memória. “A minha mulher [a investigadora Isabel Maria Morujão] trabalha há vários anos na reedição dos livros das viagens aéreas de Sarmento de Beires e agora, quando se deu a comemoração do centenário da viagem, fiquei como representante da família junto da comissão do centenário”, assinala.

Militar, aviador, escritor e político

Olhando para os livros “De Portugal a Macau” e de “Asas que naufragam”, onde Sarmento de Beires relata as suas viagens aéreas, Nuno considera também que o tio-avô foi pioneiro numa literatura de viagens aéreas, em Portugal. “O meu pai uma vez disse à minha mulher: como estás ligada à universidade, pega nos livros do tio e vê o que achas daquilo. Ela interessou-se e percebeu haver ali um recorte literário, que não é nada habitual em tudo o que sejam os relatos das viagens aéreas daquele tempo”, diz. Provavelmente, especula Nuno, será também fruto do seu passado enquanto escritor, já que colaborou com várias publicações, incluindo a revista Seara Nova e o Diário de Lisboa.

Conhecido opositor do regime que vigorava então, Sarmento de Beires, em pleno Estado Novo, participou activamente na revolta de 26 de Agosto de 1931, cujo mentor era Utra Machado. Foi, por isso, preso e julgado em 1933, acabando por ser condenado a sete anos de desterro e à perda dos direitos cívicos durante dez anos. Nuno julga que esse é um dos motivos por que a viagem Portugal-Macau acabou por ser “esquecida no país”, mas também há outros. “O facto de Brito Paes ter morrido precocemente em 1934 pode também ter levado a que isso acontecesse”, diz.

Na família, porém, Sarmento de Beires nunca foi esquecido. “A aventura e a narrativa de viagem sempre foram bastante faladas na família, a parte política nem tanto, conforme os tempos”, recorda. Em 1950, Sarmento de Beires, ao abrigo da Lei da Amnistia, regressou do exílio, sendo reintegrado no Exército com o posto de Major e promovido a Coronel, em 1972.

Um trio de aviadores unidos

Imbuídos de espírito de missão, como bons militares que eram, o trio de aviadores tinha diferentes competências que se completavam. Manuel Gouveia era um “excelente mecânico”, diz o investigador Henrique Henriques-Mateus, juntando-se, assim, ao piloto Sarmento de Beires e a Brito Paes, que iria comandar a missão. “Eram homens que se davam bem, que corriam todos para o mesmo lado e com espírito de sacrifício”, destaca.

Nascido em 1884, em Colos, Vila Nova de Milfontes, António Jacinto da Silva Brito Paes foi um navegador condecorado pelas aviações portuguesa e francesa, que morreu cedo, aos 49 anos, depois de dois aviões de instrução colidirem. Já José Manuel Sarmento de Beires era natural de Lisboa, nascido em 1892. Militar, aviador, escritor e político, além da viagem de 1924, em 1927 comandou o aparelho que fez a primeira aérea nocturna do Atlântico Sul. Foi depois dessa data que se opôs ao regime do Estado Novo, que vigorava então, acabando por ser preso e forçado ao exílio. Morreu em 1974. Por seu turno, o mecânico Manuel António Gouveia nasceu no Porto em 1890 e foi atropelado em 1966, acabando por morrer.

Mais de metade da viagem tem lugar no Breguet 16 Bn2, um biplano monomotor de 300 cavalos, a que se chamou Pátria, o que, para o investigador, é surpreendente. “Um avião de duas pessoas, que leva três — a dada altura da viagem, o piloto diz a Manuel Gouveia que os comandos estão presos e a responder mal”, diz Henriques-Mateus, que remata: “Ele examina aquilo e diz que prendia os cabos dos comandos com as pernas.”

Com um avião chamado Pátria, em homenagem ao povo português, os aviadores perpetuavam a ideia de “por ares nunca dantes navegados”, que culminaria com um “abraço” a uma comunidade que se encontrava muito longe de Portugal. Ainda assim, recorda, como ninguém sabia que eles estariam a chegar, quando chegaram ao território, ficaram “desiludidos”, pois não eram muitos os que se encontravam à sua espera. Mas durou pouco, já que rapidamente começaram a organizar-se encontros e celebrações pela sua chegada.

Manuel Gardete e Mário Correia lançam documentário durante o centenário

Com um livro já escrito sobre os pioneiros da aviação, o historiador Mário Correia foi desafiado por Manuel Gardete a empreender numa série de três documentários: um sobre o voo de Sacadura Cabral e Gago Coutinho até ao Brasil, em 1922, outro sobre a viagem de 1927, que ligou Guiné ao Brasil e, finalmente, um sobre a viagem de Portugal a Macau, em 1924. “O pioneirismo, seja onde for, é sempre alguém à frente, é como se tivesse uma espécie de angústia: isto vai ser assim, mas vai ter de ser. Essa é a pulsão do pioneiro”, explica o guionista.

“Asas no Oriente – Viagem a Macau em 2024” é um documentário sobre esta viagem histórica de 1924, escrito com base no diário de viagem de Sarmento de Beires, “De Portugal a Macau”. Centrando-se numa conversa entre Mário Correia e o historiador Henriques-Mateus, visa mostrar o que aconteceu na viagem, as principais peripécias e os desafios superados.

Um feito extraordinário, com peripécias

O investigador Henriques-Mateus, actualmente consultor do Museu do Ar, destaca alguns pontos da viagem. “Acho que as principais peripécias — e, às vezes, as pessoas não se apercebem disso — foram a travessia aérea do norte de África, porque é a primeira vez que é feita”, recorda. Além disso, destaca a longevidade do primeiro avião em que viajavam os três aviadores. “Quando ele vai cair lá perto, na aterragem, já tinha excedido em muito os prognósticos dos aviadores franceses”, recorda, acrescentando que “é um trabalho extraordinário, passar por cima de montanhas e a voar alto, num avião aberto, sem máscaras de oxigénio”. No fim, o resultado foi “chegar a Macau naquele abraço português”. O objectivo seria, contrariamente ao que costuma ser veiculado, “chegar mais longe com o avião que tinham” e não fruto de um ímpeto imperialista.

Depois, deu-se a queda do segundo avião, com o clima a dificultar a aterragem no território. “De qualquer maneira, a viagem fez-se, porque eles passaram por cima de Macau, mas não conseguiram aterrar em Macau, eles foram já aterrar em território chinês, passaram por cima de Macau”, afirma. Chegou-se, por isso, a pensar em comprar um terceiro avião para aterrar no território, acabando por se afastar a ideia. “No fim, aquelas recepções em Macau, as ruas cheias de gente é uma coisa extraordinária.”

A importância para a história

Enquanto conceito que temos hoje, a aviação moderna nasce verdadeiramente no fim da Primeira Guerra Mundial. “Sobram muitos aviões, mecânicos, pilotos desempregados e começa a pensar-se que, se deu para andar ali às voltas na Guerra, dá para transportar pessoas”, diz Mário Correia. Com grandes potências como os Estados Unidos, França e Inglaterra em busca de “demonstrar a sua superioridade”, Portugal concorreu em ousadia nesta viagem aérea.

A percorrer quase 17 mil quilómetros durante 115 horas de voo, os aviadores sobrevoaram África, Médio Oriente e Ásia, numa das mais longas viagens aéreas da história, em 1924. “A importância foi participar nesse ganhar de confiança para dar dimensão da aviação.”

O documentário “Asas no Oriente – Viagem a Macau em 2024” está disponível no sítio do Centro Científico e Cultural de Macau, em Portugal.

Diogo Vilhena irá apresentar documentário sobre o raid aéreo em 2025

Intitulado “Milfontes-Macau: Um retrato de 100 anos de histórias inspiradas por uma viagem”, o documentário da autoria de Diogo Vilhena visa contar a história da viagem aérea que ligou Portugal a Macau, feita por Sarmento de Beires, Brito Paes e Manuel Gouveia. O realizador preparou uma pequena apresentação, no dia 21 de Setembro, em Vila Nova de Milfontes, por ocasião do centenário da viagem, mas o projecto final deverá ser apresentado, simultaneamente, em Macau e em Portugal, no dia 10 de Junho de 2025.

Diogo Vilhena é natural de Vila Nova de Milfontes, terra de onde partiu o Breguet e Brito Paes, um dos três aviadores a bordo do Pátria, era do concelho de Odemira. “Quando eu era bem pequenino, as pessoas contavam aquela história como se fosse a história do Indiana Jones e eu sempre perguntava às pessoas onde era Macau”, recorda o realizador. As pessoas respondiam-lhe: “Diziam-me que tinha de fazer um buraco no chão e do outro lado do mundo era Macau. Mas, como é que, fazendo um buraco no chão, estes homens chegaram lá com um avião?”

Curioso, Diogo Vilhena nunca se esqueceu daquela história. Quando a viagem comemorou os seus 80 anos, durante uma celebração organizada pela Câmara Municipal de Odemira, depois de ouvir a comunicação do historiador da terra, António Quaresma, a explicar aos jovens a viagem, o realizador decidiu que iria fazer um documentário sobre o trajecto. Viria então a associar-se ao investigador, mais tarde, já com formação na área de Audiovisuais, para desenvolver este projecto.

Os intervenientes

Neste, constam entrevistas a pessoas com memória local, como jornalistas, investigadores, assim como os diferentes ramos familiares ligados aos aviadores, como o sobrinho-neto de Manuel Gouveia, que é engenheiro da Airbus e desenvolve asas de avião, pessoas da aviação e conhecedoras da aeronáutica. ”Tenho a neta de Brito Paes, que nos conta que o seu bisavô entrega o anel de família ao Brito Paes para fazer a viagem, quase como significado de todo o apoio familiar daquela família e, quando regressam a Lisboa, Brito Paes devolve o anel ao pai, mas inscrevendo Milfontes Macau e com o número de quilómetros que fizeram nessa distância”, revela.

E há alguns pontos inovadores neste documentário. “Consegui, em Macau, recuperar poemas escritos há 100 anos aos aviadores”, diz, assinalando que pediu ainda a alunos do colégio que declamassem um pequeno texto escrito pelo escritor Camilo Pessanha sobre a recepção dos pilotos há 100 anos.

Para cada uma das pessoas presentes no documentário, o realizador preparou um desafio. “Tenho um artista plástico, chamado Pedro Soares, de Odemira, dando corpo à narrativa que Sarmento de Beires escreveu [no livro “De Portugal a Macau”], que descreve aquilo como se fosse um artista plástico a pintar uma tela em delírio, e eu peguei num artista plástico com essas características e desenvolvi uma narrativa em que mostro como seria essa visão”, revela.

No trabalho, conta ainda com a colaboração de uma harpista [Maria Sá Silva], do Porto, que preparou a banda sonora original para a partida destes pilotos. “Foi uma ligação muito feliz, porque consegui transparecer a força e a vontade que aquela gente tinha naquela altura”, salienta.

Contando com inúmeras entrevistas, filmadas em diferentes locais como Porto, Aveiro, Macau, Sintra, Lisboa, Hong Kong, Odemira e Colos, Diogo Vilhena pretende fazer uma apresentação dupla, ao mesmo tempo, em Macau e em Portugal, do documentário, a 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.

Documentários, conversas, exposições e muitos outros eventos, em Lisboa e Vila Nova de Milfontes, acabaram por marcar as comemorações do centenário do voo que ligou Portugal e Macau. No território, a efeméride foi celebrada com uma exposição itinerante, a apresentação do livro “De Portugal a Macau, a Viagem do Pátria”, além de conferências e uma placa comemorativa. Luciana Leitão in “Ponto Final” - Macau


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