Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Salomão Sousa: poesia em tempos de angústia

Em nova obra, o poeta reúne poemas que foram escritos sob a pressão do isolamento social            

                                                                                 

                                                          I

Se contribuiu para evitar a propagação da epidemia de covid-19 (2020-2022), o isolamento social forçado serviu também para que o poeta Salomão Sousa produzisse os versos que compõem Certezas para as madressilvas (Brasília, edição do autor, 2024). É o que ele confessa no prefácio que escreveu para a sua obra: “Escrevi este livro no momento do ódio, no meio do aquartelamento da descrença, na hora do vírus da morte. Esses elementos se impregnaram na arte (...)”, disse.


Mais adiante, acrescentou: “Numa hora em que as pessoas desprezam a si mesmas, há preferência pela destruição da liberdade incentivada pelas aleivosias dos escritórios da mentira. Estes poemas (e muitos outros) foram escritos quando as pessoas deixaram de se reconhecer, de valorizar  os canais legítimos da existência e passaram a abarrotar os olhos com o fascínio pela violência”.

Por aqui se vê que há, ainda que de maneira subalterna, uma referência explícita, àquela época em que o poder público estava nas mãos de trogloditas que, até o último momento, por meio de mentiras, procuraram manter-se à frente dos negócios do País, inclusive recorrendo ao apoio de uma turbamulta que depredou o patrimônio público. A indignação do poeta com aquele tempo está expressa nestes versos do poema “Diálogo com Sófocles”:

             (...) Quem viu aquele que se ajoelha / e ora em prantos ao deus pneu? / (...) Merece desterro o que desonra / a sua Pátria, que desfoca os artigos da lei, / o fluir de uma água até uma nação / e atrofia os pequenos músculos / de crianças irmãs yanomanis. / É festiva a minha casa, / e, para que não a habite a desonra, / não dá acolhida a golpes, a fuzis no forro. / Esforço-me para que um voto / desintoxique-nos das inflamações da loucura / e à auspiciosa liberdade / não venha contradizer o édito. (...) Quando deixarão de bater à nossa porta / os arrotos dos trogloditas da mentira?

            

                                                         II

Obviamente, a inspiração do poeta não veio apenas daqueles dias de angústia que a população esclarecida viveu encurralada pelo regime nazifascista que assumira o poder pelo voto de uma massa manipulada por mentiras. Até porque, como diz o jornalista Euler Belém no texto de apresentação na contracapa, Salomão Sousa “é o tipo de poeta cerebral, um construtor milimétrico – um engenheiro com a delicadez do arquiteto – , que sabe que “secura” e “lirismo” não se excluem”, como se pode comprovar pelos últimos versos do poema “Resposta à última pergunta de minha mãe”:

             (...) Para rir a brisa usa a boca da noite / só para as almas se acalmarem / Não sabemos quem sopra a brisa / quem a dopou para que não revolva com força / Talvez venha da poerta do céu / que foi aberta por Deus / para nos acolher com voz mansa.

 Já a poeta Sônia Elizabeth, no prefácio que escreveu para esta obra e que mais constitui uma “tentativa de ensaio”, aponta, entre outras qualidades do autor, a sua preocupação em “observar e valorizar os insetos, larvas e acidentes tais”, procurando “garimpar riquezas do chão, o olhar voltado para o que passa desapercebido”. É o que se vê no poema “Casca de casulo” em que ele diz:

             (...) Se não tenho em mim a mariposa, serei casca de casulo? / Sentir-se não é ser, mas me sinto nulo, oco / desentranhado de voos, / de facécias de visitas, / sem ânimo  de me fixar até a chegada da veracidade. (...) Quisera desenrolar em mim loucos lábios, asas, / e, se voasse, não sugaria seiva, só a ânsia / de conhecer, de acolher-me no destino do vento. / Depois do percurso, da avidez de destroçar, / casca vazia a assoviar entre teias / se não sei se sou casulo às vésperas da mariposa.

Essa preocupação com a natureza está presente até mesmo no título do livro que remete para o poema “Destino óbvio do que somos” em que o poeta se refere à madressilva, trepadeira conhecida por suas flores que nascem brancas e ficam amarelas com o tempo, preechendo qualquer jardim ou amurada com o seu perfume. Assim diz o poeta:

             (...) Um voo para outro galho / e um passo para outra casa. / Destino óbvio do que somos. / O que o colibri quer da madressilvas / não é o que o homem quer / com a construção de uma cerca.

Enfim, são poemas nos quais o autor procurou não contaminá-los com excesso de formalidade, “com o conteúdo deletério desse tempo de indigência”. Antes, como diz no prefácio, deixou agir a fúria de estar presente, de presenciar, de ser elemento que pudesse contribuir para a expressão, mas sem ser falsário. Em outras palavras: “Se a razão foi empurrada para o escuro, não são as madressilvas que carecem de certezas, mas o homem presente, que não pode descarrilar do seu destino”, conclui o poeta.

 

                                                         III

Nascido em Silvânia-GO, Salomão Sousa (1952) é formado em Jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub). Aposentado do poder executivo federal, vive em Brasília desde 1971. Estreou em 1979 com A moenda dos dias, que mereceu resenha na revista da Universidade de Harvard/EUA. É membro da Academia de Letras do Brasil (ALB), da Associação Nacional de Escritores (ANE), ambas de Brasília, da Academia de Letras, Artes e História de Silvânia-GO e da Academia Mundial de Letras da Humanidade (AMLH), de Santo André-SP.


Em quase meio século de trabalho literário, tem conquistado leitores tanto no Brasil como no exterior, a exemplo de suas idas ao Peru, Chile e Equador, com participação em uma antologia na Argentina e outra na Espanha. Também tem admiradores na Cidade do México, onde participou de encontros com escritores locais e estrangeiros e leu seus poemas.

Ainda em 2024, está publicando Poesia e alteridade (Brasília, edição do autor),  obra em que reúne dez textos nos quais, entre outros temas, procura compreender a importância e o alcance da poesia, exalta a produção dos poetas Anderson Braga Horta e Alexandre Pilati, discute a recepção e o significado do romance Grande sertão: veredas (1956), de João Guimarães Rosa (1908-1967), historifica a trajetória dos principais integrantes da última geração de poetas goianos, da qual é ilustre participante, analisa os romances O castelo (1926), de Franz Kafka (1883-1924), e Sob os olhos do Ocidente (1911), de Joseph Conrad (1857-1924), e, por fim, discute o conceito de alteridade.

Em 2022, publicou Bifurcaçõesmemória, resistência e leitura (Cidade Ocidental-GO, edição do autor), instigante texto em que procura mostrar que a obra da poeta Cecília Meireles (1901-1964) ultrapassa os padrões originais do Modernismo,  corrigindo várias informações a respeito de sua vida, além de outros ensaios e artigos sobre outros temas igualmente atraentes.

Está também na Antologia da nova poesia brasileira (1992), organizada pela poeta Olga Savary (1933-2020), e em A poesia goiana do século XX (1998), organizada por Assis Brasil (1929-2021). Foi um dos 47 poetas incluídos no número que a revista Anto, de Portugal, dedicou, em 1998, à literatura brasileira, em comemoração dos 500 anos da descoberta do Brasil.

Organizou antologias, entre as quais Deste Planalto Central – poetas de Brasília, publicação da 1ª Bienal Internacional de Poesia da Biblioteca Nacional de Brasília (2008), Em canto cerrado e Conto candango, com escritores de Brasília. Obteve o Prêmio Capital Nacional do Ano de 1998 de Crítica Literária. A União Brasileira dos Escritores (UBE), seção de Goiás, concedeu-lhe o Troféu Tiokô como personalidade goiana que mais se destacou fora do Estado no biênio 2010-2011.

É autor ainda de Falo (Brasília, Thesaurus Editora, 1986); Criação de lodo (Brasília, edição do autor, 1993); Caderno de desapontamentos (Brasília, edição do autor, 1994); Estoque de relâmpagos, Prêmio Brasília de Produção Literária (Secretaria de Cultura do Distrito Federal, 2002); Ruínas ao sol, Prêmio Goyaz de Poesia (São Paulo, 7Letras, 2006); Safra quebrada (reunião de livros anteriores e de dois  inéditos: Marimbondo (feliz) e Gleba dos excluídos (Brasília, Fundo de Apoio à Cultura, 2007); Momento crítico: textos críticos, crônicas e aforismos (Brasília, Thesaurus Editora, 2008); Vagem de vidro  (Brasília, Thesaurus Editora, 2013); Desmanche I (Brasília, Baú do Autor, 2018); Poética e  andorinhas (Brasília, Baú do Autor, 2018) e Descolagem (Goiânia, Editora Kelps, 2017), entre outros. Adelto Gonçalves - Brasil

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Certezas para as madressilvas, de Salomão Sousa. Brasília, edição do autor, 104 páginas, R$ 50,00, 2024. E-mail: salomaosousa@yahoo.com.br                                                                           

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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends (Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail:marilizadelto@uol.com.br





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