Em nova obra, o poeta reúne poemas que foram escritos sob a pressão do isolamento social
I
Se
contribuiu para evitar a propagação da epidemia de covid-19 (2020-2022), o
isolamento social forçado serviu também para que o poeta Salomão Sousa
produzisse os versos que compõem Certezas para as madressilvas
(Brasília, edição do autor, 2024). É o que ele confessa no prefácio que
escreveu para a sua obra: “Escrevi este livro no momento do ódio, no meio do
aquartelamento da descrença, na hora do vírus da morte. Esses elementos se
impregnaram na arte (...)”, disse.
Mais
adiante, acrescentou: “Numa hora em que as pessoas desprezam a si mesmas, há
preferência pela destruição da liberdade incentivada pelas aleivosias dos
escritórios da mentira. Estes poemas (e muitos outros) foram escritos quando as
pessoas deixaram de se reconhecer, de valorizar
os canais legítimos da existência e passaram a abarrotar os olhos com o
fascínio pela violência”.
Por aqui se
vê que há, ainda que de maneira subalterna, uma referência explícita, àquela
época em que o poder público estava nas mãos de trogloditas que, até o último
momento, por meio de mentiras, procuraram manter-se à frente dos negócios do País,
inclusive recorrendo ao apoio de uma turbamulta que depredou o patrimônio
público. A indignação do poeta com aquele tempo está expressa nestes versos do
poema “Diálogo com Sófocles”:
(...) Quem viu
aquele que se ajoelha / e ora em prantos ao deus pneu? / (...) Merece desterro
o que desonra / a sua Pátria, que desfoca os artigos da lei, / o fluir de uma
água até uma nação / e atrofia os pequenos músculos / de crianças irmãs
yanomanis. / É festiva a minha casa, / e, para que não a habite a desonra, /
não dá acolhida a golpes, a fuzis no forro. / Esforço-me para que um voto /
desintoxique-nos das inflamações da loucura / e à auspiciosa liberdade / não
venha contradizer o édito. (...) Quando deixarão de bater à nossa porta / os
arrotos dos trogloditas da mentira?
II
Obviamente,
a inspiração do poeta não veio apenas daqueles dias de angústia que a população
esclarecida viveu encurralada pelo regime nazifascista que assumira o poder pelo
voto de uma massa manipulada por mentiras. Até porque, como diz o jornalista
Euler Belém no texto de apresentação na contracapa, Salomão Sousa “é o tipo de
poeta cerebral, um construtor milimétrico – um engenheiro com a delicadez do
arquiteto – , que sabe que “secura” e “lirismo” não se excluem”, como se pode comprovar
pelos últimos versos do poema “Resposta à última pergunta de minha mãe”:
(...) Para rir a brisa usa a boca
da noite / só para as almas se acalmarem / Não sabemos quem sopra a brisa /
quem a dopou para que não revolva com força / Talvez venha da poerta do céu /
que foi aberta por Deus / para nos acolher com voz mansa.
Já a poeta Sônia Elizabeth, no prefácio que
escreveu para esta obra e que mais constitui uma “tentativa de ensaio”, aponta,
entre outras qualidades do autor, a sua preocupação em “observar e valorizar os
insetos, larvas e acidentes tais”, procurando “garimpar riquezas do chão, o
olhar voltado para o que passa desapercebido”. É o que se vê no poema “Casca de
casulo” em que ele diz:
(...) Se não tenho em mim a
mariposa, serei casca de casulo? / Sentir-se não é ser, mas me sinto nulo, oco
/ desentranhado de voos, / de facécias de visitas, / sem ânimo de me fixar até a chegada da veracidade. (...)
Quisera desenrolar em mim loucos lábios, asas, / e, se voasse, não sugaria
seiva, só a ânsia / de conhecer, de acolher-me no destino do vento. / Depois do
percurso, da avidez de destroçar, / casca vazia a assoviar entre teias / se não
sei se sou casulo às vésperas da mariposa.
Essa
preocupação com a natureza está presente até mesmo no título do livro que
remete para o poema “Destino óbvio do que somos” em que o poeta se refere à
madressilva, trepadeira conhecida por suas flores que nascem brancas e ficam
amarelas com o tempo, preechendo qualquer jardim ou amurada com o seu perfume. Assim
diz o poeta:
(...) Um voo para outro galho / e
um passo para outra casa. / Destino óbvio do que somos. / O que o colibri quer
da madressilvas / não é o que o homem quer / com a construção de uma cerca.
Enfim, são
poemas nos quais o autor procurou não contaminá-los com excesso de formalidade,
“com o conteúdo deletério desse tempo de indigência”. Antes, como diz no
prefácio, deixou agir a fúria de estar presente, de presenciar, de ser elemento
que pudesse contribuir para a expressão, mas sem ser falsário. Em outras
palavras: “Se a razão foi empurrada para o escuro, não são as madressilvas que
carecem de certezas, mas o homem presente, que não pode descarrilar do seu
destino”, conclui o poeta.
III
Nascido em Silvânia-GO, Salomão Sousa (1952) é formado em
Jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub). Aposentado do poder
executivo federal, vive em Brasília desde 1971. Estreou em 1979 com A moenda
dos dias, que mereceu resenha na revista da Universidade de Harvard/EUA. É
membro da Academia de Letras do Brasil (ALB), da Associação Nacional de
Escritores (ANE), ambas de Brasília, da Academia de Letras, Artes e História de
Silvânia-GO e da Academia Mundial de Letras da Humanidade (AMLH), de Santo
André-SP.
Em quase
meio século de trabalho literário, tem conquistado leitores tanto no Brasil
como no exterior, a exemplo de suas idas ao Peru, Chile e Equador, com
participação em uma antologia na Argentina e outra na Espanha. Também tem
admiradores na Cidade do México, onde participou de encontros com escritores
locais e estrangeiros e leu seus poemas.
Ainda em
2024, está publicando Poesia e alteridade (Brasília,
edição do autor), obra em que reúne dez
textos nos quais, entre outros temas, procura compreender a importância e o
alcance da poesia, exalta a produção dos poetas Anderson Braga Horta e
Alexandre Pilati, discute a recepção e o significado do romance Grande sertão:
veredas (1956), de João Guimarães Rosa (1908-1967), historifica a
trajetória dos principais integrantes da última geração de poetas goianos, da
qual é ilustre participante, analisa os romances O castelo
(1926), de Franz Kafka (1883-1924), e Sob os olhos do
Ocidente (1911), de Joseph Conrad (1857-1924), e, por fim, discute o
conceito de alteridade.
Em 2022,
publicou Bifurcações – memória, resistência e leitura
(Cidade Ocidental-GO, edição do autor), instigante texto em que procura mostrar
que a obra da poeta Cecília Meireles (1901-1964) ultrapassa os padrões
originais do Modernismo, corrigindo
várias informações a respeito de sua vida, além de outros ensaios e artigos
sobre outros temas igualmente atraentes.
Está também
na Antologia da nova poesia brasileira (1992), organizada pela poeta
Olga Savary (1933-2020), e em A poesia goiana do século XX (1998),
organizada por Assis Brasil (1929-2021). Foi um dos 47 poetas incluídos no
número que a revista Anto, de Portugal, dedicou, em 1998, à literatura
brasileira, em comemoração dos 500 anos da descoberta do Brasil.
Organizou
antologias, entre as quais Deste Planalto Central – poetas de Brasília, publicação
da 1ª Bienal Internacional de Poesia da Biblioteca Nacional de Brasília (2008),
Em canto cerrado e Conto candango, com escritores de Brasília.
Obteve o Prêmio Capital Nacional do Ano de 1998 de Crítica Literária. A União
Brasileira dos Escritores (UBE), seção de Goiás, concedeu-lhe o Troféu Tiokô
como personalidade goiana que mais se destacou fora do Estado no biênio
2010-2011.
É autor
ainda de Falo (Brasília, Thesaurus Editora, 1986); Criação de lodo
(Brasília, edição do autor, 1993); Caderno de desapontamentos (Brasília,
edição do autor, 1994); Estoque de relâmpagos, Prêmio Brasília de
Produção Literária (Secretaria de Cultura do Distrito Federal, 2002); Ruínas
ao sol, Prêmio Goyaz de Poesia (São Paulo, 7Letras, 2006); Safra
quebrada (reunião de livros anteriores e de dois inéditos: Marimbondo (feliz) e Gleba
dos excluídos (Brasília, Fundo de Apoio à Cultura, 2007); Momento
crítico: textos críticos, crônicas e aforismos (Brasília, Thesaurus
Editora, 2008); Vagem de vidro
(Brasília, Thesaurus Editora, 2013); Desmanche I (Brasília, Baú
do Autor, 2018); Poética e andorinhas
(Brasília, Baú do Autor, 2018) e Descolagem (Goiânia, Editora Kelps,
2017), entre outros. Adelto Gonçalves - Brasil
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Certezas para as madressilvas, de Salomão Sousa. Brasília, edição do autor, 104 páginas, R$ 50,00, 2024. E-mail: salomaosousa@yahoo.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e
Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a
voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003, São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp,
2015), Os vira-latas da madrugada
(Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra
Selvagem, 2015), e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. Escreveu
prefácio para o livro Kenneth Maxwell on Global Trends
(Londres, Robbin Laird, editor, 2024), lançado na Inglaterra. E-mail:marilizadelto@uol.com.br
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