As comemorações nacionais do V Centenário do Nascimento de Camões deverão constituir uma efeméride de incontestável relevância cultural e cívica. Entre outros acontecimentos já em curso, destaca-se a reedição num único volume da obra de Aquilino Ribeiro, Camões Fabuloso e Verdadeiro (1950), onde procedeu à clarificação de análises deturpadas e ao esclarecimento de situações romanescas para conseguir efeitos de exaltação patriótica e de arrebatamento sentimental.
Aquilino
provocou, na altura, uma das polémicas literárias mais ruidosas que marcaram
a segunda metade do século XX: pretendeu esvaziar os mitos, os lugares-comuns,
as ideias convencionais que se consolidaram, ao longo dos séculos. Capítulo a
capítulo foi “varrendo teias de aranha”, “removendo entulhos”, “demolindo
túmulos”. Em suma: todo um “romance mal urdido, falso no que respeita
à pessoa e destituído de senso quanto à verdade local”. Também era um
ataque direto aos intelectuais e aos políticos que zelavam pela continuidade
do regime de Salazar, a mais antiga ditadura da Europa. Aquilino não escondeu
o objetivo de romper não apenas com “aquilo que se ensinava na escola”,
mas desmontar a imagem de um filme de Leitão de Barros, destinado a “inebriar
as almas simples e megalómanas dos portugueses”, a fim de exibir um
Camões “fidalgo, palaciano, valente, denodado, heróico, belo homem”.
Foi
ainda muito mais explícito: Camões Fabuloso e Verdadeiro representava
uma oposição frontal às efabulações publicitárias dos que se “sentam à
mesa do Círculo Eça de Queiroz, hóspedes de António Ferro” para fazerem em
Portugal e, sobretudo, no estrangeiro, a propaganda política e cultural do
salazarismo que fabricava um Camões, tão diferente do que fora, pois “viveu
pobre e miseravelmente e assim morreu, segundo a legenda gravada na sua
sepultura”.
As três cartas
Aquilino
declarou, sem margem de equívocos, que não se alicerçara em materiais
inéditos. Limitara-se a “ler com olhos atentos” o que escreveram Teófilo
Braga, José Maria Rodrigues, Willerm Stork (traduzido por Carolina Michaelis),
Hernâni Cidade e José Régio. A principal fonte – assim o declarou – residiu
nas “três cartas particulares que restam do poeta”. “Não foi
empresa fácil” – confessou – “são verdadeiras e intrincadas charadas,
naquela forma criptográfica de dizer coisas qui ferait rougir un singe, e
porque esse hermetismo era de moda nas letras”.
Desmontou,
através de Camões Fabuloso e Verdadeiro, a origem aristocrática da
família para retratar o “espadachim de vielas de má nota nas horas vagas,
com entrada no paço, tu cá, tu lá com os grandes, amante feliz de umas
açafatas, enamorado de outras, estro sempre pronto para glosar um mote, numa
palavra um gentil homem pobre, mas invejável”. Examinou, em pormenor, tudo
quanto respeitava às primeiras edições d’ Os Lusíadas e à atividade
profissional do editor. Salientou algumas questões prioritárias: “o livro
sempre foi uma indústria precária em Portugal”. Os nomes celebrados n’ Os
Lusíadas e os seus descendentes, na esmagadora maioria “interessavam-se por
cavalos, galgos e mulheres e não sabiam cortar letra redonda. Nas escrituras e
atos tabelionais assinavam de cruz. O Padre Capelão supria-lhes a ignorância
em tudo o que contendia com as necessidades do espírito”. Vivia-se uma
época, “propícia à floração das letras”, pois “estava no choço
a grande e louca aventura” que terminaria na tragédia de Alcácer Quibir.
Existiam
– recorda Aquilino – “54 livreiros com balcão de venda em Lisboa; esta
designação compreendia os mestres afins, como cartonadores, brochadores,
tendeiros de folhetos de cordel, papeleiros etc. Cada exemplar d’ Os Lusíadas
foi taxado à razão de um cruzado, o que era um preço alto, proibitivo,
acessível apenas às bolsas endinheiradas”.
Camões
optou por António Gonçalves com oficina própria, na Costa do Castelo. Não
tinha o prestígio de outros impressores que lançaram obras de personalidades
de relevo oficial. Os Lusíadas, publicados em 1572, não incluíram
qualquer prefácio ou dedicatória. Apenas se lê na primeira página: “Com
privilégio real. Impressos em Lisboa com licença da Sancta Inquisição e do
Ordinário: em casa de António Gonçalvez, Impressor”. Outro pormenor
comentado até à exaustão pelos investigadores e analisado por Aquilino: a
disposição do pelicano, no alto da portada, o pelicano com o bico voltado
para a direita de quem olha; na outra edição possível do mesmo ano o
pelicano tem o bico voltado para a esquerda.
Vinte mil diferenças
Logo
nas primeiras estrofes, verifica-se que houve alterações. Possivelmente erros
de impressão ou modificações que o poeta quis introduzir no texto? José
Maria Rodrigues (1930) e Gondim da Fonseca (1972) detetaram numerosas gralhas e
desacertos. Trinta anos após a morte de Aquilino, numa pesquisa efetuada por
David Jackson – professor da Universidade de Yale – ao consultar 34 exemplares
d’ Os Lusíadas de 1572 existentes não só em Portugal e no Brasil, mas
em bibliotecas públicas e privadas dos Estados Unidos, Inglaterra, Itália,
Espanha, França e Alemanha, encontrou mais de duas mil diferenças. Numa longa
entrevista que me concedeu para o Diário de Notícias, David Jackson, concluiu
que apesar da colocação do pelicano para a direita ou para a esquerda, houve
uma única edição em 1572, possivelmente interrompida, devido a correções
realizadas pelo próprio punho de Camões.
Duas censuras
Vivendo
Aquilino num regime de censura, que cortava ou proibia indiscriminadamente o
conteúdo dos livros, dos jornais e revistas, as peças de teatro e as
produções do cinema – tal como no tempo da Inquisição – ocupou-se da
atitude dúplice do censor d’ Os Lusíadas, o dominicano Frei Bartolomeu
Ferreira que adotou dois comportamentos diferentes: por sua iniciativa ou por
ordem da Inquisição. Para a primeira edição, no entender de Aquilino, houve
conversações e reajustamentos entre o censor e o autor. No despacho que
exarou Bartolomeu Ferreira pode ler-se: “não achei neles (Os Lusíadas)
cousa alguma escandalosa, nem contrária à fé e aos bons costumes”.
A
propósito das narrativas pagãs, de versos incendiados de exaltação sexual,
nomeadamente no Canto IX, relativo à ilha dos Amores, o censor escreveu: “como,
isto é, poesia e fingimento, e o autor, como poeta, não pretende mais que
ornar o estilo poético, não tivemos por inconveniente ir esta fábula na
obra. E por isso me parece o livro digno de se imprimir, e o autor mostra nele
muito engenho e muita erudição nas ciências humanas”.
Contudo,
já depois da morte de Camões, numa segunda censura para a chamada “edição
dos Piscos”, publicada no domínio espanhol, no reinado de Filipe I
denunciou-se escandalosamente “a mão imperiosa e teologal” do mesmo
Bartolomeu Ferreira (...) que “emendou, transcreveu, suprimiu” (...),
introduzindo n’ Os Lusíadas “versos aleijados e de mau gosto”.
Camões: antes e depois
Aquilino
não se cansa de enaltecer “o poeta de sopro universalista e de alma
multimoda e eterna”. E também assinalava que, até Camões “nunca a
língua fora manejada com aquela agilidade e limpidez, aqueles ritmos de avena
culta, com flexões novas, pedidas ao latim, que lhe imprimiram elegância, sem
perda de vigor e com ganho de harmonia”. Portanto: estamos perante duas
línguas portuguesas – antes e depois de Camões.
Considerava
Os Lusíadas o “tombo poético da pátria portuguesa e um monumento
à nacionalidade”, “o poema da energia máscula, pagão e sensualista”,
tendo inscrito essa energia voluptuosa, e erótica na “ilha dos Amores”.
Considerava, ainda, que Luís de Camões nos legou “os sonetos mais admiráveis
da nossa língua” e as líricas “que, quanto mais se leem, mais perfume de
beleza se exala, daqueles ritmos de ouro e de cristal”.
A
obra de Aquilino, agora reeditada, pela Bertrand, num único volume, coordenado
por Eduardo Boavida, capa de Álvaro Carrilho e um prefácio da minha autoria,
integra um índice onomástico e um índice toponímico, para facilitar a
consulta e a leitura deste livro e localizar muitos aspetos primordiais. Os
Lusíadas, além da narrativa histórica, geográfica e mitológica, é um
exemplo, a todos os títulos notável, da sobriedade e nitidez dos conceitos,
sem resvalar na profusão de minudências e futilidades, na exuberância de
jogos vocabulares.
Ao
contrário de todas as outras epopeias universais, Os Lusíadas
oferecem-nos uma visão crítica das situações concretas do quotidiano, que
por motivos políticos, religiosos e literários têm sido, voluntariamente,
desfigurados. As palavras em Camões têm o poder de dialogar com os outros, de
estabelecer as aproximações necessárias para resistir às adversidades, e
promover os valores cívicos e culturais a fim de contribuir para a formação
de uma consciência coletiva. António Valdemar – Portugal in “Blog de São João del-Rei” com “O Figueirense”
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António Valdemar - Jornalista-carteira profissional número Um e
investigador; sócio efetivo da Academia
das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-Academia
Brasileira de Letras-cadeira nº 3
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