A
santista Lídia Maria de Melo, 66 anos, é professora, jornalista, advogada e
escritora; tinha seis anos quando a Polícia Marítima entrou no Sindicato dos
Operários Portuários nas Docas de Santos, onde seu pai era um dos diretores,
cresceu, ficou adolescente, estudou e se diplomou durante os 21 anos da
ditadura militar. Mas uma coisa sempre faz questão de frisar, seja nas
entrevistas ou nas palestras sobre essa longa experiência: uma criança de seis
anos entende o que seus pais vivem e sofrem, como foi o caso do seu pai com
prisão, separação da família, perda de trabalho e vigilância policial.
Ela
se lembra das visitas que fazia ao seu pai no navio-prisão Raul Soares,
ancorado no estuário do porto de Santos, de sua mãe com sua irmãzinha-bebê no
colo, ela e sua irmã subindo pela escada junto ao casco do navio, e do medo que
tinha de cair. Por isso, escreveu um livro no qual conta, na primeira parte,
sua experiência nos primeiros anos difíceis, da adaptação da mãe e suas duas
irmãs à nova realidade. De repente, sua mãe foi obrigada a assumir a educação
das filhas, a manutenção da família e, ao mesmo tempo, cuidar da filha
recém-nascida. Quando o pai foi libertado, não conseguia emprego e vivia sob
vigilância, tinha de exercer atividades independentes mal remuneradas.
O
livro teve o título de Raul Soares, um Navio Tatuado em Nós. A idéia
desse título lhe veio ao pensar naqueles meses em que escalavam o casco do
navio numa escada de corda para ver o pai, Os judeus vítimas do holocausto,
presos nos campos de concentração pelos nazistas, tinham no braço seu número de
identificação tatuado. As imagens daquele navio, daquela escada de corda
balançando, o medo de caírem, o pai preso lá em cima, sem poder sair, ficaram
gravadas como que tatuadas nas suas lembranças, nos seus cérebros, nas suas
vidas.
Na
primeira parte do livro, são registros da memória do que foi acontecendo na
vida da família desde o 31 de Março de 1964 e, ao mesmo tempo do contexto
nacional, o que ia acontecendo no Brasil e mesmo sua vida na escola e depois na
Faculdade. Inclui também quatro poemas relacionados com diversas situações.
"Quando acabou a ditadura em 1985, eu estava terminando minha segunda
Faculdade, a de Jornalismo, depois de ter terminado a de Letras. Já era
professora primária e dava aulas na rede estadual de ensino. Meu mestrado, na
USP, em comunicação e artes, foi sobre a influência dos jornais no processo de
surgimento de novas palavras na língua portuguesa".
A
segunda parte do livro consta de depoimentos de seu pai sobre vida sindical,
colhidos quando saiu da prisão. Ela conta que a família vivia em dois mundos
paralelos: na escola, muitos professores falavam ou contavam coisas diferentes
das vividas por eles na realidade. E sua mãe, cuidadosa sempre advertia: não
falem lá fora sobre o que conversamos aqui dentro de casa, pode chamar a
atenção sobre nós.
Lídia
Maria e Adelto não se conheceram nesses anos, mas, guardada a diferença de
idade, cursaram a mesma escola primária do Sindicato dos Trabalhadores das
Docas de Santos. Mais tarde, já jornalistas, foram professores de jornalismo na
Faculdade Católica Unisanta de Santos.
Lídia
Maria começou sua carreira jornalística no jornal Cidade de Santos, hoje não
mais existente, antes de ir para A Tribuna. O jornal publicou com destaque em
19 de outubro de 1997, com foto, a obtenção por Lídia Maria do Prêmio
Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos com o conto Bala
Perdida sobre as últimas horas de vida de uma criança de dez anos.
Em
outubro deste ano, Lídia Maria irá publicar um livro político de memórias e
análises sobre os anos da ditadura. O título ainda não foi escolhido. Rui Martins
– Suíça
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Rui Martins é jornalista, escritor,
ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento
internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação
da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda
Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas
suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica
da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED,
l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et
Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito
na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil
e RFI.
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