Observada
a trégua, pedida pelo presidente Lula, de se evitar uma barulhenta
anti-comemoração dos 60 anos do golpe militar do 31 de março de 1964, a
realidade com fatos atuais nos obriga a comentar senão o tema, pelo menos atos
semelhantes e até mais mortíferos, numa área circunscrita - a Baixada Santista.
Há
60 anos, a Polícia Marítima com seus uniformes azuis claro e coturnos brancos
invadia, portando metralhadoras, todas as entidades sindicais da região
santista, como o principal Sindicato dos Portuários Trabalhadores das Docas de
Santos, prendia diretores, doqueiros e os transferia para uma prisão flutuante,
o navio Raul Soares, onde ficaram presos, depois de interrogatório e tortura.
Ora, nestes últimos meses, a Baixada Santista numa extensão que chega ao
Guarujá, tem sido alvo de ataques de comandos policiais, de caráter
vindicativo, nas chamadas áreas perigosas, habitadas por favelados, pobres e
negros, atos denunciados por organizações de defesa dos direitos humanos à
imprensa e inclusive à Comissão de Direitos Humanos da ONU. Esse clima nos
relança a 1964.
Há
ainda testemunhas vivas, 60 anos depois, do Golpe de 1964, na cidade portuária
paulista de Santos, onde as atividades sindicais e políticas eram bastante
ativas desde a queda da ditadura de Vargas, chegando mesmo a ser chamada de
Cidade Vermelha?
Muita
gente já esqueceu a vitória do Partido Comunista do Brasil, legalizado logo
após o retorno do Brasil à democracia em 1945, nas eleições para a Câmara
Municipal de Santos, elegendo mais da metade dos vereadores. O estádio do
Santos ficou repleto quando o Cavaleiro da Esperança, recém-libertado de uma
longa prisão, Luís Carlos Prestes, fez ali um de seus primeiros discursos.
Eleito senador, teve seu mandato cassado, em 1947, assim como foram cassados os
mandatos de 14 deputados federais e dos 18 vereadores eleitos em Santos, após o
cancelamento do registro do PCdoB pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Apesar
de passados 60 anos, existem sim, em Santos, muitas testemunhas vivas do Golpe
de 1964. Achei duas e começo com Adelto
Gonçalves, hoje com 72 anos, que foi jornalista dos jornais A Tribuna de
Santos, Cidade de Santos, Estadão e professor de Comunicações na Faculdade santista, além de ter escrito, entre outros,
um livro (foi o seu primeiro livro, ainda adolescente) sobre a vida de pessoas
vivendo e trabalhando no cais santista na época do golpe militar de 1964. Isso
inclui estivadores, portuários, transportadores, donos de botecos, hotéis
treme-treme, dançarinas e prostitutas.
Seu
testemunho vale a pena ser conhecido, mesmo porque sob outras formas e em
retaliação à morte de policiais, a truculência policial retornou atualmente à
região da chamada Baixada Santista, com o ex-secretário de Segurança Guilherme
Derrit, responsável por duas Operações de envergadura, que põem na prática o
lema bolsonarista "bandido bom é bandido morto", com a liquidação de
76 pobres e negros. E com o governador Tarcísio de Freitas dizendo, numa
entrevista coletiva "se quiserem vão se queixar na ONU, não estamos nem
aí!"
Adelto
Gonçalves, jornalista, escritor e crítico literário, tem boa memória: em 1961,
ao terminar o curso primário entre os três melhores alunos, foi cumprimentado
pessoalmente pelo presidente João Goulart, que visitava a cidade e esteve na
escola primária do Sindicato dos Trabalhadores Portuários. Ele ainda se lembra
da mão suarenta do presidente, deposto três anos depois, mas era ainda muito
criança para entender as agitações criadas com o movimento pelas Reformas de
Base.
Em
1964, frequentava o curso ginasial do Colégio Comercial Coelho Neto, onde,
também se lembra, uma professora procurava sensibilizar alunos para
participarem das manifestações da União Cívica Feminina contra as Reformas de
Base do governo Goulart. Adelto tinha 12 anos e morava com seus pais num prédio
defronte do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, na rua General
Câmara. Foi da janela que viu chegarem os soldados de uniforme azul-claro da
Polícia Marítima de metralhadora e entrarem no Sindicato. Depois de muito
barulho e de ouvir vidros quebrados, viu os diretores e funcionários do
sindicato saírem do prédio, passarem por um corredor polonês recebendo safanões
e subirem num caminhão coberto, sendo conduzidos ao presídio local e depois ao
navio-prisão Raul Soares. O navio ficou atracado durante sete meses, junto à
Ilha Barnabé, no estuário em frente ao Porto de Santos.
Adelto
teve a reação de ir anotando tudo quanto ia vendo e ouvindo e, seis anos
depois, utilizou seus rascunhos para escrever as bases do seu primeiro livro,
Os Viralatas da Madrugada, lançado em 1981, com apresentação do jornalista e
escritor de esquerda Marcos Faerman. Embora o livro já tivesse sido impresso
com o prefácio de Faerman, a editora José Olympio decidiu arrancar manualmente
as duas páginas iniciais com o texto de Faerman por receio do livro ser
considerado subversivo e retirado das livrarias, mesmo se havia ganhado menção
honrosa como romance no prêmio José Lins do Rego. Uma nova edição foi feita
pela Editora Letra Selvagem em 2015.
Faerman,
no seu prefácio escrito em plena ditadura, citava a frase de um general de que
a história era escrita pelos vencedores. Puro engano do general, alguns anos
depois o Brasil voltou à democracia e o aprendizado, nos 21 anos de ditadura,
nos livrou de uma recente nova tentativa golpista. Donde a oportuna frase de
Milan Kundera, citada no prefácio de Faerman, mas ainda hoje válida e aplicável
nas lembranças do Golpe de há 60 anos: "a luta do homem contra o Poder é a
luta da memória contra o esquecimento".
Os
Viralatas da Madrugada não é um livro político e ideológico, mas um romance
contra a miséria e desesperança vividas pelas personagens frequentadoras do
cais do porto de Santos, no bairro do Paquetá. Um relato cru naturalista e
realista da "boca do lixo" local, com seus proxenetas, suas
prostitutas, frequentadores de bordéis, numa região também plena de atividades
sindicais na qual existem referências à Coluna de Prestes e prisões de
sindicalistas transferidos para um navio, onde são interrogados, torturados
física e psicologicamente, dentro do quadro do Golpe instaurado em 1964. O
próprio autor cita semelhanças no seu livro com o estilo de Jorge Amado, Plínio
Marcos e o francês Jean Genet. Rui Martins – Suíça
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Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador
do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas,
que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos
emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da
corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto
Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do
Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de
Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de
Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso
de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
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