O
Presidente da Associação France Timor-Leste, Carlos Semedo, deu uma entrevista
ao programa “Expressões coletivas” do LusoJornal, onde disse que a luta pela
independência de Timor foi provavelmente a única vez em que a Comunidade
portuguesa de França se exprimiu sobre assuntos políticos.
“Expressões
coletivas” é um programa realizado em parceria com a Coordenação das coletividades
portuguesas de França (CCPF) e Lurdes Rodrigues entrevistou esta semana a
Associação France Timor-Leste, sediada em Paris, e que dá continuidade ao
movimento Agir por Timor, criado em 1989, numa época em que o mundo estava
comovido com a tragédia do povo timorense.
Este ano comemora-se o 20º aniversário da Independência
de Timor. Como surgiu a associação Agir por Timor?
CS - Timor
foi uma colónia portuguesa até 1974. Estava a caminhar para a independência, em
74-75, quando foi ocupada de uma maneira extremamente violenta pelos vizinhos
indonésios que enviaram forças armadas, com todos os meios disponíveis. Nos
anos de ocupação, até 88-89 dizimaram cerca de 40% da população de Timor, uns
diretamente, no combate, outros pela fome. A situação era extremamente difícil,
era uma tragédia para o povo de Timor, e uma tragédia ainda maior porque estava
fora da informação internacional. Não havia autorização para os jornalistas
internacionais irem a Timor, a não ser, evidentemente, aqueles que iam
conduzidos pelo próprio Exército indonésio, para dizerem que tudo ia bem.
Nenhum outro jornalista internacional pode entrar lá desde o momento da
ocupação até 1989.
Então, o que aconteceu em 1989?
CS - Em
1989 aconteceu quase um milagre! O Papa João Paulo II resolveu anunciar que ia
à Ásia e que ia estar na Indonésia e em Timor. Com ele seguiu uma comitiva de
jornalistas de vários países, entre os quais alguns jornalistas franceses. Nós
estávamos mais ao corrente da situação do que se estava a passar em Timor,
porque havia aqui já um pequeno grupo que se chamava “A Paz é Possível em Timor
Oriental”, uma associação de solidariedade para com Timor Oriental. Era um
grupo muito reduzido e nós decidimos criar um movimento público para manifestar
nas ruas de Paris e junto de instituições em França. Porque havia também, em
França, pessoas que estavam a seguir o que acontecia em Timor. Foi o arranque
da nossa associação. A constituição da associação Agir por Timor coincidiu
precisamente com a altura em que o Papa estava em Timor. Nós organizámos aqui
em Paris uma primeira manifestação, uma conferência de imprensa, e fomos
distribuir panfletos para o Parvis des Droits de l’Homme [ndr: no Trocadero],
em várias línguas, para alertar a opinião pública internacional, com os nossos
fracos meios, para lançar esse momento de chamada de atenção sobre o que se
estava a passar em Timor.
Como se desenvolveu a associação Agir por Timor?
CS - A
associação Agir por Timor procurou encontrar parcerias com várias associações,
com várias ONG francesas e desde o início ficámos em contato com as associações
portuguesas e com o movimento associativo português aqui de Paris. E essa é uma
particularidade, porque em França, a solidariedade para com o povo timorense
teve a implicação das associações portuguesas e de outros movimentos
portugueses que estavam aqui, em particular queria salientar que foi um papel
muito importante o das associações afiliadas na CCPF e o da própria CCPF [ndr:
Coordenação das Coletividades portuguesas de França] que acolheu, durante mais
de 10 anos, o Centro de documentação sobre Timor-Leste, onde trabalhou uma
pessoa a meio tempo, a receber jornalistas, estudantes… A história da
associação France Timor-Leste é inseparável da história da CCPF. Até 2002, os
Portugueses estiveram sempre presentes neste movimento.
A associação era só constituída por Portugueses?
CS - Havia
Portugueses, Franceses e até Indonésios, no início havia também Marroquinos,
enfim havia várias pessoas. Individualmente eram pessoas muito conhecedoras,
mas enquanto estruturas associativas, aquilo que deu a participação maciça na
rua, foi a presença portuguesa. As associações, mas não só, também o Sindicato
dos professores de português no estrangeiro participou sempre nas nossas
atividades, o Sindicato dos trabalhadores consulares, as Universidades onde
havia leitorados de português e as Associações de estudantes lusófonos, os
Jornalistas de língua portuguesa aqui na região parisiense e não só. A
associação Agir por Timor fornecia informação, intervinha em quase todas as
rádios comunitárias que havia ao sábado e ao domingo por essa França inteira,
nós estávamos muito presentes nesses pequenos media locais, que tocavam a
Comunidade portuguesa.
Havia então associações, sindicatos, rádios,…
CS - Eu
queria destacar o grupo de jornalistas que trabalhavam na altura na Radio
France Internacionale (RFI), onde há programas em língua portuguesa para os
emigrantes de França, mas também para o Brasil e para a África, assim como as
emissões em língua francesa para o mundo inteiro. Nós estávamos em contato com
toda esta gente, eles estavam extremamente atentos ao que lá se passava e
acompanharam-nos na nossa atividade. Havia também pontos de apoio que não eram forçosamente
associativos, como por exemplo o João Heitor, que tinha uma livraria no
Quartier Latin [ndr: a livraria LusoPhone, na rue du Sommerard]. A livraria do
João Heitor era um ponto de encontro, de discussão e de difusão de informação
sobre Timor. Ali cruzava-se muita gente que vinha das associações, das
universidades, dos movimentos políticos… era uma espécie de zona de convívio
intelectual e militante.
Então como vai ser comemorado do 20º aniversário da
Independência?
CS - No dia
12 de novembro temos uma iniciativa que celebra uma data infelizmente trágica,
que foi o massacre de Santa Cruz, no cemitério de Díli, que teve a
particularidade de ter sido filmada por um jornalista, Max Stahl, que faleceu
há 1 ano [ndr: faz hoje, dia 28 de outubro precisamente um ano que faleceu].
Ele filmou esse massacre e difundiu as imagens no exterior. Em 1991 houve uma
espécie de sobressalto em Portugal e na opinião pública em geral sobre a
questão de Timor. Foi uma espécie de redescoberta de duas coisas: primeiro que
o assunto de Timor não estava encerrado, Timor não tinha sido pacificado,
integrado na Indonésia, havia uma resistência forte em Timor. Segundo, era a
juventude timorense que estava a resistir, a parte mais viva do país estava na
rua, a protestar contra a invasão e isso foi uma espécie de choque emocional
para muita gente que pensava que a situação de Timor já tinha sido resolvida.
Foi um incentivo para muita gente, como nós, para retomar o combate e
prosseguir.
Essa foi então outra data importante…
CS - A primeira
data importante foi a de 1989, com a visita do Papa, depois, em 1991 foram as
manifestações e o filme de Max Stahl. Em 1996 foi o Prémio Nobel da Paz,
atribuído a José Ramos Horta e ao Bispo D. Carlos Ximenes Belo. Tudo isto foram
incentivos e em 1998-99 foi aquilo que se esperava há muito tempo. A ditadura
militar que estava instalada na Indonésia e que tinha massacrado não só
Timorenses, mas os próprios Indonésios, foi desmantelada pela própria juventude
indonésia que veio para a rua para exigir o fim daquela ditadura. Isso permitiu
abrir novamente o dossier de Timor-Leste, com Portugal pronto para negociar com
a Indonésia e com a ONU a ser o sítio de acolhimento das negociações.
Até ser constituído um Governo provisório da ONU.
CS - Em
1999 acontece o referendo, uma consulta popular feita aos Timorenses, que foram
finalmente consultados pela ONU, sobre se queriam continuar integrados na
Indonésia ou se queriam a Independência, e de maneira maciça, 80% dos
Timorenses que puderam votar, votaram pela Independência. A seguir veio
efetivamente um período de transição, em que a Indonésia regressou para o país,
deixando Timor completamente destruído. Foi necessário reconstruir Timor a
partir das cinzas e isso foi obra da ONU até 2002. Há um Governo de transição
de que fazem parte altos funcionários da ONU, o mais conhecido foi o Brasileiro
Sérgio Vieira de Melo, mas havia outros de outras nacionalidades. Era um
Governo internacional. Entretanto houve eleições e um Presidente foi eleito
democraticamente: Xanana Gusmão. Foi eleito por uma esmagadora maioria da
população e o poder foi transmitido da ONU para o novo Presidente eleito em
2002.
É nessa altura que acaba a associação Agir por Timor e
nasce a Associação France Timor-Leste?
CS - A
associação France Timor-Leste foi criada no dia 20 de maio de 2002, no Senado
francês, em Paris, precisamente no dia em que a Independência foi proclamada em
Timor. A associação tem o mesmo número de anos de vida que o próprio país. De
realçar que Timor foi o primeiro país do terceiro milenário, é um dos países
mais jovens no mundo e nós temos um certo orgulho, hoje, de termos ajudado,
modestamente, com os nossos pequenos meios, mas de termos ajudado nessa
caminhada e Timor, embora seja um país com muitas dificuldades, porque é pobre,
subdesenvolvido, acaba por ter aspetos extremamente avançados, como por
exemplo, do ponto de vista das liberdades e direitos humanos, é certamente um
dos países mais avançados da Ásia, porque fez a sua Constituição mais
recentemente, com standards internacionais… Por exemplo, em Timor, a igualdade
da mulher é um facto transversal, constitucional, desde a Independência. Há uma
percentagem de Deputadas muito elevada, até em relação aos países da Europa.
Este é um aspeto positivo, mas há muitas dificuldades, porque não têm recursos,
ainda não têm uma possibilidade de governança, como acontece num país antigo
como são os nossos países europeus.
O que difere a associação France Timor-Leste da
associação Agir por Timor?
CS - Até
2002, muitas vezes nós fomos os porta-vozes dos Timorenses aqui em França.
Falávamos em nome dos Timorenses, embora não fôssemos Timorenses. A partir do
momento em que existe uma diplomacia timorense e um Governo eleito, com
Parlamentares, nós deixámos de ter qualquer papel de representatividade de
Timor e passámos a ser uma associação de solidariedade para com Timor, passámos
a desenvolver alguns projetos, como por exemplo a implementação da
escolaridade, construiu-se uma escola em Timor com o apoio da Federação das
associações portuguesas de França (FAPF) e da UNESCO, foi construída uma escola
numa zona onde o Governo não tinha previsto construir, ajudámos a formar
Timorenses para se tornarem professores de língua francesa, ajudámos a
implementar o ensino da língua francesa, apoiámos com bolsas de estudo alguns
casos pontuais de estudantes timorenses que não tinham meios para avançar,
desenvolvemos uma estratégia de apoio aos pescadores da ilha de Ataúro, para
melhorarem as técnicas de pesca… Isto é, tomámos algumas iniciativas e uma
série de projetos durante cerca de 10 anos. Depois, reduzimos a nossa
solidariedade lá e continuámos a desenvolver aqui ações que permitem dar a conhecer
Timor.
De que tipo de projetos está a falar?
CS - Temos
feito a edição de livros. Por exemplo, todos os livros do Luís Cardoso, um
escritor timorense baseado em Lisboa – que ganhou no ano passado o Prémio
Oceanos, que é o segundo maior prémio de língua portuguesa – vão sendo
publicados em francês e vários, os últimos e o próximo, que já está traduzido e
que vai sair agora, faz parte das nossas intenções para a celebração do 20º
aniversário. Chama-se “O Plantador de Abóboras” e a tradução francesa é da
Catherine Dumas, que é membro da associação. O livro deve sair no início de
2023.
Quais foram os momentos que mais o marcaram nestas ações
sobre Timor?
CS - Foram
as manifestações. Sobretudo as manifestações de setembro de 1999. Foi uma coisa
impressionante, estávamos em permanência em frente da Embaixada da Indonésia,
todos os dias, todo o dia, com comícios, intervenções, deslocações à Embaixada,
protestos e uma grande manifestação na Place de la Bastille, em setembro de
1999, também com uma quantidade impressionante de gente e até uma outra em
frente do Banco Mundial. Mas há um momento que me parece interessante: quando
Suharto, o antigo ditador indonésio veio a Paris – não na qualidade do
Presidente da Indonésia, mas porque era, na altura, o Presidente do Movimento
dos não-alinhados – no final dos anos 90, um pouco antes de cair da cadeira,
para utilizar uma linguagem portuguesa, ele estava instalado no Hotel Crillon e
nós organizámos uma manifestação na Place de la Concorde, exatamente em frente
da janela, no primeiro andar, onde estava o Presidente Suharto. No meio da
nossa manifestação estavam todos os funcionários da Indonésia aqui em Paris, a
filmarem e a fotografarem para nos impressionarem. Estavam a tentar remover a
nossa vontade. É inesquecível para mim e para alguns de nós, porque fomos
presos pela Polícia francesa e fomos identificados no Comissariado mais
próximo. Não houve consequências, mas não tinha sido pedida autorização para a
manifestação, evidentemente, porque não teríamos tido autorização. Decidimos
fazer uma manifestação ilegal e fizemos muito bem. Ora, alguns anos mais tarde,
em 2002, Xanana Gusmão recebeu o prémio da UNESCO pela luta pela paz, o Prémio
Félix Houphouët-Boigny e veio aqui a Paris para receber esse prémio em 2003.
Quando o Presidente Jacques Chirac soube que Xanana Gusmão vinha a Paris,
transformou a visita à UNESCO, numa visita de Chefe de Estado e Xanana Gusmão
foi, evidentemente, com a comitiva dele, exatamente para o primeiro andar do
Hotel Crillon. E foi um dos grandes prazeres da minha vida: estar ao lado de
Xanana Gusmão, na mesma varanda onde tinham estado os Indonésios a filmarem-me,
quando eu estava a manifestar na Place de la Concorde, com os meus companheiros
da associação Agir por Timor. Este é um momento muito simbólico.
Era então uma associação de lobbying…
CS - A
nossa associação foi desenvolvendo várias atividades de lobbying, junto
das autoridades francesas e internacionais. Depois disso, houve algumas
dificuldades em Timor, nos anos 2000, porque era um país muito novo, não havia
uma elite muito coesa, havia fricções, partidarismos, houve um início de guerra
interna, e nós tivemos uma precaução em não nos ingerirmos, de maneira nenhuma,
nos assuntos internos de Timor. Porque houve muita gente que perdeu a vida pela
independência de Timor e nós tínhamos de ser os primeiros a respeitar essa
Independência.
Estes dias foi organizado um colóquio sobre os anos de
solidariedade com Timor onde participou a associação e o Carlos Semedo fez uma
intervenção sobre o papel das Comunidades portuguesas de França na
solidariedade para com Timor. O foi lá dizer?
CS - Essa
foi uma maneira de celebrar o 20º aniversário da Independência, foi participar
nesse Colóquio internacional que teve lugar na Fundação Oriente, em Lisboa, para
fazer uma resenha histórica do que foram os 25 anos de solidariedade
internacional para com os Timorenses. A minha intervenção foi sobre um ponto
que tem sido pouco estudado: em geral, a solidariedade em cada país é dirigida
por nacionais do próprio país, em França, houve uma distorção sobre isso porque
foram os Franceses, claro, houve até Indonésios que estavam exilados aqui, mas
houve sobretudo muita gente portuguesa que teve um papel de primeiro plano
nessa solidariedade. Foi a primeira vez que isso foi apresentado em público
para ser discutido. A emigração portuguesa em diapasão com o que se estava a
passar em Portugal e que ia acompanhando através dos órgãos de comunicação
social. Nunca nenhuma associação me disse ‘não quero falar em Timor’, e consultei
centenas delas, nunca ninguém me disse ‘não quero’. Às vezes diziam-me ‘não
tenho meios’, mas nunca me disseram que não. Quem esteve muito envolvido foram
precisamente os jovens, a juventude que estava na universidade, jovens
trabalhadores portugueses, a Cap Magellan, em cujo Fórum houve todos os anos
intervenções e um stand da nossa associação, sempre se falou de Timor na Rádio
Alfa, havia um grupo de jovens que faziam programas e uma boa parte deles
faziam parte da associação Agir por Timor. Os estudantes lusófonos estavam
extremamente implicados. Eu lembro-me de uma ida a Strasbourg, que foi
espetacular, na Universidade, era uma Semana de cultura portuguesa em que os
estudantes lusófonos tiveram um papel enorme, a mesma coisa na Universidade de
Pau. Foi provavelmente a primeira vez em que, enquanto portugueses, a
Comunidade se exprimiu sobre um assunto político, saindo dos interesses
imediatos da própria Comunidade. Timor não fazia parte dos interesses imediatos
da Comunidade, não tratava da cultura portuguesa, nem tratava do ensino do
português aos filhos dos emigrantes, tratava de um assunto diferente e foi
provavelmente o único momento em que houve uma espécie de consenso da
Comunidade portuguesa em França sobre um assunto que foi extremamente político,
uma questão de Direito internacional, uma questão de Direitos dos Homens e foi
aquilo que eu tentei dizer nesta conferência internacional.
Estão previstos mais eventos sobre os 20 anos da
Independência de Timor?
CS - Vamos
então editar o livro “O Plantador de Abóboras” de Luís Cardoso, que vai ser
editado em breve em França. Há um outro livro sobre uma história escrita por um
francês, no século 19, mas que se passa em Timor e nós vamos certamente
publicar. Tínhamos uma série de projetos, mas com o Covid, eles foram
impossíveis. Alguns ainda se podem realizar, como uma homenagem, por exemplo,
ao Max Stahl. Temos entrevistas exclusivamente em língua francesa que foram
montadas por um realizador de Marseille, que está a terminar um filme sobre
Timor. Há uma atividade parlamentar franco-timorense e nós temos colaboração
com a Assemblée Nationale, francesa assim como com um grupo de investigadores
do CNRS que trabalham em permanência em Ataúro, há uma série de projetos que
não posso desenvolver agora.
Para
acompanhar as atividades da associação, basta seguir o blogue aqui. Pode contactar por mail: francetimorleste@gmail.com. Lurdes
Rodrigues – França in “LusoJornal”
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