Aquele que se transformou no “grande evento popular de Macau” faz 25 anos amanhã. O Festival da Lusofonia surgiu de um convite da Câmara das Ilhas e começou por juntar membros das diferentes comunidades dos países de língua portuguesa. Mais tarde, surgiram as associações que hoje fazem do festival um encontro de diferentes culturas. O Jornal Tribuna de Macau falou com actuais ou anteriores líderes de várias associações dos países lusófonos que contaram as suas memórias dos primeiros anos, o que esperam para o futuro e qual o significado desta festa que junta milhares de pessoas nas Casas Museu da Taipa
O
Festival da Lusofonia celebra amanhã o seu 25º aniversário – são 25 anos de
história, de convívio, de intercâmbio cultural, mas também de “alguns
braços-de-ferro”. Tudo começou com um convite da Câmara Municipal das Ilhas
dirigido às comunidades dos países de língua portuguesa para começar aquela que
viria a ser a maior festa do mundo lusófono no território. Na altura, as
associações que hoje fazem o Festival da Lusofonia ainda não tinham sido
criadas.
Ao
Jornal Tribuna de Macau, a presidente da Casa de Portugal recordou que a
criação e continuidade do festival estavam envoltas em muitas incertezas. “Isto
começou com uma iniciativa da Câmara das Ilhas, foi muito em cima da transição
e havia dúvidas sobre se tinha pernas para andar. O que é certo é que foi
crescendo e transformou-se no grande evento popular de Macau. A história é
longa e é uma história de alguns braços-de-ferro, mas no fundo [o festival]
teve sempre uma saída positiva e isso é que é importante”, afirmou Amélia
António.
Na
sua perspectiva, essa percepção é partilhada por todas as associações, apesar
de todos os anos haver “grande frustração” nos apoios e na forma como muitas
coisas foram tratadas. “Muitas vezes tivemos de fazer pressão para que as
coisas se desenvolvessem, mas acho que isso faz parte da História e o que é
importante é que tenha sido um grande evento popular sempre em crescimento”,
prosseguiu. Para Amélia António, os braços-de-ferro “valeram a pena”.
Jane
Martins, presidente da Casa do Brasil, recordou que na altura foi convidada
como cidadã brasileira a viver em Macau – a Casa do Brasil só seria criada mais
de 10 anos depois. “Telefonaram para mim e pediram se podia participar como
representante da comunidade brasileira, porque naquela época não havia muitos
brasileiros aqui, então iniciámos a primeira edição. Naquela época não havia
assim o subsídio para fazer grandes decorações, e não tínhamos muitas ideias.
Lembro-me de que disseram para pormos produtos brasileiros, que podíamos
vender, que podia ser comida”, afirmou.
Foi
já na altura que surgiu a ideia das caipirinhas, que se mantém até aos dias de
hoje como a principal atracção da barraca do Brasil. “Pensámos que aqui nos
restaurantes e nos bares não se vendia caipirinha, e como não havia cachaça
também, a gente decidiu fazer com vodca, então tivemos a ideia de fazer
caipirosca”, contou Jane Martins. A fama começou a aumentar ano após ano e em
2009 o Brasil passou a ser representado pela associação.
Outra
das memórias que Jane Martins tem é de que no primeiro ano, em que choveu
torrencialmente num dos dias, as barraquinhas eram “muito fracas”. “Trouxemos
cá bailarinas de samba do Japão, eles queriam que trouxéssemos um ‘show’
brasileiro, então a gente conseguiu. Havia muita chuva, mas a festa realizou-se
na mesma”, acrescentou.
Elias
Colaço, que já esteve à frente da Associação de Goa, Damão e Diu, estava também
no território quando se deu início ao festival. “Na altura não havia todas
estas associações que há hoje. Fizeram um convite às pessoas e a minha família
– a minha mãe e os meus tios – esteve muito envolvida. Agora as coisas estão
muito diferentes e ainda bem. Mas, era muito engraçado, na altura avançava-se
primeiro com o dinheiro e depois eles repunham e a construção das barracas era
muito feita por carolice. No nosso caso, o meu tio é que fazia os desenhos e
durante os primeiros anos fizeram-se stands temáticos”, apontou em declarações
a este jornal.
Uma
réplica de uma caravela da época, uma reprodução do fortim do mar de Diu e a
porta dos vice-reis de Goa foram alguns dos temas dos primeiros anos.
“Acompanhei a construção de alguns stands e era estarmos ali a noite inteira,
no Carmo, até às seis da manhã. Serrar, cortar, pregar, pintar e tudo mais”,
recordou. “A parte dos cozinhados era distribuída um bocadinho por todos, a
minha mãe fazia umas coisas e outros faziam outras”.
Correr o mundo no espaço de centenas de metros
Para
Elias Colaço, o Festival da Lusofonia é “um evento fantástico”. “Adoro a
Lusofonia, gosto imenso de lá ir, gosto imenso de lá estar. Vou para lá e
venho-me embora quando as portas fecham. É uma coisa fantástica tomar a noção
de que naquele espaço de 200 a 300 metros corremos o mundo e passamos por
vários continentes. Numa simples rua percorremos vários continentes e isso é
uma coisa que só a Lusofonia consegue”, sublinhou.
Afirmando
que o evento “é muito importante” para Macau, Elias Colaço lembrou que o
interesse da comunidade chinesa relativamente ao Festival da Lusofonia tem
crescido cada vez mais. “É muito importante porque são comunidades que existem
e estão presentes em Macau há muitos anos e que têm dado o seu contributo
cultural para Macau. E mais: do que tenho notado nos últimos anos, há um
aumento de interesse da população chinesa, tanto local como não local, no
festival”, prosseguiu.
Apesar
do interesse crescente, Elias Colaço apontou que, devido à pandemia, nos
últimos anos tudo tem sido feito “com a prata da casa”. Ainda assim, acredita
que o Festival da Lusofonia tem pernas para continuar a andar, até porque “tem
muito que ver com a política de aproximação da China aos países de língua
portuguesa”. “Acho que ainda vai durar muitos anos. Se não mais 25, mais
alguns”, concluiu.
Ada
Sousa, presidente da Associação de Amizade Macau-Cabo Verde, disse ter “alguma
reserva” quando questionada sobre se o festival duraria mais 25 anos na RAEM.
“Não sei, muito sinceramente, até porque neste momento, por causa da covid, as
fronteiras não estão abertas e temos sentido alguma falta de pessoal em termos
logísticos. Precisamos de sangue novo e em Macau as pessoas têm saído”,
lamentou.
Na
sua opinião, a participação das pessoas que vêm do exterior, é uma parte muito
importante do festival, mas que há quase três anos não existe. “É sempre uma
grande alegria quando vêm pessoas dos países lusófonos porque trazem música,
anedotas, contos, e uma pessoa sente que está em Macau, mas que está em casa,
que estamos lá. É bom ter pessoas de fora para vir mostrar a cultura de cada um
dos países, para sentirmos que Macau é verdadeiramente uma plataforma”,
defendeu.
A
Lusofonia, para Ada Sousa, “é reunir as pessoas” e “mostrar o calor” dos países
de língua portuguesa. “É mostrar aquilo que temos para contribuir para a RAEM
que queremos”, finalizou.
Na
mesma linha, a presidente da Casa de Portugal sublinhou que as associações
estão a sentir cada vez mais dificuldades e que para que o festival continue é
preciso ter os meios necessários. “As associações estão a perder pessoas e a
sentir cada vez mais dificuldades em conseguir fazer as coisas como gostam,
como aspiram, como acham que devem continuar a fazer para que não se perca a
qualidade. Portanto, neste momento com as indefinições que existem, com todas
as nuvens que há no horizonte, com tudo isso só com uma bola de cristal poderia
responder”.
Para
Amélia António, o Festival da Lusofonia é um ponto muito importante de convívio
entre as diferentes comunidades. “É um momento de grande confraternização, e é
um momento muito marcante para a população local e a que visita Macau – agora
mais limitada -, porque percebem e sentem como é que se vive em Macau. É sentir
o clima de confraternização e de entendimento das comunidades que fazem parte
de Macau”, descreveu.
“Macau
é um local próprio que tem cultura, maneira de estar e de viver que são
próprias, que o identificam enquanto espaço diferente. Acho que é de certa
maneira uma coisa muito rica e nos tempos que correm, de desentendimentos
confrontos, de problemas a nível mundial, esta forma pacífica e comunicativa e
de entreajuda que se vive entre estas comunidades de Macau é qualquer coisa de
importante para marcar a diferença com o que de desagradável e difícil se vive
no mundo. Para mim, a lusofonia tem esse valor todo”, concluiu.
Já
Helena Brandão, presidente da Associação dos Amigos de Moçambique, que
participa no festival desde 2002, recordou que apesar da falta que sentiam dos
produtos do país, do artesanato, assim como o facto de terem “pouca
experiência” neste tipo de festa popular, guardaram boas memórias dos primeiros
anos desta iniciativa. “Quem tivesse peças de artesanato, livros ou outros
produtos moçambicanos emprestava-os para que pudéssemos expor. A associação não
tinha nada e contávamos com ajuda de alguns elementos da comunidade”.
“A
Festa da Lusofonia na minha opinião é um dos eventos mais importantes de Macau.
Pelo significado, pelo envolvimento das comunidades de língua portuguesa, pelos
encontros, pela diversidade, e sobretudo pela amizade e solidariedade entre a
comunidade lusófona de Macau”, apontou.
A língua portuguesa como elemento de união
Miguel
de Senna Fernandes, presidente da Associação dos Macaenses, recordou que no
início a participação foi feita através do grupo dos Dóci Papiaçám. A chuva que
caía naqueles primeiros anos, em que o festival era realizado em Junho por
ocasião do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, não lhe sai da
memória.
Na
sua opinião, este “é um festival que tem pernas para andar”. “Julgo que é do
interesse da RAEM, do interesse do Governo Central, pelo menos de acordo com o
discurso oficial há sempre um apoio à ideia da lusofonia ligado à ideia da
plataforma e contacto com os países de língua portuguesa. É um festival que só
fortalece o papel de Macau e é um bom cartaz turístico”, apontou.
O
líder associativo frisou ainda que o Festival da Lusofonia “é um fenómeno
fantástico”. “A Lusofonia é um fenómeno, é um movimento, é algo de positivo.
Que haja mais Lusofonias! É um fenómeno importante na comunicação dos povos, é
uma coisa para ser festejada, numa altura em que o mundo está como está”,
prosseguiu.
Senna
Fernandes realçou ainda o que de comum une estes países: a língua. “Num sítio
tão pequeno como Macau e mesmo na China podemos encontrar pessoas com
antecedentes culturais completamente diferentes dos nossos e estamos a
comunicar. Eu valorizo isto. A Lusofonia tal e qual como a celebramos só
acontece em Macau, é único. A Língua Portuguesa tem esta propensão para ligar
os povos”, afirmou.
A
Língua Portuguesa é também para Jane Martins um dos aspectos mais
significativos deste festival. “Na Lusofonia a gente fala muito mais português
do que em qualquer outro dia do ano, então é muito agradável, porque é uma
reunião de amigos que você não vê o ano inteiro. E depois há muito interesse
dos chineses pela cultura de qualquer outro país de língua portuguesa. Então
para mim aquilo é uma reunião de falantes da língua portuguesa como não há
outra igual em Macau. Isso é o que mais importa. Depois é a alegria das
pessoas, comemorar aqueles três dias”, descreveu a presidente da Casa do
Brasil.
Este
ano, a cultura macaense foi escolhida para ser o foco do Festival da Lusofonia,
que decorrerá entre amanhã e domingo, nas Casas Museu da Taipa. A edição deste
ano da Lusofonia apresentará assim a gastronomia e o artesanato macaenses, e
além de se centrar na cultura macaense propõe-se também a “salientar a história
da viagem das culturas dos países lusófonos através do oceano e do seu
estabelecimento nesta cidade”. A programação abrangerá espectáculos em patuá
promovidos por associações locais macaenses e uma mostra de gastronomia macaense.
Ao
longo de três dias, os expositores das comunidades portuguesas de Macau
formadas por macaenses e pessoas de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Goa, Damão e Diu, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste vão
mostrar a sua música, artesanato, vestuário e acessórios, gastronomia e
informações turísticas. Catarina Pereira – Macau in “Jornal
Tribuna de Macau”
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