I
Tirar poesia do horror –
foi a essa ingente tarefa que se atirou o experimentado poeta goiano Gabriel
Nascente (1950) para produzir o alentado A Ópera dos Ausentes – pesadelo
epidêmico: poema-reportagem (Goiânia, edição do autor, 687 páginas),
provavelmente a primeira obra poética de vulto inspirada pela pandemia do
coronavírus (covid-19), que desde o final de 2019, quando apareceu na cidade de
Wuhan, na China, tem trazido dor e pânico em todo o planeta.
Logo no pórtico, o poeta
diz que este longo poema foi “construído com a iluminação das trevas”, ao som
“horripilante das ambulâncias despedaçando a inocência das madrugadas”. E tão
assoberbado se sentiu diante do tema e da ameaça de morte que ronda todos nós
que tratou de propor um novo gênero literário, o poema-reportagem, pois só
assim se sentiria capaz de narrar essa tragédia universal, “sob o impacto das
mais dolorosas emoções e sofrimentos, causados pelo assombroso vírus”.
Como observa no prefácio
intitulado “A cerimônia das trevas”, que escreveu para a sua própria obra, Gabriel
Nascente diz que a questão central do poema “foi trazer para dentro do texto as
sombrias impressões de uma realidade (cruelmente mortífera)”, que roubou a vida
de mais de cinco milhões de seres humanos em todo o mundo e continua desvairada
em sua sanha assassina. E confessa que o fez “arrastado pelas correntes do
choque”, pois, do contrário, “estaria mastigando a solidão das paredes. Ou
uivando como um louco entre as grades de um hospício”.
II
Dentro dos gêneros
conhecidos, a melhor definição para este poema, no entanto, seria épico, já que
busca fornecer uma visão ampla do mundo, hoje submetido aos ditames do maligno
e que, portanto, não caberia em poucas estrofes, embora o tamanho da peça não
seja requisito fundamental para a sua definição. Tal como poemas épicos
conhecidos, como “Os Lusíadas”, de Luís de Camões (c. 1524-c.1580) ou “Máquina
do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), citados como exemplos
perfeitos desse gênero literário pelo professor e ensaísta Massaud Moisés
(1928-2018) em A Criação Literária. Poesia (São Paulo, Cultrix, 16ª ed.,
2003, p.251), A Ópera dos Ausentes constitui uma aglutinação harmônica
de uma série de poemas menores, com os seus respectivos episódios que pouco têm
de lirismo.
Afinal, aqui, o diálogo é
com o planeta que habitamos, uma tentativa de compreender o Universo, de saber
por que a Humanidade teria de passar por esse castigo, ainda que pecados não
faltem nas costas daqueles que se arvoram donos do mundo em nome de ideologias
que a ambição humana e sua pequenez já desmoralizaram há muito tempo.
Eis um exemplo: (...) O
que fizeram de ti, meu velho / planeta, com esta gigantesca máscara de /
cirurgião dentista na cara? O que é isto/ / Não é tempo de carnaval. Joga fora
/ esta fantasia de tirar de sarcófago. / Estás doente? Conta pra mim. / Andas
com falta de ar/ tens febre, / respirando trôpego, com ajuda de / tubos de
oxigênio. Pois então, / o homem o transforma, / num só lixão de / carniças a
céu aberto. Agora é tarde para / replantarmos a esperança de teu verde. / O
homem é um bicho miserável, / disputando forças com Deus. / O que fizeram de ti,
meu velho / planeta? / Dinamitaram o manancial de teus rios? / Vomitaram pus
industrial (negro) / ao ventre de escamas de teus oceanos? (...).
III
Não é difícil compreender
o conteúdo épico deste poema, em que o poeta se despoja do “eu” para falar em
nome da humanidade assolada pelo fantasma da morte que leva a cada dia um pai,
uma mãe, um parente, um amigo, um conhecido e até um famoso qualquer.
Leia-se este pequeno
trecho: (...) Ó maldição / de Covid-19, / tu és a saliva / do demônio, /
voraz e ubíqua (...).
E também este lamento que
reverencia um mundo que não existe mais, que ficou para trás, de antes da
chegada do vírus maligno: (...) As janelas de costas para o sol. / Meu Deus,
já não desfraldam mais / o branco aceno de nossos sorrisos. / Ó Covid-19, tu és
/ o dente do demônio / em cena, voraz / e ubíquo. / A tristeza vestiu sua roupa
/ cor de hospital. E saiu / buzinando dentro do povo. / A tristeza de luvas a /
bordo das ambulâncias. / Generosos são sol e / o orvalho da manhã. / A pomba
cisca / os telhados do mundo.
Um grande cenário se abre
diante do poeta, um cenário de dor e desolação, como se vê neste outro trecho
deste extenso poema: (...) Ó vidas que chegam em cadeiras de rodas / e
voltam em sacos de plástico! / Ó quebradeiras de aviltantes prejuízos / no
fluxo dos negócios! / Os camelôs incitam
seus rivais à / discórdia, na disputa por fregueses / de rua. (A ira se
esbraseia / em cólera pública). A polícia / aparece. / A guerra pelo feijão. /
A guerra pela vida. / A guerra pelo sonho. / Proibidos, estamos? (...)
Por fim, o poeta não deixa
de lamentar, implicitamente, que o mal no Brasil tenha se alastrado e crescido
em razão da incompetência, despreparo e irresponsabilidade de muitos daqueles
que deveriam ter assumido a frente de combate ao vírus, demorando para tomar as
medidas recomendadas pelas autoridades sanitárias e pelo bom senso: (...) É
o Brasil apodrentado / pela granfinagem corrupta de teus / políticos (amado por
eles não és), / pátria do Far-West, bangue-bangue / de ladrões – superlotando
enfermarias, / UTIs e cemitérios, de doentes tombados / pela Covid. / São
vampiros de gravata / que comem o dinheiro / dos Hospitais de Campanha. / A
vergonha buscou abrigo / nos tribunais de Deus (...).
Se não deixa de dar uma
visão da sua Goiânia e da bucólica Morrinhos, o poeta também se compunge com a
dor dos outros povos que igualmente se sentem impotentes diante de tão poderoso
mal: “Na província de Guayas, Equador, / famílias não têm dinheiro / para
cobrir de terra / os seus mortos. / Em Guayas, defuntos são despejados / às
moscas dos meios-fios (...).
IV
Jornalista e poeta, Gabriel
Nascente escreveu e publicou mais de 60 livros, incursionando-se pelos gêneros
ensaio, ficção, reportagem, narrativa, crônica e poesia. Filho
de um marceneiro, um dos pioneiros na construção de Goiânia, é funcionário
público, servindo como assessor cultural da presidência do Tribunal de Justiça
do Estado de Goiás.
Atuou
profissionalmente também no jornalismo, mas não se limitou às experiências
vivenciais e profissionais em sua terra: passou uma longa temporada em São
Paulo, onde trabalhou na Editora Martins como redator de textos de “orelhas” de
livros de autores famosos, deu aulas em cursinhos de pré-vestibular e trabalhou
na redação da Folha de S. Paulo.
Quando deixava
a redação do jornal, na Alameda Barão de Limeira, no centro da capital
paulista, aproveitava para vender exemplares de seus livros. Como o poeta
português Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805) e o russo Vladimir
Maiakóvski (1893-1930), aos quais confessadamente procurou imitar em muitos de
seus poemas, sempre teve a preocupação de ir aos bares e cafés à noite não só
para declamar os seus versos como para vendê-los, pois muitas das edições de
seus livros foram pagas à gráfica com seus próprios recursos, o que exigiu
esforços redobrados para recuperar o capital investido.
Foi editor de
diversas revistas e jornais de Goiânia, destacando-se principalmente como
editor-adjunto do suplemento literário do Diário da Manhã, além de ter
sido cronista durante 15 anos de O Popular. É colaborador do Jornal
Opção. Esteve em Montevidéu e Buenos Aires durante
a ditadura civil-militar (1964-1985), na clandestinidade. Publicou em Concepción, no Chile, El llanto de la
tierra (1999), em tradução para o castelhano pelo poeta Dilermando Rocha,
do Centro de Estudos Brasileiros de Buenos Aires. Aos 16 anos, publicou seu primeiro livro de
poesias, Os Gatos. Tem poemas
traduzidos e publicados em diversos idiomas, dos Estados Unidos a Grécia, com
extensa participação em jornais, revistas, antologias brasileiras e
estrangeira.
Seu
nome é citado com verbetes em diversos dicionário e enciclopédias da literatura
brasileira. É membro da Academia Goiana de Letras, ocupante da cadeira de número 40. Seu nome mereceu um alentado texto no livro História
da Literatura Brasileira — Da Carta de Caminha aos Contemporâneos (Editora
Leya, 2011), do poeta e acadêmico Carlos Nejar, que lhe dedicou ainda o poema
“Gabriel Nascente de Goiás”, reproduzido na contracapa de Galáxia dos Dias
(Goiânia, Editora Kelps, 2020), que reúne sua obra poética de 1966 a 2019 em
quatro volumes com mais de mil páginas cada. Adelto Gonçalves - Brasil
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A Ópera dos Ausentes
(pesadelo epidêmico: poema-reportagem), de Gabriel Nascente. Goiânia, edição do autor, 687 págs., 2021. E-mail:
gabrielnascente@yahoo.com.br
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do
Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage, o Perfil Perdido
(Lisboa, Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo-Imesp, 2021), Tomás
Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d’El-Rei na
São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (José
Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder:
o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre
outros. (E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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