Foi
às margens do riacho Ipiranga, há 199 anos, em um 7 de setembro como hoje, que
Dom Pedro I (1789-1834) declarou a independência do Brasil em relação a
Portugal. O Brasil então se torna uma monarquia e Dom Pedro I passa a ser
imperador.
Esse
“grito” de independência, proclamado por Dom Pedro I na região do Ipiranga,
onde hoje se encontra o Parque Independência, na capital paulista, foi
retratado de forma idealizada na imensa pintura Independência ou Morte, de
Pedro Américo, que faz parte do acervo do Museu Paulista, mais conhecido como o
Museu do Ipiranga.
Ilustrada
em diversos livros didáticos, a famosa pintura ajudou a criar o mito de que a
Independência do país ocorreu de forma isolada, num único dia, com Dom Pedro I
empunhando sua espada e gritando “Independência ou Morte” em cima de um cavalo,
espada ao céu, cercado de soldados. Mas isso não ocorreu de forma tão rápida ou
imediata como se imaginava.
“A
independência é um processo que começa em São Paulo e termina na Bahia. Com o
Rio de Janeiro negociando pelo meio do caminho. O Rio até então era a corte, a
sede do país”, explicou Paulo Garcez Marins, curador do Museu Paulista, em
entrevista à Agência Brasil.
Dom
Pedro I estava em Santos, a caminho de São Paulo. E passou pela região do
Ipiranga, que era o meio da travessia para o centro da capital. E foi ali que a
declaração de separação foi anunciada. “Ele estava vindo de Santos. Estava
fazendo uma viagem por São Paulo para tentar conseguir apoio político. Ele
estava fazendo uma viagem para apaziguar os ânimos”, disse Natália Godinho da
Silva, historiadora que trabalha no Núcleo de Formação e Desenvolvimento de
Públicos do Museu da Cidade, em São Paulo.
O
Museu Paulista, também conhecido como Museu do Ipiranga, está fechado desde
2013 e aguarda verba para as obras de restauração e modernização.
Apaziguar
os ânimos porque o Brasil, naquele momento, vivia uma crise, cheia de conflitos
e revoltas. “É claro que, perto das independências latino-americanas, a
brasileira fica bem discreta. Mas a gente tem uma ideia de que não houve guerra
pela independência. E isso não é verdade. Bahia, Pará, Maranhão: tivemos
diversas províncias que se rebelaram contra Portugal. Ainda que a gente não
tenha tido uma guerra unificada, de modo geral, também não fomos tão
pacíficos”, explicou.
A
história da independência brasileira não é simples de ser explicada e não se
encerra nos livros ou na pintura de Pedro Américo. Mas o entendimento sobre
esse episódio pode ser ampliado quando se visitam alguns pontos turísticos das
cidades de São Paulo, do Rio de Janeiro ou de Salvador. Todas essas cidades
guardam objetos e memórias relativos a esse acontecimento histórico.
“Cada
período da história, cada período da vida da sociedade, interpreta o passado a
partir de suas perguntas. A gente nunca vai conseguir saber como o passado foi
exatamente. O que conseguimos é criar, interpretar uma versão sobre o passado a
partir dos restos que chegaram dele, como objetos, documentos escritos,
lugares, paisagens, prédios”, contou Marins.
Em
São Paulo, onde a independência foi declarada, diversos museus e monumentos
ajudam a contar essa história e a entender que esse acontecimento foi um
processo e não se encerrou no momento do grito.
“A
independência foi disputada por três cidades: São Paulo, onde foi declarada;
Rio de Janeiro, onde ela foi construída, já que os acordos eram feitos na
capital; e Salvador, que foi o lugar que terminou a guerra de independência do
Brasil quando os portugueses foram expulsos e vencidos no dia 2 de julho de
1823, quase dez meses depois da declaração do grito do Ipiranga em 1822”,
explicou Marins.
Nessa
matéria, vamos explorar os lugares de São Paulo que nos ajudam a compreender um
pouco mais sobre esse episódio da história brasileira.
Parque da Independência, no Ipiranga
“O
melhor lugar para se pensar sobre esse evento é o Parque da Independência, ali
no Ipiranga, que tem o edifício monumento, que é o famoso Museu Paulista [Museu
do Ipiranga], que foi a primeira construção em celebração à independência. E
ainda temos o Monumento à Independência, feito em 1922, para comemoração do
centenário”, disse a historiadora Natália Godinho.
O
Museu Paulista foi o primeiro edifício-monumento à independência criado nessa
região como marco histórico. Depois vieram o Jardim Francês, o Monumento à
Independência numa escultura em bronze e granito instalada próxima ao córrego
do Ipiranga, a Cripta Imperial e o próprio parque.
A
ideia era que essa região, onde o parque está instalado, se transformasse em
uma grande celebração nacional, um “altar da Pátria”, como definiu Marins.
Para
chegar ao parque foi criada a Avenida Independência, hoje chamada de Dom Pedro
I, que conecta a Avenida do Estado ao Parque. “Com isso, o Ipiranga vai se
tornar uma espécie de eixo monumental que se assemelha ao eixo principal da
cidade de Paris”, disse o curador do Museu Paulista.
Museu Paulista
Antes
do parque e de todas essas construções, a primeira tentativa havia sido marcar
o lugar onde o grito foi dado com uma pedra. Mas essa pedra se perdeu e o local
exato dessa declaração de Dom Pedro I nunca foi conhecido. “Esse marco não
existe mais, mas já mostra que nas décadas posteriores à declaração da
Independência já havia uma preocupação em marcar aquele lugar como o berço
simbólico da nação porque ali aconteceu a declaração de ruptura formal entre o
Brasil e Portugal”, disse Marins.
Mas
a ideia de marcar o lugar para criar um memorial em homenagem a essa história
não foi abandonada. E foi assim que surgiu, no Ipiranga, um primeiro monumento,
um memorial, que mais tarde viria a se transformar no Museu Paulista, mais
conhecido como Museu do Ipiranga.
“Esse
é o primeiro monumento à independência propriamente dito que vai ser terminado
em 1890, ainda sem ter um uso determinado”, disse Garcez, acrescentando que
esse monumento foi encomendado pela família real, assim como a pintura
Independência ou Morte, de Pedro Américo. Apesar disso, ela nunca pisou no
local.
Quando
a pintura e o prédio foram então finalizados, ocorreu a proclamação da
República no Brasil, em 1889. “E isso vai mudar um pouco o destino daquele
prédio, que era feito para ser um memorial da independência e da própria
família imperial brasileira e de São Paulo como lugar de berço da nação. As
autoridades republicanas, sem tirar essas finalidades do prédio, vão
transformá-lo sobretudo em um museu de história natural”, destacou Garcez.
Com
isso, somente em 1917, quando se iniciam os preparativos para o primeiro
centenário da Independência, é que a finalidade do museu volta a mudar. “Então,
se antes era um museu majoritariamente de história natural, a partir de 1917
ele vai começar a ser um museu principalmente de história nacional, que naquele
momento era compreendida como a história de São Paulo”, explicou Garcez.
Em
2013, esse museu foi fechado para restauração e ampliação. E será novamente
reaberto ao público no próximo ano, quando se completa o bicentenário da
independência.
“Nos
últimos 30 anos, o perfil das nossas correções foram mudando muito. Até então,
o museu era sobretudo uma instituição que guardava ou recolhia objetos
provenientes da elite de São Paulo. Desde a década de 90, temos ampliado o
objeto da instituição para outros temas e segmentos sociais. As nossas
correções foram também documentando populações afro-brasileiras, indígenas,
imigrantes, mulheres e crianças”, disse Garcez.
Para
a reabertura, o museu está preparando uma exposição que pretende trabalhar a
memória da Independência do Brasil, apresentando como ela foi lembrada em
diversas situações, como na celebração dos seus 50 anos (em 1872), no
centenário (em 1922), nos seus 150 anos (em 1972) e com o bicentenário, que será
celebrada no próximo ano.
Monumento à Independência
Feito
em granito e bronze, o Monumento à Independência foi inaugurado em 1923 e, até
então, era considerado o maior conjunto escultórico do Brasil. A obra é do
escultor italiano Ettore Ximenes, que venceu um concurso público para a criação
de um monumento em homenagem a esse evento histórico.
O
monumento recebe muitas críticas porque não parece retratar a história dessa
ruptura entre Brasil e Portugal. Algumas reclamações se referem ao fato de que
ele teria sido pré-fabricado e já estaria pronto antes de o escultor ter
vencido o concurso.
“Talvez,
em algum momento, ele tenha sido oferecido para alguma cidade europeia, que não
aceitou e, quando o artista vê a oportunidade desse concurso, ele faz pequenas
adaptações na obra. A única referência que tinha ao Brasil nesse monumento é o
alto relevo do Pedro Américo”, disse Natália.
Com
as críticas, Ximenes fez novas adaptações à obra. “Daí ele constrói dois
conjuntos, um de cada lado, do monumento. De um lado, ele coloca a
Inconfidência Mineira. E, do outro, ele coloca a Revolução Pernambucana de
1817, como movimentos precursores da Independência o que, hoje em dia, pela
historiografia, é super questionável já que a Inconfidência Mineira não
necessariamente estava buscando uma independência”, explicou.
As
críticas ao monumento não param por aí. “O auge disso é que ele coloca a figura
de um índio para representar o que seria o Brasil. Mas esse índio quase não tem
destaque. E, além disso, esse índio é norte-americano. Não é um índio
brasileiro. E, obviamente, não tem nenhuma figura negra e não tem nenhuma
mulher. O que também é bem questionável. Ele poderia ter retratado alguma coisa
da [Imperatriz] Leopoldina ou da Maria Quitéria, que foi uma mulher que lutou
pela independência da Bahia”, contou Natália.
Cripta
No
interior desse novo Monumento à Independência foi criada a Cripta Imperial. O
primeiro corpo a ser guardado nessa cripta é o da Imperatriz Leopoldina, a
primeira esposa de Dom Pedro I, que estava enterrada no Rio de Janeiro. “É
importante falar que ela teve um papel político na independência muito
importante. Ela articulou muito bem todo esse cenário da independência: ela
estava no Rio de Janeiro fazendo política e aconselhando o próprio Dom Pedro”,
explicou Natália.
Em
1972, chegam ao Brasil os restos mortais de Dom Pedro I, vindos de Portugal.
Dez anos depois, chegam os restos mortais da Imperatriz Amélia, a segunda
esposa de Dom Pedro I. “Eles trouxeram o corpo dela para ficar ao lado de Dom
Pedro mais para atender a sua demanda, que queria ficar enterrada ao lado dele,
mas não porque ela tenha participado do processo [de Independência]”, disse
Natália.
Neste
momento, por causa da pandemia de covid-19, a cripta está fechada ao público.
Quadro Independência ou Morte
Encomendado
pela família imperial, o quadro Independência ou Morte é parte do acervo do
Museu Paulista. A pintura é de Pedro Américo e foi inaugurada em 1888, em
Florença, momento em que foi apresentada a Dom Pedro II, filho de Dom Pedro I.
“O
quadro Independência ou Morte é uma visão idealizada do momento do grito. O
pintor Pedro Américo deixou um texto dizendo isso, que a realidade inspira, mas
não escraviza o pintor. Ou seja, ele coletou informações sobre o lugar, sobre
como era a cena, as pessoas que estavam naquele momento, mas ele criou uma cena
idealizada, uma cena de como um momento fundamental para a história do Brasil
deveria ser lembrado”, diz Garcez.
Na
tela, Dom Pedro I é retratado montado em um cavalo, mas hoje se sabe que, na
verdade, ele estava montado em uma mula, que era o transporte utilizado para
subir a Serra do Mar. Isso, no entanto, destaca Garcez, não foi um erro
cometido pelo pintor, mas uma tentativa de transformar o episódio em algo
memorável, uma característica da pintura histórica praticada na época.
“O
compromisso dos pintores de história não era com a visão realista de como
aconteceu o episódio, mas sempre de como ele deve ser lembrado”, disse.
Para
a reabertura do museu, no ano que vem, o curador pretende fazer um evento para
discutir, com o público, detalhes sobre a criação dessa tela, informações sobre
a técnica e os modelos utilizados e a composição da cena.
Casa do Grito
A
Casa do Grito recebeu esse nome porque teria sido retratada na tela de Pedro
Américo. Mas não há qualquer documento que comprove que ela estava erguida
quando Dom Pedro I teria declarado a independência do Brasil.
“Não
temos nenhuma referência de que Dom Pedro tenha passado por ela ou de que ela
existisse na época em que Dom Pedro passou por ali. A primeira documentação que
temos da Casa do Grito é de 1844, ou seja, mais de 20 anos depois que Dom Pedro
passou por ali. Inclusive Dom Pedro já tinha até morrido quando tivemos essa
primeira documentação”, explicou Natália.
Até
por volta de 1920, a Casa do Grito era uma residência. Mais tarde ela foi
comprada pelo Poder Público e transformada no Museu do Tropeiro.
“Esse
nome, Casa do Grito, reforça a ideia de que ali teria sido a casa do grito, que
aquela casa seria a mesma do quadro ou o que a gente escuta muito, que Dom
Pedro teria dormido ali para seguir viagem. Mas nada disso é verdade. A gente
não tem nenhuma documentação que possa comprovar tudo isso. O que a gente sabe
é que, provavelmente, ele não passou por ali”, disse a historiadora.
A
Casa do Grito tem grande relevância turística porque é um dos últimos
exemplares da cidade de São Paulo de uma construção de pau a pique.
Solar da Marquesa
O
Solar da Marquesa, no centro da capital, não tem qualquer relação com o cenário
da Independência. Mas foi ali que viveu uma das amantes mais conhecidas de Dom
Pedro I: a Marquesa de Santos. E eles se conheceram nessa viagem que Dom Pedro
I fazia entre Santos e São Paulo, quando ele declarou a independência. Após
conhecê-lo, ela se muda para o Rio de Janeiro, onde ficava a Corte.
Quando
a primeira esposa de Dom Pedro I morre, há uma grande comoção na corte e o
imperador do Brasil, sem uma situação favorável, decide abandonar a Marquesa,
após sete anos juntos.
Depois
disso, já em 1834, ela volta a morar em São Paulo, no local hoje chamado de
Solar da Marquesa. Nesse ano, Dom Pedro já havia falecido. Ele nunca pisou
nesse local. In “Mundo Lusíada” – Brasil com “EBC”
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