Depois de 28 anos no Grão-Ducado, Joaquim Prazeres reformou-se. A partir do Luxemburgo, coordenou o ensino da língua portuguesa em todo o Benelux. Conversa na hora da despedida, para avaliar as vitórias que alcançou, tudo o que falta fazer e esta capacidade única que a educação tem de mudar vidas
Em
2017, parecia mesmo que o caldo estava entornado. É isso que Joaquim Prazeres,
67 anos, recorda quando se lhe pergunta o momento mais difícil que viveu em
quase três décadas como professor e coordenador do ensino do português no
Luxemburgo. “Na altura houve um acordo entre os dois países e a nossa língua
deixou de fazer parte do sistema integrado. Ou seja, ficou de fora do horário
escolar e passou a ser uma atividade complementar. Isto afastou muita gente da
vulgarmente chamada ‘escola portuguesa’, até porque os pais, geralmente de
classes trabalhadoras - e muito trabalhadoras, com horários difíceis -, não
tinham na maior parte das vezes disponibilidade para levar as crianças de um
lado para o outro”, conta agora. “Foi um retrocesso enorme e um golpe duro para
o trabalho que estávamos a tentar erguer.”
O
caso foi badalado na altura e teve eco ao mais alto nível. Em visita oficial,
aliás, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa acabaria por apelar à comunidade
que insistisse e inscrevesse os seus filhos no ensino do português. “Foram as
próprias escolas que passaram a escolher os currículos e as disciplinas que
queriam. Então nós tínhamos de tentar organizar-nos ao mesmo tempo com seis ou
sete estabelecimentos de ensino diferentes para poder dar aulas a todos os
alunos inscritos. Isto acabou por reduzir imenso a participação”, diz com um
encolher de ombros, e, nota-se sem sombra para dúvidas, esta é uma frustração
que ainda carrega nos ombros.
“Quando temos tanta gente que já fala português neste
país, era bom ver as pessoas investirem no potencial delas mesmas e
desenvolverem a escrita. Porque isso só as vai beneficiar.”
Mas
Joaquim Prazeres é lutador pela sua causa – e mesmo depois da reforma recusa-se
a baixar os braços. Ou os argumentos. “Aqui no Luxemburgo já vamos na terceira
geração da emigração”, diz Prazeres. “Temos números que nos dizem que 28 por
cento da população fala a língua de Camões em casa. Mas às vezes há esta ideia
de que basta o português de casa, não é preciso muito mais do que isso. A
aprendizagem da escrita, da gramática, é importantíssima, até porque o
português é uma língua de futuro.”
Fala
do papel do português no mundo. Tem 300 milhões de falantes e é uma das línguas
mais falada do planeta. Alguns registos apontam-na como a quinta língua
mundial, atrás do inglês, do mandarim, do espanhol e do hindi. Outros
colocam-na na oitava posição, atrás do árabe e do francês. “Seja como for, é um
património vasto, com um potencial incrível para abrir portas, criar pontes,
desenvolver negócios”, sublinha Prazeres. “Quando temos tanta gente que já fala
português neste país, era bom ver as pessoas investirem no potencial delas
mesmas e desenvolverem a escrita. Porque isso só as vai beneficiar.”
Nos
anos que comandou os destinos do ensino da língua, tentou fazer perceber a
importância do português ao Grão-Ducado. Dentro da comunidade portuguesa, mas
fora dela também. Orgulha-se de ver agora muitos professores do sistema
educativo luxemburguês a quererem aprender a língua, para melhor ensinarem os
seus alunos – algo que o jornal Contacto recentemente reportou. Orgulha-se de
ver o interesse que cresce nos estrangeiros, mesmo nas crianças. Vitórias suas,
também. E, mesmo que o cartão de cidadão diga o contrário, Prazeres tem um
esgar de infância, de quem se atreve a dar alimento aos sonhos. “Há muito
trabalho para fazer”, diz quase em tom de aviso.
Gostaria
de ver o português ser ensinado como língua estrangeira, com o mesmo estatuto
que o inglês, por exemplo. Gostaria que várias disciplinas pudessem ser
lecionadas na língua de Camões, como as ciências ou a cidadania, de forma
opcional. E se há hoje escolas internacionais no Luxemburgo com sistemas
educativos em francês e inglês porque não criar uma instituição em português,
também? “O Luxemburgo é um dos países do mundo onde o português não é língua
oficial, mas mais gente o fala e aprende. Os espanhóis fizeram da sua língua
uma prioridade política, defendida pelas altas esferas. E está na altura de nós
fazermos o mesmo”, atira para cima da mesa, bebendo um golo de água para
aclarar a garganta. A conversa ainda agora começou.
Grandes mudanças na comunidade lusófona
Quando
fala da comunidade portuguesa no Grão-Ducado, Joaquim Prazeres não consegue
deixar de se emocionar. “Eu já tinha trabalhado em França e Espanha como
professor de português e, quando cheguei ao Luxemburgo, percebi imediatamente
que a emigração aqui era diferente. Era uma comunidade mais fechada do que é
hoje, porque provavelmente ainda havia pouca gente de segunda geração. Mas
tinham uma grande vontade de aprender”, conta. “E sobretudo de aprender
português.”
Os
miúdos que apanhou por aqui, no final dos anos 1990, provinham normalmente de
duas circunstâncias. “Ou tinham nascido em Portugal e tinham algumas bases da
língua ou então tinham nascido aqui e as famílias tinham o desejo de voltar a
casa, de levar os miúdos para fazerem o liceu e a universidade lá em baixo”,
explica. “Mas uma coisa era certa. Todas as famílias aqui percebiam que a
educação era uma ferramenta importantíssima para as gerações seguintes. Para
saírem do círculo de trabalho duro e sacrifício a que eles, os pais e os avós
deles, tinham estado votados.”
Em
1998 havia 40 professores de português no Luxemburgo. No ano letivo 2005/06,
atingiu-se o pico: eram 54. “Hoje há 29, e isso também se explica pelas
mudanças estruturais que houve na comunidade”, avança o antigo coordenador de
ensino. “É que foram nascendo segundas e depois terceiras gerações, que foram
integradas no sistema luxemburguês. Falam em casa com os pais, mas comunicam
entre si numa mistura de vários idiomas. E, seja porque as escolas não ajudam
ou os pais não promovem, não têm o mesmo interesse em aprender verdadeiramente
a língua portuguesa.”
Não
será também isso reflexo de uma má promoção do lado português? “Sim, também.
Tivemos embaixadores que não estavam interessados na defesa estrutural do
idioma, os sucessivos governos também desenvolveram muitas políticas
desadequadas e desligadas da realidade a partir de Lisboa. Mas, também acho
natural que haja uma certa dispersão da comunidade, à medida que ela cresce,
que têm filhos e netos aqui”, e abre os braços para explicar a sua ideia. “O
interesse no regresso tornou-se mais longínquo, a integração é mais efetiva,
vieram muitas pessoas de outros países que falam português. E com isso os
laços, de alguma forma, dispersaram.”
A
ligação às terras de origem foi uma das suas lutas, e muitas vezes
sacrificou-se pessoalmente para o conseguir fazer. Mas também tem memórias que
lhe trazem o sorriso de volta aos lábios, como daquela vez em que levou 75
alunos e dez professores durante uma dezena de dias a Portugal. “Eu estava num
liceu de Esch-sur-Alzette e fazia parte do conselho da escola. Então consegui
implementar esta ideia, arranjar patrocínios, custear a excursão por quase
nada. Mas o mais extraordinário foi que não foram apenas portugueses, foram
miúdos de todas as nacionalidades, muitos deles luxemburgueses. O orgulho com
que os portugueses mostravam as suas origens aos outros foi qualquer coisa de
que nunca me conseguirei esquecer”, avisa, e o fio de voz a cortar-se outra vez.
“A escola tem de ser um espaço de diálogo, de
fraternidade. Bati-me por isso toda a minha vida.”
Muitos
dos gaiatos nunca tinham viajado de avião. À chegada de Lisboa, deram de caras
com uma comitiva do Benfica, que haveria de convidá-los a visitar o estádio da
Luz. Depois rumaram uns dias a Setúbal, apanharam o barco para Troia, e os
golfinhos vieram cumprimentá-los ao estuário do Sado. “Os garotos foram todos
para um lado do barco e quase que virávamos. Tivemos de fazer grupos, ir
rodando, mas nada paga ver aqueles rostos tão felizes”, diz com uma gargalhada.
Joaquim
Prazeres reformou-se a 1 de fevereiro deste ano. Vinte dias depois, recebeu das
mãos do embaixador de Portugal no Luxemburgo, Pedro Sousa e Abreu, as insígnias
de Comendador da Ordem de Instrução Pública. O Estado português prestou-lhe
homenagem pelos 45 anos que dedicou ao ensino, 39 deles no estrangeiro. Mas,
como bom professor, aquilo que o comove verdadeiramente é quando encontra um
dos seus antigos alunos e ouve o elogio de ter ajudado alguém a mudar de vida,
abrir a cabeça, encontrado luz em estrada de sombras. Não se pode tratá-lo de
outra forma que não esta, em letras maiúsculas: Senhor Professor.
Uma vida dedicada à educação
Joaquim
Reduto Prazeres nasceu em 1958 na aldeia da Pêga, concelho da Guarda. Era filho
de agricultores e neto de comerciantes de gado. A sua terra era de feirantes e
artesãos, o que permitia aos pais mandar os filhos estudar. “Era uma
circunstância rara naquele tempo, mas em quatrocentos habitantes havia 50
professores ali”, conta.
A
capital do distrito era conhecida por albergar um Magistério, “então dizia-se
que a Guarda era boa a produzir duas coisas: professores e batatas”, lembra-se
ele com mais uma gargalhada. No entanto, no início dos tempos, a vida parecia
levá-lo em todas as direções, menos ao ensino. “Quando eu tinha seis anos o mau
pai emigrou para França e nós fomos todos atrás dele”, conta. “Os meus
primeiros anos de alfabetização foram em Paris. Mas, quando fiz dez, a minha
família quis que eu estudasse em Portugal e puseram-me num colégio interno na
Guarda. Tinha a quarta classe, fiquei na segunda. Era a atração da escola, o
afrancesado”, e volta a rir das memórias.
Lembra-se
do 25 de Abril como se fosse hoje. “Naquele tempo era habitual os alunos terem
um pequeno rádio nos quartos, para ouvirem música e as notícias. Vieram
confiscar-nos isso e impediram-nos de abandonar o colégio”, lembra. “No dia
seguinte, vieram os alunos do liceu da Guarda ‘libertar-nos’. Foi uma alegria.”
Nos tempos seguintes viu a gente da cidade chegar aos campos, alfabetizar as
aldeias, e isso fascinava-o. “Houve muitas crianças que só sabiam pegar numa
sachola e agora aprendiam a pegar num lápis, e num instante já sabiam escrever
o nome, ler, escrever.”
Nesses
tempos percebeu nos professores uma arte que podia mudar vidas. Então concorreu
ao Magistério. E entrou. “Havia 600 candidaturas para 90 vagas, os meus pais
ficaram muito orgulhosos”, lembra com alguma saudade. Contra todas as
probabilidades, Joaquim Prazeres formou-se em 1980 como professor e, desde o
primeiro dia, percebeu que ia usar essa arma para conhecer o mundo.
Nos
primeiros seis anos esteve em Setúbal, onde ensinou português a adultos. “Tenho
muito boas memórias desse tempo, da força daquela gente que lutava contra a pobreza,
mas queria aprender. Queriam recuperar as oportunidades que não tinham tido
quando eram jovens e isso é qualquer coisa de especial”, diz, dando exemplos
concretos. “Havia trabalhadores das salinas que vinham à noite. Havia peixeiras
que vendiam na praça e mesmo assim iam de noite estudar, quase sem poderem
dormir. Que respeito guardo por aquela gente”, suspira.
Em
1986, abriu um concurso para ensinar português no estrangeiro e ele concorreu
para França. Entrou. “Passados 20 anos, voltei a casa dos meus pais. Fiquei
numa escola dos arredores da capital, onde vivia gente muito humilde.
Trabalhadores da construção civil, da agricultura, das limpezas, com algumas
dificuldades de integração. Então comecei a pensar como haveria de ajudar a
resolver isso na geração mais nova, como podia ajudá-los a fintar o destino”, e
enrodilha os dedos enquanto fala, como se fosse hoje que está a estabelecer o
plano.
Então
fez nascer uma fórmula que haveria de utilizar, muitos anos mais tarde, no
Luxemburgo: levar os miúdos a Portugal. Duas semanas, entre Porto e Coimbra,
envolvendo ministérios dos dois países, embaixadas e assistentes sociais, para
que ninguém deixasse de ir por falta de fundos. “Foi um sucesso, desde o
primeiro dia. Aqueles miúdos, habituados a sentirem-se no fim da linha,
sentiam-se assim valorizados, podiam fazer-se valer aos outros da sua cultura.
E isso dá resultados diretos de integração.”
Passou
sete anos assim, nas escolas dos arredores da capital francesa, até um dia o
ministério da Educação reformular o ensino português no estrangeiro e ele
perder lugar no sistema. “Concorri novamente e fui parar a Espanha. Estive um
ano em Miranda del Ebro, em Castela e Leão, e três em San Sebastian, no País
Basco”, diz. No primeiro caso foi dar aulas a crianças de etnia cigana, que
viviam em tendas e sem acesso a cuidados básicos de higiene. “Consegui
convencer a escola a deixá-los vir meia hora mais cedo, tomarem banho nos
balneários, tomarem pequeno-almoço. Depois arranjei roupas, pu-los a falar da
cultura cigana, de Portugal, e a integração melhorou”, conta.
Em
San Sebastian os problemas eram outros. “Era sobretudo gente que vinha da Póvoa
do Varzim para trabalhar na indústria da pesca de arrasto. O grande problema
ali era a língua, porque as escolas ensinavam em euskera (basco) e havia um
grande sentimento anti-espanhol”, e Joaquim Prazeres põe as coisas em contexto.
“Foi entre 1993 e 1996, altura em que o terrorismo da ETA estava no auge.
Chegou a haver atentados à porta da escola onde eu dava aulas. Era difícil
integrar os alunos portugueses.”
Usou
a fórmula do costume: trazer as turmas a Portugal, com miudagem de todas as
nacionalidades. Depois ainda teve uma ideia que funcionou às mil maravilhas:
organizar umas jornadas multiculturais na escola. As crianças traziam comida,
danças, falavam das tradições de cada país e, com isso, comunicavam umas com as
outras. “A escola tem de ser um espaço de diálogo, de fraternidade. Bati-me por
isso toda a minha vida”, advoga Prazeres.
Em
1998, mudou de ares. Estava na dúvida se haveria de seguir caminho para Genebra
ou Luxemburgo, mas a mulher, que já tinha passado por aqui, dissera-lhe que o
Grão-Ducado era um lugar adorável. Então veio, sem grandes planos, ao sabor do
destino. O resto é história. “Sorte a minha”, diz Joaquim Prazeres, em jeito de
despedida. Não, não, Senhor Professor. Sorte a nossa. Ricardo Rodrigues –
Luxemburgo in “Contacto”
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