Livro
do professor e crítico literário Miguel Sanches Neto reúne correspondência do
seu arquivo particular
I
Algumas
cartas (ou bilhetes) de natureza familiar e outras trocadas com literatos conhecidos,
como os poetas Helena Kolody (1912-2004), José Paulo Paes (1926-1998) e Manoel
de Barros (1916-2014), o contista Dalton Trevisan (1925-2024) e o historiador e
crítico literário Wilson Martins (1931-2010), constituem o acervo pessoal que
compõe o livro Cartinhas reenviadas (Ponta Grossa-PR, Container
Edições, 2024), do professor universitário Miguel Sanches Neto, escritor
profícuo, dono de vasta obra que abrange mais de 50 títulos. Trata-se de uma
“espécie de ossos desemparceirados em um túmulo coletivo”, na definição do
autor.
É
um material que revela ao leitor lances da vida literária do escritor, desde a
época em que deixou a pequena Peabiru, no interior do Paraná, para se tornar um
grande escritor, além de cumprir brilhante carreira acadêmica que o levou a
reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), cargo que ocupa desde
2018. A obra reúne cartas de uma época em que o papel fazia parte da vida
cotidiana, ao contrário destes tempos digitais em que a correspondência dura
apenas até o momento em que aparece uma inovação tecnológica que a manda para
os ares.
Aqui
a correspondência que mais atrai é aquela que o autor trocou com Geraldo
Trentini, personagem de seu romance Chá das cinco com
o vampiro (Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010), atrás do qual
se esconde o premiado escritor curitibano Dalton Trevisan, considerado o maior
contista da Literatura Brasileira de todos os tempos, com quem o autor começou
a se corresponder em 1994. “Ele criou um conjunto de correspondência marcado
pelo que chama de caráter fungível, em papéis pequenos e muito finos. As
últimas cartas vinham por fax e se
apagaram quase que completamente”, diz Miguel Sanches.
Um
dos bilhetes, de 13/7/1994, denota o inconfundível estilo de Trevisan: “Obrigadinho
mais uma vez pelas palavras doces e generosas. O bom leitor faz melhor o livro.
Você leu com mais talento do que escrevi. Soube gostar de maneira brilhante. Os
seus notáveis artigos me deliciam até o terceiro dedinho do pé esquerdo. Tanto
não mereço, já lhe disse, mas de coração agradeço (...)”.
Ou
ainda este em que o famoso contista deixa escapar o mal juízo que fazia do trabalho dos resenhistas de jornais e
revistas: “Eis as provas finais de D., decerto erros de revisão (e outros da
mão torta e do olhinho vesgo) escaparam aqui e ali. Se der com algum, assinale
por favor. Sou bastante humilde para reconhecê-lo. O texto, não muito longo,
pode ser um tantinho promocional: os resenhadores de revistas e jornais mal
folheiam o livro, em geral repetem frases do release da editora, no caso a sua
apresentação”.
II
Já
os bilhetes do poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta José Paulo Paes mostram
uma personalidade mais respeitosa e reservada, ainda que não deixe de exercitar
a ironia, como neste trecho em que se refere a sua obra de poemas O aluno
(1947), além de citar o jornal cultural O Nicolau, que circulou
em Curitiba de 1987 a 1998: “Ficarei honrado com a reedição de O aluno. Ela
até que seria oportuna neste ano ou no ano que vem: em julho completo 70 anos
de idade e 1997 é o cinquentenário de minha estreia com O aluno. Como vê, estou
à beira do monumento, ameaçado a bronzificar-me como o Aristarco de O Ateneu.
Acho que um prefácio seu enriqueceria a edição e, se julgar conveniente, talvez
se possa incluir, em apêndice, um depoimento que fiz sobre os meus anos
curitibanos para o Nicolau. Aguardo suas notícias. (...)”.
Da
poeta e professora Helena Godoy, primeira amizade literária que Miguel Sanches
fez em Curitiba, o autor publica três cartinhas que dela recebeu já ao tempo em
que estava a dar aulas na UEPG. Numa delas, a poeta se refere a uma análise
crítica que Miguel Sanches fizera ao trabalho do poeta Antônio Carlos de Brito
(1944-1987), mais conhecido como Cacaso, também compositor e professor
universitário: “Li, fascinada, “E com vocês a modernidade”. Com segurança de
mestre e com agudeza crítica, você aborda a obra de Cacaso, situando-a no
tempo, mergulhando fundo “na maneira como se dá o diálogo entre a poesia dita
datada de Cacaso e uma tradição poética”. Admirei a abrangência de sua cultura,
a segurança de suas abordagens críticas. Muitas vezes naufraguei na minha
ignorância. Mas aprendi muito. Eu não sabia nada a respeito de Cacaso. Você
descortinou novos horizontes para mim”.
III
Do
poeta Manoel de Barros, Miguel Sanches resgata apenas dois bilhetes. Num deles,
o poeta pantaneiro, em meio a elogios a um livro do amigo, lamenta a
tradicional oposição das editoras à publicação de livros de poesia: “O trato
com as coisas tão delicadas da natureza é seu trato com a poesia. Li os haicais
do seu Abandono (1993) e posso ver o poeta na “janela aberta / ao meu lado / a
lua se deita”. Dou meu louvor ao seu Abandono. Não posso gostar que essa poesia
não tenha ganho uma grande editora. Você já não publicou pela editora Record?
Por que não foi a ela? Porém é só um reparo meu. Sei bem como são as editoras.
Todas acham que poesia não vende. O que é um engano. Ficam os poetas
brasileiros órfãos de uma divulgação melhor”. (...)
Da
obra, consta ainda correspondência trocada pelo autor com o crítico literário
Wilson Martins, professor emérito da Universidade de Nova York, famoso por seus
comentários, às vezes, ácidos e precipitados na condenação de uma obra e que,
por isso mesmo, segundo o julgamento de seu correspondente, o levaram a ser
considerado “o intelectual mais odiado do Brasil”. Por outro lado, um elogio do
critico podia significar a consagração de uma obra. Amigos desde 1991, quando
Wilson Martins voltou a morar em Curitiba, chegaram a dividir, por anos, uma
página de crítica no jornal Gazeta do Povo.
Da
correspondência, há um texto de apresentação da obra de Miguel Sanches que
Wilson Martins preparou para um pedido de bolsa à Fundação Solomon R.
Guggenheim, dos Estados Unidos, no qual o crítico o apontava como “a maior
revelação de alto gabarito na crítica brasileira destes últimos 30 anos”. Ao
defini-lo como especialista na obra de Dalton Trevisan, citava o seu livro Biblioteca
Trevisan (1996), que, formado por artigos publicados originalmente na Gazeta
do Povo, constitui uma análise aprofundada da narrativa
daltoniana. Apesar do elogio rasgado do rigoroso crítico, Miguel Sanches
confessa que, infelizmente, não foi contemplado com a bolsa.
De
Wilson Martins, Miguel Sanches observa que, desde quando começou a fazer
crítica literária, sempre teve a sua seriedade e a sua coragem como modelos. “Sei
que estou muito longe do perfil de um grande crítico como é o seu caso, mas
pode ter certeza de que sigo as suas pegadas”, confessa ao amigo em
correspondência datada de fevereiro de 2000.
IV
Miguel
Sanches Neto (1965) é professor universitário, romancista e crítico literário. Foi
diretor-presidente da Imprensa Oficial do Estado do Paraná, pró-reitor de
Pesquisa e Pós-Graduação, pró-reitor de
Extensão e Assuntos Culturais na UEPG e, agora, reitor.
Filho
de pais com ascendência espanhola, nasceu em família de agricultores pobres de
Bela Vista do Paraíso, no Norte do Paraná, mas foi criado na pequena Peabiru.
Aos quatro anos de idade, ficou órfão de pai. Até a sétima série do antigo
ginásio, nunca havia lido sequer um livro. Na adolescência, ingressou no
Colégio Agrícola Estadual de Campo Mourão-PR, onde se formou técnico agrícola.
Na
década de 1980, foi aprovado no vestibular para cursar Direito na Universidade
Estadual de Londrina (UEL), mas desistiu. Em 1984, ingressou no curso de Letras
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari (Fafiman), no Paraná.
Formou-se em Letras em 1986 e, em seguida, passou a residir em Curitiba, onde
atuou como professor da rede pública.
Em
1989, especializou-se em Literatura Brasileira e Contemporânea pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Em 1991, iniciou o mestrado na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), concluindo-o em 1993. Depois de
morar em Peabiru, Curitiba e Florianópolis, estabeleceu residência em Ponta
Grossa em 1993, ano em que se tornou docente da UEPG. Em 1998, concluiu o
doutorado em Teoria Literária na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e,
em 2006, fez pós-doutorado na Universidade do Minho, em Portugal.
É
escritor eclético, com obras em diversos gêneros, porém tem o seu alicerce no
romance. Em Um amor anarquista (2005), romance, narra a
história de um grupo de imigrantes italianos do município de Palmeira, nos
Campos Gerais do Paraná, que, no final do século XIX, fundou a Colônia Cecília
e tentou implantar o amor livre.
Estreou
com Inscrições a giz (1991), vencedor do Prêmio Nacional
Luís Delfino de Poesia de 1989, e publicado pela Fundação Catarinense de
Cultura em 1991. Desde então, publicou livros em diversos gêneros, de diários a
aforismos, com destaque para o romance Chove sobre minha infância
(Editora Record, 2000), obra traduzida para a língua espanhola. É autor de mais
dois livros autobiográficos: Venho de um país obscuro
(2000), poemas, e Herdando uma biblioteca (2004),
crônicas.
Foi
colunista do jornal Gazeta do Povo-PR de 1994 a
2012 e tem artigos publicados nas revistas Carta Capital, Veja,
Bravo e Poesia Sempre e nos jornais O Estado de
S. Paulo, Folha de S. Paulo, Valor Econômico,
O Globo e Jornal do Brasil e em outras
publicações e sites. Recebeu os prêmios Cruz e Sousa (2002) e Binacional das
Artes e da Cultura Brasil-Argentina (2005). Foi finalista, mais de uma vez, nos
prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura. Adelto Gonçalves -
Brasil
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Cartinhas reenviadas, de Miguel Sanches Neto. Ponta Grossa-PR, Container Edições, 62 páginas, 2024. E-mails: containeredicoes@gmail.com
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Adelto Gonçalves (1951), jornalista, é doutor em Letras na área de Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta
do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage, o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003; São Paulo,
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (São Paulo, Imesp/Academia Brasileira de
Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial –
1709-1822 (São Paulo, Imesp, 2015), Os
Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo - 1788-1797 (São Paulo, Imesp,
2019), entre outros. Escreveu prefácio para o livro Kenneth Maxwell
on Global Trends (Robbin Laird, editor, 2024), publicado
na Inglaterra. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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