Nova
obra de Silas Corrêa Leite reúne breves narrativas que devem ser lidas “de uma
assentada”
I
Escritor polifacetado e autor de vasta obra, Silas Corrêa Leite (1952) acaba de lançar mais um livro, desta vez, uma reunião de contos que leva por título Vaca profana: microcontos (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2023), breves narrativas e poemas em prosa em que o autor procura colocar para fora “o consciente e o inconsciente também”, como reconhece no “quase prefácio: outras palavras” que escreveu à guisa de apresentação de sua própria obra. E que devem ser lidos “de uma assentada”, ou seja, de uma só vez, como recomendava o escritor norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849).
A
rigor, apresentação da obra é o que não falta neste livro. “(...) Silas é poeta
confesso, réu dessa arte, hábil arranjador de ideias travestidas com palavras,
disfarçado, como se pretendesse só contar casinhos. Ah, mas quanto ardil! É
visgo! E ficamos presos no próximo, e no seguinte, e mais um, e vira-página, e
flui, mais um, outro, e vira-página... Metralhadora. E tem pasmo, tem sarro,
tem riso, tem siso, tem cisma, tem clima, tem crítica, tem até rima...”, lê-se
no prefácio que tem por título “E a vaca saiu do brejo”, que, por erro de
edição, saiu sem assinatura, mas cuja autoria é do teatrólogo, professor, jornalista
e gestor cultural Luiz Eduardo de Carvalho, autor de Crônicas do ofício
(Cotia-SP, Editora Cajuína, 2022), que carrega mais de cinquenta prêmios
literários no currículo, além de participação em dezenas de antologias, feiras
e bienais.
Já
no texto de apresentação que se lê na primeira “orelha” do livro, Rodrigo da
Costa Araújo, ensaísta e mestre em Ciências da Arte pela Universidade Federal Fluminense
(UFF), observa que as narrativas de Silas Corrêa Leite desafiam “o já
estabelecido da literatura canônica e nacional”, tal a agudeza de suas
reflexões, que “reforçam o olhar atento e sensível do escritor às suas variadas
faces com provocações e observações da vida literária e dos muitos circuitos
que dela fazem parte”.
Por
fim, no texto de apresentação que aparece na contracapa, o contista José
Augusto Carvalho, doutor em Letras na área de Língua Portuguesa e Filologia
pela Universidade de São Paulo (USP), reconhece que “as micronarrativas deste
livro são também poéticas, às vezes asquerosas, mas todas fáceis de ler, todas
levando à reflexão (às vezes com imagens bonitas, como “bengala de lágrimas”)”.
E destaca que este livro renova a linguagem, com trocadilhos, aforismos e
paronímias, ou seja, palavras que são pronunciadas ou escritas de maneira
semelhante, mas que têm significados lexicais diferentes, como resto/rostos.
II
Da
parte deste resenhista, o que se pode acrescentar é que estes microcontos
procuram cumprir, ainda que aleatoriamente, os requisitos que o escritor
português Eça de Queirós (1845-1900) exigia para que o gênero fosse perfeito,
ou seja, que exalasse o poder da fantasia, a sutileza da escrita, a leveza, o
traço fino, leve e sugestivo, como se lê em sua Carta aos condes de Arnoso e
Sabugosa, datada de 8/2/1895, inclusa em sua Obra Completa (Rio de
Janeiro, Nova Aguilar, vol. IV, 1997/2000).
Afinal,
sua estrutura não comporta uma análise das vivências de uma personagem, como
seria comum num romance, gênero de difícil definição, mas apenas o relato de um
episódio rápido, uma recordação ou a observação percuciente de um comportamento
que fugiria ao usual, fazendo da ironia um exercício permanente da inteligência.
Há contos mais extensos, mas, na maioria, estes textos são brevíssimos e ocupam
uma página, ou menos do que isso, aproximando-se do poema em prosa, já que vêm
escritos numa linguagem metafórica.
Um
exemplo é este microconto, de apenas quatro ou cinco linhas, intitulado
“Crime”, que pode ser reproduzido aqui na íntegra sem maiores acréscimos ao
espaço reduzido de uma resenha ou recensão:
Quando entrou para o Partido
Liberal foi que descobriu que o crime compensava e dava imunidade parlamentar.
E não havia riscos como nos assaltos a bancos e nas montadas glosas ao Fisco. E
ainda podia retornar sempre ao local do crime, pois teria carteirinha do Juízo
Eleitoral, o que lhe daria até a guarida da chamada imunidade diplomática. (pág.
32).
III
Mais
adiante, pode-se ler outra breve narrativa em que se conhece a desdita de um
morador da lendária cidade de Itararé, localizada na divisa entre os Estados de
São Paulo e Paraná, que ficou famosa por ter sido cenário de uma batalha que
não houve à época do golpe militar de 1930, que passou para a História do
Brasil como “Revolução de 30” e pôs fim à República Velha que era dominada
pelas carcomidas elites paulistas e mineiras. Nesse miniconto, intitulado
“Deuses”, constata-se outra vez o uso da ironia:
Os deuses estavam azedos com
Deolindo. E não o bafejaram, nem com fechamentos de ciclos. Por isso, quando
ganhou sozinho na Loteria da Sorte Federal, sofreu um mal súbito e foi internado
na Santa Casa de Misericórdia de Itararé. O Dr. Jonas de Alencar diagnosticou
câncer no cérebro. As memórias todas tinham sido destruídas. Morreu uma semana
depois, rico. Rico e sem se lembrar das medidas de aprendizado no andaime
financeiro da sobrevivência possível em tempos de vacas magras. (pág. 71).
Já
no conto “Drogas”, a ambiguidade de sentimentos é realçada, exigindo uma
atenção concentrada do leitor:
Finge que é feliz. Pensa que pensa.
Acha que é o que não é. Briga com o marido e diz que quer ser ela mesma. O
filho perdeu para as drogas, o casamento é de enfeite. Mas quando vai ao
Serviço de Proteção aos Animais denunciar que o síndico do Edifício Três
Poderes permite cachorros vadios no prédio, arrota grandeza e assedia
sexualmente o zelador bem-dotado. (pág. 159).
Estes três breves contos ficam aqui
como exemplo do que o leitor irá encontrar neste novo livro de Silas Corrêa
Leite, uma obra que procura apresentar um mundo lúdico e divertido olhado por
um contador de histórias capaz de enxergar o lado escondido do ser humano.
IV
Nascido
em Monte Alegre, hoje Telêmaco Borba, no Paraná, Silas Corrêa Leite, além de
contista e romancista, é poeta, letrista, professor, bibliotecário, desenhista,
jornalista, ensaísta, blogueiro e membro da União Brasileira de Escritores
(UBE).
Lançou
Campo de trigo com corvos (Jaraguá do Sul-SC, Design Editora, 2007); Gute-Gute, barriga experimental de
repertório (Rio de Janeiro, Editora Autografia, 2015); Goto, a lenda do reino encantado do barqueiro noturno do rio Itararé
(Florianópolis, Clube de Autores Editora, 2013); Tibete, de quando você não
quiser ser gente (Rio de Janeiro, Editora Jaguatirica, 2017); Ele está
no meio de nós (Curitiba, Kotter Editorial, 2018); e O lixeiro e o
presidente (Curitiba, Kotter Editorial, 2019);
Nos
últimos tempos, lançou Transpenumbra do Armagedon (São Paulo,
Desconcertos Editora, 2021); Cavalos Selvagens, romance imaginativo
(Curitiba/Taubaté, Kotter Editorial/Letra Selvagem, 2021); A Coisa: muito
além do coração selvagem da vida (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2021); Lampejos
(Belo Horizonte, Sangre Editorial, 2019); e Leitmotiv: a longa estrada de fogueiras
da cor de laranja: diário da paixão secreta de Anne Frank (Curitiba, Kotter
Editorial, 2023).
É autor ainda de Porta-lapsos, poemas (São Paulo, Editora All-Print, 2005); O Homem que virou cerveja, crônicas (São Paulo, Giz Editorial, 2009); e Favela stories, contos (Cotia-SP, Editora Cajuína, 2022). Seus trabalhos constam de mais de cem antologias, inclusive no exterior, como na Antologia Multilingue de Letteratura Contemporanea, de Treton, Itália, e Christmas Anthology, de Ohio/EUA. É autor do primeiro livro interativo da Internet, o e-book O rinoceronte de Clarice, que virou tema de tese de mestrado na Universidade de Brasília (UnB) e de doutoramento na Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Adelto Gonçalves - Brasil
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Vaca profana: microcontos, de Silas Corrêa Leite, com prefácio de Luiz
Eduardo de Carvalho e textos de apresentação de Rodrigo da Costa Araújo e José
Augusto Carvalho. Cotia-SP: Editora Cajuína, 200 págs., R$ 92,00, 2023. Site:
www.cajuinaeditoria.com.br E-mail: contato@editoracajuina.com.br E-mail do autor: poesilas@terra.com.br Site do autor: www.poetasilascorrealeite.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade
de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a
Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino, a Colônia e o Poder: o governo
Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros.
E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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