Com
um estilo despudorado, obra de estreia de Marcelo Theo mistura realidade e
fantasia
I
Em nenhum dos poetas brasileiros, antigos ou modernos, a sombra da morte é tão presente como neste livro de estreia de Marcelo Theo (1969), Peccatum Sum (que, em latim, quer dizer “Eu sou o pecado” ou simplesmente “Eu pequei”), que acaba de ser publicado pela Editora Letra Selvagem, de Taubaté-SP. A obra reúne poemas que foram escritos durante os anos em que o autor se assinava como Teteco dos Anjos e vivia chafurdado no vício em narcóticos e no alcoolismo, em meio a hordas de rejeitados que viviam nas ruas e vielas de tradicionais cidades da Europa, como Roma, Paris, Lisboa e Amsterdam.
Como
bem observa no prefácio o poeta, ensaísta, filósofo e dramaturgo Marcelo Ariel,
este livro está inserido num gênero que pode ser chamado de “brutalista” e que inclui
nomes como os do romancista e contista Rubem Fonseca (1925-2020), do contista
Dalton Trevisan (1925), do teatrólogo Plínio Marcos (1935-1999) e dos poetas
Glauco Mattoso, pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva (1951), e Roberto
Piva (1937-2010), entre outros.
Ou
seja, trata-se de um gênero marcado por uma genuína transgressão da linguagem,
em que não faltam palavras e, às vezes, até palavrões comuns no dia a dia de
uma população marginalizada da vida social e econômica do País, afetada pela
urbanização rápida das cidades provocada por uma industrialização sem medidas e
avanço da ganância especulativa tanto na área urbana como em territórios
indígenas. Seja como for, em seus poemas, perpassa também a sombra de poetas brasileiros
clássicos como Mário de Andrade (1893-1945) e Jorge de Lima (1893-1953) e de simbolistas
franceses.
Composto
por três seções, o livro, em sua primeira parte, “Poemas sardos e outras
envergaduras”, apresenta peças que foram esboçados na Sardenha, na Itália, em
2007, quando Marcelo Theo se apresentava em boates e inferninhos com um
grupo especializado em Brazilian Jazz. Num desses poemas, “Novos
afrescos para Roma”, evoca também o tempo vivido na capital da Itália em que
demonstra um pouco como é difícil a adaptação dos brasileiros aventureiros que
carregam o sonho de viver e enriquecer nas terras de Dante e outros solos
europeus. Eis um excerto desse poema:
(...) Roma abriga legiões de farejadores / contra Pindorama
/ dos filhos de Tupã / Roma não sabe o que é estar só em Roma / ela é a verruga
na cara de todo mundo / não precisa de mim, nem dos meus versos / Roma não viu
o sol rodopiar no horizonte / como um porco espinho de ouro / Roma recebe Bush
debaixo de vaias / Ah... estou nessa com Roma / Napolitano sorri azedo / o Papa
se esquiva com sua fálica aura / do deus mortificado e desencantado / Bush
peida... / os afrescos da Capela Sistina percebem / santos e anjos tossem,
tísicos e resignados / oh velha Roma das derivações seculares que me foderam no
/ Brasil / Roma vai dormir agora / calam-se anjos e demônios / Roma foi
purificada pelo canto do rouxinol na aurora.
II
Na
segunda parte, “Poemas avulsos”, que reúne peças escritas entre 2009 e 2013, a
uma época em que o autor lutava para escapar da ilusão provocada pelo álcool e
pelos narcóticos, o leitor vai encontrar um alter ego que se assemelha,
em voracidade e palavreado vulgar e até obsceno, a Charles Bukowski (1920-1994),
poeta, contista e romancista norte-americano nascido na Alemanha, com um estilo
violento e despudorado, que pode ofender olhos e ouvidos mais pudicos. E que
deixa entrever também uma forte influência de autores ligados à Geração Beat
norte-americana, como Jack Kerouac (1922-1969), Allen Ginsberg (1926-1997) e
William Burroughs (1914-1997).
A
par disso, constata-se mesmo uma poética surrealizante que esconde uma
auto-ironia e marca a passagem pelo inferno da depressão e pelo falso paraíso
suscitado pelo uso de alucinógenos. É o que se pode ver neste poema que leva
por título “Demência”:
a humanidade é a coisa mais demente / que pode existir /
aliás, não tenho certeza se ela pode existir / de fato / deveriam tê-la
proibido disso... / creio que o universo / sensato e glorioso / a proibiu /
mas, / deve ter havido / um trambique... / um embuste lá das profundezas / e cá
estamos / mais fodidos que uma capivara no abismo
Já
a terceira parte é formada apenas por duas longas peças, “Ab Imo Pectore” e “Um
poema”, que foram escritas também entre 2009 e 2013, ano este em que o poeta
começou o seu tratamento contra os narcóticos e o álcool. São poemas que marcam
a saída do poeta do inferno apocalíptico das drogas, como se lê neste excerto de
“Um poema” (2013):
“(...) eu não ando pela rua óbvia e comum / vou por
caminhos desconhecidos, caminhos dentro da / neblina diáfana e mágica, /
perigosos até, e são caminhos que me levam ao êxtase e ao / inferno, / enquanto
observo o inútil e maravilhoso fluir do tempo / dentro de mim, / dentro de nós,
das árvores, nuvens e animais, / caminhos que passam em torno e por dentro das
estrelas / e se espalham por todo o infinito”.
São dois “poemas épicos, sem cronologia, nem lugares
específicos”, como diz o autor numa espécie de preâmbulo, ao acrescentar que
neles procurou misturar realidade e fantasia, mas deixando claro que não são
“surreais” ou “dadaístas”, ou ainda sem nexo. Eis um excerto de “Ab Imo
Pectore”, que em latim significa “Do fundo do meu coração”:
“(...) eu nunca estou em um local fácil ou seguro /
procurem-me entre o que arde / entre bocas que gritam e guindastes abandonados
/ atrás dos holofotes, entre os insetos que se matam na luz / nos antigos
armazéns delegados ao tempo / nas histórias de guerras e grandes batalhas / mas
também nas fábulas carinhosas e divertidas / nos jardins coloridos que esbanjam
vida e crianças serelepes / nos hologramas de um futuro feliz e propício / que
a mente projeta no infinito, ah, devo estar por lá também e aqui (...).
III
Foto: Eduardo
Lazzarini |
Nascido
na cidade de Taubaté-SP, em família de classe média abastada, Marcelo Theo, quando
completou dez anos de idade, começou a estudar música, especialmente violão e
piano, com a musicista, compositora, poeta, diretora musical e artista plástica
Geny Marcondes (1916-2011), que, ao mesmo tempo, passou a lhe indicar obras da
literatura nacional bem como de poetas simbolistas franceses e obras clássicas
das literaturas russa e inglesa, além dos escritores da chamada Geração Beat
norte-americana, que sacudiu os alicerces literários dos Estados Unidos, a
partir da década de 1950.
Como reconhece o poeta, esses autores acabaram por lhe atrair pela linguagem coloquial que utilizavam. Autodidata, passou a conhecer desde cedo não só os grandes autores da literatura mundial, como também da filosofia clássica e da filosofia mística oriental, sem deixar de percorrer as obras fundamentais da História do Brasil e do mundo. Adelto Gonçalves - Brasil
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Pecatum Sum, de Marcelo Theo, com prefácio de Marcelo Ariel. Taubaté-SP: Editora Letra Selvagem, 216 págs., R$ 65,00, 2022. Site: www.letraselvagem.com.br
E-mails: editoraelivrarialetraselvagem@gmail.com.br letraselvagem@uol.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade
de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Fernando Pessoa: a
Voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997); Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia
Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), O Reino a Colônia e o Poder: o governo
Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros.
E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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