Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 10 de setembro de 2023

Cem anos de Natália Correia: a criação literária e a intervenção política de uma mulher única

A expressão de Natália Correia (1923-1993) constituiu sempre um espetáculo: umas vezes as palavras eram macias e aveludadas, outras escaldantes de cólera e sarcasmo. Nunca recorreu a máscaras. Foi, orgulhosamente, ela própria. No centenário de seu nascimento, que se assinala na próxima quarta-feira, recordamo-la. (Texto publicado originalmente na revista do Expresso nº 2654, vol. 2, Lisboa, edição de 9 de Setembro, 2023)


Era uma força da natureza que desejava manter-se na íntegra. Mas só o pôde enquanto a saúde lhe permitiu. Natália Correia queria o impossível: continuar com o porte altivo, imponente, olímpico e a elegância física que faziam parar o Chiado, ou onde quer que passasse. Contudo, os últimos anos foram penosos. Fumar cigarros uns a seguir aos outros e ter apetite devorador para jantares opíparos e ceias pantagruélicas tem o seu preço. As caricaturas do Vasco não foram impiedosas. Um cartunista com força de Vasco podia ter sido muito mais cruel.

Nasceu a 13 de setembro de 1923, na ilha de São Miguel dos Açores, na freguesia da Fajã de Baixo, próximo da cidade de Ponta Delgada. O país mergulhara na turbulência social, na agitação política e na indisciplina militar. A crise financeira acentuava-se. As sucessivas alterações governamentais, na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler começavam a alastrar na primeira metade do século XX, um dos séculos mais trágicos e mais contraditórios da História. Foi neste quadro que se consolidou e expandiu o fascismo, o nazismo, o salazarismo e o franquismo.

Desenvolveu-se, partir de então, a indomável personalidade de Natália. Pai e mãe entraram em rutura quando tinha alguns meses. O pai emigrou para o Brasil. A mãe, Maria José Oliveira, professora primária que assimilou os valores cívicos e culturais da República, adquiriu formação laica e tendências libertárias. Colaborou em jornais e revistas. Frequentou tertúlias literárias e políticas, mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas: Carmen e Natália. Incutiu-lhes os princípios da liberdade, da independência, da solidariedade humana, os valores universais que fundamentam uma sociedade democrática.

O salazarismo arrancara com o patrocínio de um sector decisivo das Forças Armadas, da Igreja Católica — ferida pelas leis da República — e o contributo do poder financeiro e económico. A instauração da Censura, a vigilância sistemática da polícia política e o apoio incondicional de tribunais especiais reprimiram a opinião pública e silenciaram os vários sectores da oposição. Foi em 1934 que a mãe de Natália e de Carmen se instalou, definitivamente, em Lisboa.

Procurou dar às filhas outros horizontes. “Sendo uma intelectual que não se pôde realizar inteiramente devido ao meio e às circunstâncias — recordou Natália — quis preparar-nos.” Entendia que “o desenvolvimento intelectual da mulher corresponde a uma atitude social”. “A permanência em São Miguel, mesmo na cidade de Ponta Delgada, não reunia condições para nos desenvolver.” (...) era “um meio muito exíguo.” Natália Correia ainda passou pelo Liceu de Ponta Delgada; frequentou em Lisboa o Liceu Filipa de Lencastre, mas sem qualquer aproveitamento. Ficou, apenas, com o primeiro ciclo dos liceus.

Mostrou-se refratária aos métodos de ensino. Ela própria o declarou que “não podia aceitar regras impostas de fora: eu é que as tinha de criar”. A passagem pelos liceus foi, segundo as suas palavras, de “ave migratória”. O problema não se colocava, apenas, em São Miguel. Em Lisboa repetiu-se a mesma situação: os métodos eram semelhantes. A escola não constituía um espaço de formação. O ensino tinha de ser um ato de participação e cidadania, para habilitar os alunos a pensar e a interrogar o mundo.

Primeiras asas

Natália tornou-se, aos 22 anos — no esplendor da juventude —, uma figura de Lisboa ligada aos acontecimentos literários e políticos que permaneciam na ordem do dia. Nesta primeira fase — dos anos 40 aos anos 50 — conciliou o jornalismo, a literatura e a política. Ainda colaborou no Rádio Clube Português. Integrou-se nos círculos da oposição democrática.

Três jornalistas micaelenses, amigos da mãe, que trabalhavam em Lisboa, estimularam as aspirações de Natália. Trata-se de Rebelo de Bettencourt (1894-1969) amigo de Fernando Pessoa e de Almada Negreiros, antigo chefe de redação do “Portugal Futurista” e que se acomodou, depois, a chefiar a redação da “Gazeta dos Caminhos de Ferro” e da revista “Viagem”; e o padre Diniz da Luz (1915-1988), antifascista e exaltado e antigermanófilo tempestuoso, embora redator do jornal “A Voz”, um dos diários monárquicos, católicos, ultraconservadores, onde se preparou a conspiração para implantar a ditadura militar, em 28 de Maio de 1926, e introduzir , depois, o salazarismo.

Em 1946, Natália, principiou no quinzenário “Portugal Madeira e Açores”, empenhado na defesa dos interesses das então chamadas “ilhas adjacentes”. Chefiava a redação outro amigo da mãe: Breno de Vasconcelos (1909-1993), oriundo do “Correio dos Açores”, o memorialista do livro “A Paz Cinzenta” (1979).

Colaborou, depois, no semanário “O Sol”, fundado e dirigido por Alberto Lello Portela, (1893-1949), antigo político e parlamentar republicano e um dos militares que ingressaram nos primórdios da aviação.

Destacou-se com seu irmão, o advogado Raul Lello Portela, nos combates da oposição ao salazarismo. A chefia da redação de “O Sol” era assegurada por Alves Morgado (1901-1980), um outro profissional, conhecedor das regras do ofício. A distribuição de trabalho à redação (inclusive o desporto), nas relações com os colaboradores, nos contactos com a tipografia e na revisão escrupulosa de textos.

Tinha a colaboração de grandes nomes, como António Sérgio e Maria Archer, que deram visibilidade mediática a “O Sol”. Acrescente-se: Sérgio vacinou Natália contra o PCP e os outros núcleos marxistas e comunistas.

Natália falava e escrevia com desembaraço inglês e francês. Escreveu sobre política nacional e internacional: analisou as consequências da guerra de 1939 a 1945; as diretrizes de Mussolini e de Hitler, os efeitos do nazismo, os fundamentos do Reich, as extensões do fascismo na Europa (e a sua) disseminação em Portugal, na classe política e militar. Também escreveu sobre literatura e arte. Publicou um romance, um livro de poemas e um livro de reportagem e de crónicas de viagens.


O veneno da política

Herdou também da mãe — opositora declarada do salazarismo — o interesse pela política. Até à morte, a política constituiu uma solicitação irresistível: a ânsia incontrolável de possuir informação, em cima da hora, o desejo de partilhar nos debates e a disponibilidade para se embrenhar nas possíveis conspirações, num país repleto dos condicionalismos que se prolongaram até ao 25 de Abril.

Subscreveu as listas do MUD que reclamavam a reposição das liberdades e garantias fundamentais. Envolveu-se na candidatura de Norton de Matos, deslocou-se, expressamente, a Ponte de Lima, para entrevistar o general, na sua casa de férias.

Participou, em 1958, na candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República, concedendo uma entrevista explosiva ao “Diário Ilustrado”. Apoiou outros movimentos, entre os quais a ocupação do navio “Santa Maria”, comandado por Henrique Galvão, para acelerar a queda de Salazar e para pôr termo à política colonial. Nas primeiras eleições do consulado de Marcello Caetano, em 1969, colaborou com Mário Soares e Salgado Zenha na formação da CEUD, em luta com o MDP/ CDE, que incorporava comunistas e outros radicais de esquerda. Incluindo os chamados “católicos progressistas”.

Apesar de toda esta intervenção, ao surgir o 25 de Abril, os dirigentes partidários recearam convidá-la. Era imprevisível e um perigo iminente, em momentos delicados e complexos. Na linhagem das “Cantigas de Escárnio e Maldizer”, Natália Correia criou as “Cantigas de Risadilha”, para escarnecer a classe política. Não poupou amigos como Mário Soares e o Partido Socialista: “Já não sei se é país se é orfanato/ pois nem vela, nem reza, nem sabá/impede que em berreiro ou desacato/ ande tudo à procura do Papá”. (...) “Tinha o PS pai. Mas o Marocas/ mandou alguns filhotes para o galheiro/ e do partido por trocas e baldrocas,/ já não consegue ser o pai inteiro”. (...) “nesta lusa farronca sem vintém,/ neste muda que muda sem mudança,/ venha o que venha, há de lixar-se quem/ do salsifré tiver a governança”.

Em termo desdenhoso alvejou Freitas do Amaral: “muito a preceito dos cristãos fervores/ do CDS, o Lucas é o retrato/ De um menino Jesus entre os doutores/ A meter mestre Freitas num sapato”. Devido ao insólito mergulho no Tejo e outras peripécias não escapou Marcelo Rebelo de Sousa, o “picareta falante”: “o Marcelo neste mapa/ a brincar aos cowboys não há nenhum./ passa rasteira: o mais subtil derrapa;/ dá ao gatilho da intriga e faz: pum-pum.” Sempre que podia dissecava o poder político e a rotina social. Zurziu as prosápias de fidalguia; os vícios e as vilezas dos novos e novíssimos ricos, os intelectuais e artistas enfatuados, os políticos arrivistas e corruptos. Execrava, ruidosamente, a ignorância e o fanatismo.

Estreitou amizade com Francisco Sá Carneiro, ao apadrinhar a aproximação íntima com Snu Abecasis. Assim, só em 1979, por insistência de Francisco Sá Carneiro, ingressou na Aliança Democrática. Finalmente, passou a ser deputada pelo PSD. Assumiu, como era de presumir, posições em divergência frontal com a linha de orientação política e religiosa da quase totalidade do PSD e do CDS.

A defesa do aborto deu lugar a uma intervenção de Natália que agitou a Assembleia da Republica. Ficaram célebres os seus versos, ao arrasar o deputado do CDS João Morgado, por ter proferido, no auge do debate parlamentar sobre a legislação sobre o aborto, a afirmação perentória que “o ato sexual é para fazer filhos”. Natália não se conteve e escreveu, de jato, um poema que circulou, em todo o país, até porque sairia, no dia seguinte, no “Diário de Lisboa”: “Já que o coito — diz Morgado — /tem como fim cristalino, /preciso e imaculado/ fazer menina ou menino;/ e cada vez que o varão/ sexual petisco manduca,/ temos na procriação/ prova de que houve truca-truca./ Sendo pai só de um rebento, /lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento/ só usou — parca ração! — / uma vez. E se a função/ faz o órgão — diz o ditado —/ consumada essa exceção,/ ficou capado o Morgado!”

Confirmaram-se todas as apreensões. Nem o PSD lhe renovou o mandato, nem o PS — à frente do qual estava Jorge Sampaio — aceitou a proposta de entrar nas listas. Natália aderiu, então, ao Partido Renovador Democrático (PRD), que se constituiu sob a égide de Ramalho Eanes. Porque nada mais lhe restava, em 1992, cerca de um ano antes de falecer, juntamente com José Saramago e Luís Francisco Rebelo, entre outros, integrou a Frente Nacional Para a Defesa da Cultura (FNDC). Foi no segundo mandato presidencial de Mário Soares. Tinha por objetivo denunciar violações à liberdade de expressão, à ausência de pluralidade e diversidade na cultura e exigir uma estratégica para a real democratização do país. Os mal-entendidos e os conflitos reacenderam-se. O projeto extinguiu-se.

O percurso literário

Os primórdios da escrita de Natália Correia aproximam-se, em alguns aspetos, do neorrealismo. Demarcou-se, todavia, deste movimento literário e político. Ela própria explicou a sua opção: “Se pus ‘Anoiteceu no Bairro’ (romance da sua autoria, de 1946) à margem, não foi por ter sido escrito numa fase imatura da minha vida, mas porque o entendo inautêntico. Embora o livro corresponda a preocupações ideológicas que mantenho, não estou interessada em fazer literatura programada.” Era da opinião que, entre nós, “se fizera neorrealismo de empréstimo, de segunda mão” (...) “não se agitaram as pessoas e as instituições de forma a tornar visível o lodo depositado no fundo”(...) “Houve o medo” — concluiu — “de se realizar sequer um realismo a sério, porquanto este exige uma descida ao inferno e não vejo por aí quem se atreva além do purgatório”. Por isso se afastou do neorrealismo, cortou com a orientação literária e política de escritores portugueses que o representavam, muitos dos quais pertenciam ao Partido Comunista ou estavam próximo dele. Foi ainda mais explícita: “Não podemos competir — insistiu — com os mestres do neorrealismo americano e europeu, que, bons ou maus, para quem aprecia o género, já disseram a última palavra.”

Seguiu outro caminho que prosseguiu, com variantes óbvias. Passou a estar próxima do surrealismo. Já tinha relações pessoais com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Isabel Meyrelles, Alexandre O’Neill, Manuel de Lima, Mário Henrique Leiria e David Mourão-Ferreira. Acrescente-se Luís Pacheco, editor dos surrealistas e de livros de Natália nesta fase literária: “Dimensão Encontrada” (1957), “Passaporte” (1958), “Comunicação” (1959) e, mesmo, “O Canto do País Emerso” (1961).

A propósito da ligação ao surrealismo e aos surrealistas portugueses fez questão de observar: “Se existe qualquer relação entre a minha poesia e o surrealismo é francamente a posteriori, isto é para os que quiserem vê-la. Quanto a procurarem antecedentes, também temos por cá outros mais à mão que foram surrealistas sem pensar nisso: Gomes Leal e Sá Carneiro.”

A criação de Natália, sempre avessa a códigos literários e estéticos, verificou-se nos livros de poemas, nos romances, nas memórias, nas peças de teatro e nos ensaios, nasce e expande-se, em todos os sentidos, mergulha na complexidade do mundo, umas vezes numa interpelação provocatória, outras em torno das mais ínfimas e subtis realidades. Em suma, um todo bastante diverso, mas coeso, nas suas afinidades eletivas.

O último salão de Lisboa

Mesmo em vida, Natália Correia já pertencia à História de Lisboa. Residia num quinto andar do número 52 da Rua Rodrigues Sampaio, entre a Rua de Santa Marta e a Avenida da Liberdade. Ali permaneceu 40 anos, desde 1953 a 1993. Ali faleceu a 16 de março de 1993, horas depois de chegar a casa, ao regressar do Botequim. O lendário diretor do “Diário de Notícias” Augusto de Castro repetiu, até à exaustão, em livros, discursos e editoriais, que o “último salão literário de Lisboa” fora a casa, em Santa Catarina, de Maria Amália Vaz de Carvalho (1847-1921). É certo que marcou um tempo cultural, mas cada época tem o seu salão literário.

Na segunda metade do século XX, a casa de Natália Correia, entre várias outras, foi um espaço privilegiado de convívio, rodeado de uma fabulosa biblioteca, de notáveis obras de arte e de surpreendentes peças de arte decorativa. A hospitalidade afetuosa conjugava-se com a estatura intelectual dos convidados de Natália, em noites inesquecíveis que avançavam pela madrugada. Durante a passagem por Lisboa ofereceu receções a Marcel Marceau (que entrevistei, em 1959, ao lado de Natália, para o jornal “República”); ao poeta russo Ievtuchenko, ao poeta Henri Michaux; e, já no Botequim, ao jornalista e escritor Dominique de Roux, autor do enigmático romance “O Quinto Império”; e ainda aos escritores americanos Graham Greene e Henry Miller.

Visceralmente açoriana

Ficou sempre agarrada aos Açores. Nasceu, viveu e morreu açoriana. Um dos seus muitos poemas de forte componente insular resume-se nestes versos: “Para Lisboa me trouxeram/ não de uma vez e embarcada:/ minha longa matéria foi/ pouco a pouco transportada./Recém-vinda de ficada/ em morosa maravilha,/ sempre a chegar a Lisboa/ e sempre a ficar na ilha”.

Num dos seus livros mais emblemáticos, “Não Percas a Rosa”, encontramos sucessivas recordações da infância e da adolescência associadas a memórias gustativas, olfativas e visuais como, por exemplo, o cozido das Furnas sempre com inhames e maçarocas de milho. Desce mesmo ao pormenor: “Cozidas na terra fervente e mole à beira da Lagoa e que depois comemos numa mesa de pedra sob as plumas dos fetos; por entre colinas de pedra pomes, líquenes, musgos, mantos verdes que pendem dos ribanceiros onde se abrem as alas rosadas e azuis das hortênsias.” Ficou a ser, por vários motivos e até ao fim, uma ilha dentro da sua própria ilha.

O Botequim

Multiplicaram-se as dificuldades financeiras. O marido, Alfredo Machado, um jogador compulsivo, deixou de ter os recursos para manter uma vida aparatosa para Natália possuir em casa um salão — o seu palco doméstico — para receções faustosas e requintadas.

Em 1971, Natália, com o marido e a escultora Isabel Meyreles fundaram, no Largo da Graça, onde existiu em tempo uma carvoaria, um bar restaurante que lhe permitiu um novo espaço para voltar a pontificar. Tinha necessidade permanente de espetáculo. Chamava-se O Botequim, um nome que remetia para os cafés e restaurantes de Lisboa, do século XVII, do tempo de Bocage, da implantação do regime liberal e da independência do Brasil.

Rapidamente, O Botequim ganhou a maior notoriedade. Existiam (e existem) outros centros de convívio e de conspiração: o Snob, na Rua do Século; o Procópio, nas Amoreiras; o After Eight, na Praça das Flores. Nenhum deles, comparável a O Botequim.

Concentravam-se no Botequim poetas e escritores de várias tendências. Políticos de todos os quadrantes. Deputados, ministros, atuais ou futuros, presidentes da República. Representantes da FLAD, o movimento da independência dos Açores. Incorporou as fases conturbadas do processo revolucionário e contrarrevolucionário que vivemos na sequência do 25 de Abril.

Encontrava-se Natália envolvida, em 1971, em controvérsias políticas e literárias que deram brado em todo o país. Desencadeara no consulado de Salazar e na “primavera marcelista” duas ruidosas polémicas que a levaram à barra do Tribunal Plenário de Lisboa. O primeiro processo, motivado pela introdução e coordenação da “Antologia de Poesia Erótica e Satírica” (1965). O segundo processo devido à responsabilidade editorial das “Novas Cartas Portuguesas” (1972), da autoria de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Ambos os livros desencadearam o alarme da Censura e a imediata apreensão da PIDE. Natália foi julgada e condenada, ao cabo de nove anos de guerrilhas judiciais. O 25 de Abril determinou o ponto final.

A presença carismática de Natália pontificou, no Botequim, durante mais de 20 anos. Com a morte de Natália, morreu o Botequim. Revive, contudo, no livro de Fernando Dacosta “O Botequim da Liberdade” (Lisboa, 2013). Na “Fotobiografia de Natália Correia”, de Ana Paula Costa (2006) e na extensa biografia romanceada de Filipa Martins “O Dever de Deslumbrar” (2024). Um facto, porém, é incontestável: malograram-se as tentativas de revitalizar o Botequim. Com a morte de Natália, o Botequim ficou morto e enterrado.

Ela e só ela

A memória de Natália perdura na sua obra. Pouco antes de falecer reuniu as poesias completas em dois volumes e com o título genérico “O Sol das Noites e o Luar dos Dias” (1993). Clara Rocha classificou nesta síntese lapidar: “O retrato de uma voz que se modula nos sons da fúria ou da emoção lírica, do riso ou da mágoa, da saudade e da vivência, mas que estremece e, livre, resiste, se transforma e transforma.”

O nome de Natália encontra-se consagrado em ruas, de Lisboa e dos Açores, em diversas bibliotecas, no repertório musical de Carlos Alberto Moniz e num café de Angra do Heroísmo e com a seguinte lápide: “Quando me derem por morta/ de lágrimas nem uma pinga:/ um trevo de quatro folhas/ tenho debaixo da língua./ Está em regra o passaporte./ Venha o limite de idade/ não me chorem, não é morte/ é só invisibilidade./ Túnel, poço ou espiral/ suga a alma. Fica o corpo./ Vai-se a cópia sideral/ e isso não é estar morto.”

As comemorações centenárias — a realizar de 2023 a 2024 — em Portugal, em França e noutros países vão, mais uma vez, demonstrar que está viva.

Recuperado o espólio de Natália Correia

O património familiar de Natália resumia-se aos bens de um tio, irmão do pai, o padre Francisco Oliveira Correia, muitos anos pároco da freguesia da Achadinha, na costa norte da ilha de São Miguel. Acumulou bens patrimoniais e depósitos bancários. Era extremamente conservador. Como poderia aceitar a separação da mãe do pai, a rebeldia literária e política de Natália e, ainda por cima, três casamentos civis consecutivos? — com Dias Ferreira, em 1949; com William Hylen, e com Alfredo Machado, um homem muito mais velho (e a partir de 17 de março de 1990 viria ainda a casar com um amigo íntimo de longos anos, o poeta e realizador Dórdio Guimarães). O resultado foi óbvio. O advogado José de Medeiros Tavares (1899-1986), da Ribeira Grande, a meu pedido, sem levar quaisquer honorários, consultou as possíveis disposições testamentárias. Obviamente, Natália e a irmã ficaram sem hipótese de se habilitar aos bens móveis e imóveis. No início do livro “Não Percas a Rosa” (1978), Natália aludiu ao tio com o maior desdém.

Pertenciam ao colecionador Manuel Cardoso Martha — a quem Natália, na casa da Rodrigues Sampaio deu acolhimento no final da vida — a biblioteca, os quadros, óleos, guaches, desenhos, esculturas e objetos raros de arte decorativa. Era amigo de sua mãe e também o professor de Natália que, durante anos, contribuiu para que ficasse com uma sólida cultura intelectual. Apurou-lhe os conhecimentos de língua portuguesa. Desenvolveu-lhe os rudimentos de francês e inglês, que passou a falar e a escrever corretamente.

O viúvo de Natália, o poeta e realizador Dórdio Guimarães, viria a ser o herdeiro natural de todos os bens de Natália que eram de Cardoso Martha. Após a morte de Dórdio Guimarães, que fizera 16 testamentos, Luís Fagundes Duarte, na altura diretor regional da Cultura, decidiu avaliar a importância da biblioteca. Como solução de emergência mandou fotografar cada uma das prateleiras das numerosas estantes. Incumbiu o advogado Álvaro Monjardino de clarificar este processo. Por tudo isto o espólio distribuiu-se por São Miguel, para a Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada; pela Biblioteca Nacional de Lisboa e pela Sociedade Portuguesa de Autores. Evitou-se o roubo e a dispersão. Manuel Cardoso Martha (1882-1958) figueirense dos quatro costados, lecionava em Lisboa na Escola Fonseca Benevides. Antigo seminarista, com profundo conhecimento das humanidades clássicas da literatura portuguesa e das várias literaturas europeias, Cardoso Martha era um notável erudito, bibliógrafo, bibliófilo, colecionador de manuscritos e de livros raros e antigos.

Entre numerosos manuscritos encontrou-se uma coleção de poesias — cuja capa reproduzimos — com o título “O Purgatório dos Poetas: Poesias Eróticas d’Alguns Escritores Portugueses dos Séculos XV a XIX / Coligidas por Cardoso Martha — 1935”. Revista e acrescentada com autores contemporâneos, viria a constituir a polémia “Antologia de Poesia Erótica e Satírica”, coordenada por Natália Correia e editada por Fernando Ribeiro de Melo. A herança de Cardoso Martha — que organizou em 1912 e 1913 no Grémio Literário o I e II Salão dos Humoristas — possuía desenhos, aguarelas e guaches de Almada Negreiros, Stuart Carvalhais, Christiano Cruz, Jorge Barradas e outros participantes no primeiro modernismo.

O então presidente e vereadores da Câmara da Figueira da Foz fizeram diligências para que todo esse acervo literário e artístico ficasse depositado no Museu Santos Rocha, na altura a cargo de Vítor Guerra. Consultados os advogados Manuel João da Palma Carlos e Luís Francisco Rebello, amigos de Natália e do marido Alfredo Machado, apenas terão sido entregues à Figueira da Foz livros e opúsculos relacionados com a cidade e o seu concelho. Um tema ainda a investigar. António Valdemar – Portugal in “Blog de São João del-Rei”

António Valdemar - Jornalista e investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-Academia Brasileira de Letras-cadeira nº 3.




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