Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 3 de setembro de 2023

São Tomé e Príncipe - Crónica de uma Comunidade errante!

Baixou o pano sobre a última Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP, que, em São Tomé, serviu de mote para a passagem da presidência da organização, de Angola para São Tomé e Príncipe.

Tudo aparentemente normal, quiçá, como expectante. Porém, considerando os fenómenos antecedentes à referida reunião, não é demais questionar a verdadeira importância (se é que há alguma) da CPLP para as aspirações dos comuns cidadãos dos países que compõem a Comunidade. Quiseram as regras da rotatividade que a última Conferência de Chefes de Estado e de Governo ocorresse em São Tomé, capital da República de São Tomé e Príncipe.

A Conferência foi preparada num clima de indisfarçável desalento decorrente do trágico incidente do dia 25 de Novembro de 2022, que custou a vida de cidadãos civis, barbaramente espancados e mortos por militares, militares estes que foram protegidos a todo o custo pelo Governo local e a seguir promovidos para funções de relevo superior (nas palavras de Domingos Simões Pereira, Presidente da Assembleia Nacional Popular da Guiné Bissau, não é novidade para ninguém que esse incidente causou desconforto a todos – eu diria que não é mero desconforto).

Nas vésperas da Conferência o Ministro dos Negócios Estrangeiros santomense foi obrigado a demitir-se do cargo, por ter sido inconveniente nas declarações a propósito do esforço (ou falta dele) de alguns Estados da CPLP na promoção do português na Guiné Equatorial (olvidou o Ministro que quem vive de mãos estendidas está diminuído na sua dignidade e no direito de, livremente, verbalizar o que pensa. Custou-lhe o cargo).

Ainda mais próximo da data da reunião dos Chefes de Estado e de Governo, o executivo local, através do altar do “venerando” conselho de ministros, decidiu ordenar, pelo período de 15 dias, a proibição de quaisquer manifestações com carácter reivindicativo ou protestatório (o Presidente da República local prontamente apareceu a chancelar esta pérola do executivo, quiçá temendo raspanete semelhante a que, diz-se a boca pequena, levou, quando publicamente afirmou que não participara da cerimónia de entronização do Rei Carlos III porque o país não havia recebido qualquer convite, sugerindo, assim, que a presença do seu Primeiro Ministro naquela cerimónia só podia justificar-se numa categoria de “pato”).

Este o quadro reinante no país que acolheu a Cimeira da CPLP, de cara “lavada” (diz-se, com dinheiro de Angola!). Ora, dizem os Estatutos da CPLP que, entre outros princípios, a Comunidade rege-se pelo princípio do Primado da Paz, da Democracia, do Estado de Direito, dos Direitos Humanos e da Justiça Social (al. e) do n.º 1 do art. 5.º).

Deixo para os especialistas (que hoje são aos montes) a dissertação sobre se o quadro atrás destacado está no alinhamento com, pelo menos, esse princípio dos Estatutos da CPLP. O que acho que qualquer normal cidadão da Comunidade esperava era alguma manifestação, ainda que abstrata, em relação à situação reinante no país anfitrião. Dito de outra forma, face à ostensiva violação do elementar direito à manifestação (fora de um cenário de estado de sítio), do direito à vida (execuções perpetradas por militares das Foras Armadas), do direito a um processo justo, etc., não seria de esperar que a Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP transmitisse algum sinal que acalentasse os anseios que tantos santomenses, e não só (veja-se os pronunciamentos da Dra. Ana Gomes, Portugal, e Dr. Domingos Simões Pereira, Guiné Bissau, apenas para citar alguns) têm vindo a suscitar?

A questão mais preocupante é a de saber quem, com responsabilidades na CPLP, poderia liderar uma tal manifestação em relação àquilo que se passa em São Tomé e Príncipe, e que não se pode tomar por perfeitamente normal. Dos países, declaradamente mais influentes (nestas coisas o dinheiro conta primeiro), Angola e Moçambique, certamente por razões internas (só pode exigir aos outros quem é inquestionável nos exemplos), não assumiriam tal desiderato. A Guiné Equatorial, apesar do petróleo, em relação à CPLP continua a ser um mero pendulo à busca do melhor lugar para se agarrar (realce-se a ovação da Conferência por, finalmente, aquele país abolir a pena de morte!).

O Brasil, apesar do esforço do Presidente Lula da Silva (que vai enviando farpas por onde passa – não se pode esquecer o seu posicionamento em relação ao conflito Rússia-Ucrânia, ou do episódio em que, em Luanda, sugeriu que os jornalistas angolanos são domesticados pelo “chefe”!), não parece estar, por ora, tão por dentro dos assuntos domésticos santomenses como os outros Estados-membros.

Restaria Portugal, no seu papel paternal (que vai usando com mais ou menos acutilância em razão do que realmente interessa em cada momento). Porém, em relação ao primeiro-ministro português, António Costa tem assuntos internos mais sérios, pelo que não arriscaria mais uma exposição. No que se refere ao Presidente Marcelo, de um político de enorme empatia, transformou-se num fofinho, essencialmente neste seu último mandato, pelo que já muito pouca gente o leva a sério (perguntem a António Costa).

De forma que as questões antecedentes à Cimeira, relacionadas com o país anfitrião, passaram completamente ao lado de tudo e de todos. Dos 64 pontos da Declaração de São Tomé – 14.ª Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP (novas e meras declarações de intenção), não há uma só que, ainda que de forma tímida, sugira que algo de anormal se passa naquelas Ilhas do Equador.

Neste particular a Conferência serviu também, quiçá, para branquear a situação, dando ao executivo local maior margem para cometer ou negligenciar o cometimento de atrocidades contra aqueles que se manifestem (por qualquer forma) contra os actos governativos. Dir-me-ão: em encontros bilaterais foram abordados outros temas, e, quiçá, a situação das Ilhas.

Mas, convenhamos, isto, ainda que tenha acontecido, é muito poucochinho, pois as pessoas da Comunidade têm o direito de saber o que pensam os Chefes de Estado e de Governo da CPLP sobre as questões concretas dos países membros, como são as acima enunciadas.

A Conferência, envolta nesta aparente normalidade, transformou-se numa simples feira das vaidades, sem qualquer resultado palpável, pelo menos para os cidadãos, alegados destinatários da Comunidade. Terminou como começou, com declarações inócuas, por desprovidas de significado prático, beijinhos e abraços, até à feira seguinte. Mais uma demonstração de que a CPLP continua no seu caminho errático, sendo uma simples organização internacional, de políticos para políticos, com escassa ou nenhuma real preocupação com as pessoas (de carne e osso) que compõem a referida Comunidade.

É exactamente por isso que os cidadãos continuam a não se reverem na CPLP, tendo cada vez menos razão para nela se reverem. A qualquer cidadão é legítimo questionar: para que serve a CPLP?  Victor Ceita – São Tomé e Príncipe in “Téla Nón”

Observação: qualquer verdade que possa emergir desta crónica é “mera” e “pura” coincidência.

 

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