Elísio Miambo oferece-nos “Brumas Desfeitas, Clausuras Desnudadas” em poesia, pela Editorial Fundza, um livro que divide-se em três partes: primeiro acto designado catarse, o segundo acto desigado kiini e por fim, epístolas. O poeta apresenta este drama poético que purifica-nos a cada cena que o autor representa a cada um de nós nesta poesia.
Na
escrita de Elísio Miambo, vê-se o escritor e o movimento dos objectos por via
do uso das imagens que movem os sentimentos e os objectos. Vide o excerto da
página 16, “sento-me rente à escrivaninha”. Assim começa o movimento do poeta
diante do objecto que se move por via das palavras, move o escritor e o que lê.
O
poeta fala a língua da fé, cita Saramago para iluminar as palavras de largos
horizontes neste engenho que é a arte de escrever em que o autor é resiliente
no ofício que outros desfloram. O Poeta começa o seu exercício de escrita
cantando e dedicando aos seus irmãos de Xitende, vê-se a prior pela dedicatória
feita: “aos meus, do Xitende”; pela menção feita ao belíssimo poema de Andes
Chivangue “Alma Trancada Entre os Dentes”, pelo romance sagaz de Dom Midó das
Dores “A Biblia dos pretos”, pela “Equidade no Reino Celestial” de Deusa
d’Africa, pelas “ilusões” (romance intitulado Ilusão à Primeira Vista) de Almeida
Cumbane e pela “A ilha dos mulatos” de Sérgio Raimundo. Faz alusão ao escritor
Milan Kundera “a insustentável leveza do ser”, cujas técnicas se reverberam em
múltiplos sentimentos adiante apresentados. Cita o Fernando Pessoa no seu poema
“Fingidor”, autor considerado como uma tradição que se segue na Xitende e as
dúbias de Antero de Quental. Nota-se neste primeiro poema um panegírico em que
são cantados os seus irmãos e mestres. Ele mostra que não é só, na solidão da
sua alma que devaneia em noites na escrivaninha, o poeta é um conjunto de seus.
Vide o excerto da pág 17, “ler é deitar-se de costas numa caixa de
espelhos..(…)…Ressonância de expurgação de brumas e escancaro clausuras”.
Com
esta poesia o autor nos empresta as chaves para escancarar as clausuras e
expurgar as brumas, afinal, que se desfaçam todas as brumas tecidas para que a
paz floresça nas famílias de todas as nações. Revisto-me de curandeira que lê a
sorte lançada pelo poeta, nesta escrita onde um sonho revestido de metáforas e
metalinguagens se oculta, mas porque ninguém se oculta dos ósculos e de sua
crença revelo: o poeta sonha com a paz para todos, Homens mais humanos e um
mundo aberto para todos.
No
poema vácuos da página 19, o autor descreve uma rua migrante que tem por
dentro, leva-nos às memórias de Noémia de Sousa, a força de sua escrita que
fê-la exilar-se em Paris por opor-se ao sistema político que vigorava. Vide o
excerto “Fizera Vera Micaia travestir o poema….(…)… o poema traveste o poeta em
mim”. Vemos o poeta travestido em vários outros seres e com vários rostos e
géneros, o que faz-nos compreender o poder conferido pela poesia ao qual o
poeta não se faz de rogado e governa o seu território com afoiteza.
Elisio
Miambo, traz-nos o atleta queniano Abel Mutai, que se equivocara confundido a
linha de chegada com alguns sinais próximos e que fora salvo pela bondade do
espanhol que gritou e levou o Mutai à vitória nos jogos olimpicos de Londres em
2012. A medida que a poesia aqui se tece, o título do livro, ganha mais
significação de ser, vide o excerto “nesses rifles por desarmar” ou mesmo
brumas por desfazer’’.
No
poema “Tratado” da página 20, denota-se como um mero plano pode conduzir uma
sociedade ao cume de inverdades na sublimação de um criador sem criatura
alguma. Vide, “neste tempo em que a memória infinda a coincidência. Propõe a
referência. Ou o intertexto.”
O
poeta faz alusão ao marxismo no poema “revelação” da página 21, onde descreve o
povo que se reveste nele próprio, colocado sempre em posição dominada diante de
um omnipotente que representa o dominador.
De
acordo com Paz (2009), o poeta é linguagem em tensão, denota-se este conceito
nas imagens deste texto da página 21, “Com Cachimbo em chamas. Um olhar
taciturno. Calções de Ganga. Rotos. E uma túnica castanha. De linho. Cobrindo o
tronco nu. As sandálias com três tiras de couro preto. A barba desfeita e
grisalha. Como o pouco cabelo que lhe sobra. Um aroma de incenso à mistura…”
O
poema “muedas” da página 22, é um grito de socorro em que o poeta que se vê
massacrado na manifestação contra a dominação colonial desta pátria ocorrida em
1960, o massacre de Mueda, um ano que é também de África. Entrelaça a palavra
no solo de Mueda, berço da moçambicanidade e também palco actual de incessantes
massacres terroristas e não encontra as promessas feitas, o fruto do amor
plantado, nele vê-se uma alma rota de um homem que não mais encontra os
retalhos com que cobriu uma pátria. Enfurece-se e em prantos exorciza a terra
que quiçá o mundo por ela não se componha. Vide o excerto, “Goteja em mim,
quando eu, aos prantos, vou exorcismando o Mueda em que me deixaste. Como se de
outros Muedas o mundo não se compusesse.”
Critica
as vozes que sopram como os ventos de Agosto em campanhas eleitorais em que se
anunciam os planos quinquenais como um tiro dado no escuro mesmo na incerteza.
Aqui o poeta revestido de cidadão apela a uma política racional e em
conformidade com as necessidades da colectividade que acima de tudo que seja
exequível para que esses ventos de Agosto tenham no seu resquício alguns frutos
comestíveis. Vejamos na página 23, “como poeira de Agosto. Revigoram-se as
vozes (distintas no timbre e siameses na ausência de escala) no íntimo das
gotículas da saliva. …votem, votem, votem…dizem. Porque mesmo no escuro. É
preciso dar um tiro certeiro….”
O
poeta é comprometido com o seu povo, os clichés ofertados em discursatas que
não enchem a barriga do povo, desassossegam o autor, que em seu vaticínio
anuncia um futuro em que o povo tenha água e luz, para viver condignamente.
Neste texto reencontro-me com Oates (2008), que diz que a escrita é a tentativa
de captar a voz humana e o poeta Elísio diz que sonhar é voar, encontramos
aqui, uma imagem de captura da voz com todos os incensos que perfumam o hálito
humano: se grotesco ou nauseabundo como a fome ou mesmo adorável como os
manjares da música jazz que enleva a alma, vide a página 25, o poema “pouso”
que diz: “como se sonhar não fosse a experiência do voo. Para quem não tem
asas. Fiz, pela janela, preces de água, pão e luz. Ao raio de uma estrela
cadente…. É preciso ser muito poeta para vaticinar (ao povo) o que não cabe na
bolsa de valores”
No
poema Sillicon Valley da página 28, abalroamo-nos com uma sociedade feita por
oligarquias em que enquanto uns sonham, outros abrem a porta dos sonhos, entram
e neles moram, um ready made em que a miséria é uma obra de arte seja em
estado de sítio ou lockdown. Vide o excerto, ‘‘edificava-se plurais. Com
o ranger de uma porta. Que se abria para o horizonte…”
O
poeta, mostra-se preocupado pelo facto de abandonarmos ritmos tradicionais como
o “pandza” que alegra e contangia para aceitarmos de tudo e sobretudo aquilo
que não é nosso. Homenageia Jimy Dludlu e Elsa Mangue como músicos conducentes
à tradição cultural, porque ’’o regresso às raízes se faz peremptório. Sempre
que a leveza consciente da maturidade, pesa mais que o peso inconsciente da
infância’’ página 31.
No
poema das páginas 42-43, “além da carne” descreve o que à outrora fora belo
como um pensamento-imagem vácuo, sem adornos e questiona a justiça feita diante
das desigualdades sociais, questiona a força com que à outrora se fez a busca
da liberdade, a mesma força que hoje sucumbe no soalho, porque somos todos
mortais, ele cita a sapiência como além do tempo e da carne, mesmo que seja
para ser aplicada num ambiente em que o poder oprime ao conhecimento e aplaude
a quem se prostra e mendiga a quem expulsa de seu reino ou território. Vide o
excerto “resguardo-me neste pensamento-imagem de ti: sem peito, sem quadril,
sem bunda….com os teus prantos mortos…libertadora e caçadora de equidades.
Arrasas-te ante o brio da carne. Que agora se deita no soalho. Sobrando-te só o
intelecto que soçobra sem boia que lhe sustente. Ei-la, portanto, a bruma que
te enclausura no pranto das equidades… com que tecidos se tece o baile da
equidade, que vive na pedincha por aplausos do opressor”.
Neste
poema encontramos nesta poesia que a auto-intitula em fala híbrida ou
prosódico, este jogo estético de ser um e tanto outros sem se importar com a
forma. Encontramos comumente o povo, numa intensa busca pela equidade nas lutas
travadas. Pode se notar que esta poesia é o arquétipo de uma arte interventora,
em que o uso da língua e da metalíngua para a definição dos objectos, o gosto
pela música jazz ou blues, pandza ou marrabenta e a força da escrita, faz com
que tudo viva para além da matéria que sobrevive para além do tempo quando a
força de querer transpõe as barreiras do tempo.
Após
a sua estreia em “retroalimentações do ego” em 2020, Elísio Miambo, regressa
trazendo um abraço ou aperto de mão como acerto de contas, pois aquiesce-nos
pagar as dívidas ocultas desocultando-as ao expurgar as brumas e escancarar as
clausuras. Aqui desfazemos as brumas e enclausurarmo-nos desnudados de todo o
poder para que na terra onde encontramos o nosso umbigo, a nossa mãe, vivamos
sem nos preocuparmos em lutar pelas facilidades que nos abrem as portas de
outros horizontes, apenas sejamos nós mesmos, mais humanos, mais independentes
e vivamos a nossa solicitude e uma paz duradoira. In “O País”
- Moçambique
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Referências
Bibliográficas:
OATES,
Joyce Carol. ‘‘A Fé de um Escritor: Vida, Técnica, Arte’’. Lisboa: Casa das
Letras, 2008.
PAZ,
Octavio. “Signos em Rotação”. São Paulo: Perspectiva, 2009.
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