Não devo estar enganado, ouvir uma ministra da Educação dizer "não se quer incitar os jovens à pornografia, nem ensinar a se masturbar e nem se incitar a mudar de gênero" é algo inédito. E isso não num lugarejo brasileiro dominado pelos evangélicos, mas na capital belga, Bruxelas, numa entrevista coletiva para a imprensa é quase inacreditável.
Porém,
era necessária essa clareza diante da onda de desinformação e complotismo
desfechada por católicos fundamentalistas e islamitas diante da decisão do
governo de destinar duas horas anuais nas escolas, nas classes de adolescentes,
para palestras de professores baseadas na Iniciativa Evras, Educação para a
Vida Relacional, Afetiva e Sexual.
Em
palavras mais objetivas, a iniciativa Evras, que já existia de maneira opcional
desde 2012, foi oficializada nas escolas públicas e privadas, cujas aulas já
começaram, num total de duas horas anuais, reservando-se a parte destinada à
orientação sexual aos alunos de 12 a 16 anos. Essa decisão, chamada
impropriamente de curso sexual, já provocou incêndios em oito escolas, atacadas
durante a noite por grupos de religiosos.
De
acordo com os jornais belgas que entrevistaram professores e orientadores
sociais, os pais de crianças em idade escolar vivem um clima de complotismo
criado pelas redes sociais, semelhante ao destinado nos EUA e Brasil a fins
políticos, com a proliferação de fake news. Uma delas distorce
informações da OMS, Organização Mundial da Saúde, para assimilar a Iniciativa
Evras como incitação à pedofilia. Como ocorria no Brasil, circulam temas
negacionistas e complotistas ligados à crise do Covid, guerra na Ucrânia,
manipulação da mídia, mudança climática e o wokismo (um neologismo francês
derivado do inglês woke, acordado e desperto, apropriado pela
extrema-direita).
A
novidade nessa crise é a participação da comunidade islâmica, cujo
conservadorismo vai além dos católicos integristas e tem dificuldade de se
integrar numa sociedade laica.
Na
França. existe mesmo uma certa resistência dos islamitas na integração de suas
filhas nas escolas públicas, onde ostentam sua diferença religiosa com as
outras alunas pelas roupas. Por isso, na atual volta às escolas, o Ministério
da Educação proibiu o uso da "abaya", uma espécie de mantô ou casaco
largo e amplo, usado sobre a roupa ou uniforme das alunas, cobrindo todo o
corpo até os pés.
A
associação Direito dos Muçulmanos entrou com um recurso contra a proibição da
"abaya" em nome do risco de discriminação e limitação dos direitos,
alegando também ser uma roupa tradicional. O Conselho de Estado francês
rejeitou o recurso, considerando que essa roupa era uma afirmação religiosa
dentro de escolas públicas, quando a lei laica proíbe sinais religiosos
manifestados de maneira ostensiva. E rejeitou a desculpa de ser traje
tradicional.
Na
Bélgica, o Conselho belga de coordenação das instituições islâmicas
manifestou-se contra a Iniciativa Evras "por intervir na liberdade
religiosa e no direito dos pais guiarem a educação de seus filhos conforme suas
crenças".
Por
coincidência, os mesmos jornais que publicavam as reações religiosas e
atentados e tentativas de atentados na Bélgica contra o ensino sexual nas
escolas, lembravam o assassinato, há um ano, pela polícia iraniana da jovem
Nahsa Amini.
A
jovem de 23 anos tinha sido presa por não portar corretamente nos cabelos o
chale ou véu (hijab) exigido pelos imãs islamitas iranianos.
Resumindo,
tanto a orientação sexual nas escolas belgas, como roupas religiosas como abaya
ou hijab proibidas nas escolas francesas mas obrigatórias no Irão e na maioria
das famílias islamitas, imitadas pelas pentecostalistas brasileiras de vestidos
longos e chales cobrindo os cabelos, mostram a dificuldade das religiões
aceitarem a mulher como ser humano livre igual ao homem. A crença da
superioridade masculina defendida pelas religiões ainda é forte na Europa,
reforçada pelas crenças vindas com a imigração de países onde a mulher continua
sendo considerada um ser inferior. Rui Martins – Suíça
___________________________
Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador
do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas,
que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos
emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da
corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto
Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do
Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de
Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de
Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso
de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
Sem comentários:
Enviar um comentário