Conviveu com os grandes cientistas da sua época e com intelectuais e políticos proeminentes das principais capitais da Europa e dos Estados Unidos. As comemorações do segundo centenário da morte desta personalidade do maior protagonismo permitem evocar a relação com açoreanos de prestígio local e outros de projeção nacional e internacional. (Texto originalmente publicado no Diário dos Açores, edição de 24 de Setembro de 2023, p. 6 da coluna Opinião)
Um
novo ciclo se iniciou em Portugal com a Revolução de 1820. Refletiu a
corajosa determinação de substituir as conceções absolutistas, por
estruturas políticas, sociais e culturais que fundamentaram um novo regime em
que todos podem ouvir a sua voz, desde que se possam concretizar as liberdades,
direitos e garantias constitucionais. Houve o contributo decisivo dos que
permaneciam no exílio, submetidos às contingências do ostracismo e da
solidão; e de outros, dentro de Portugal, que se empenharam na mesma luta, mas
agindo com a reserva e a discrição impostas pelo sigilo.
José
Francisco Correia da Serra, cujo segundo centenário da morte agora se
completou, tem, finalmente, comemorações nacionais em torno da sua vida
agitada e da sua obra exemplar. Nasceu em Serpa, a 5 de junho de 1751 e faleceu
nas Caldas da Rainha, a 11 de setembro de 1823, quando ali se recorria ao
tratamento termal. Ali ficou sepultado, sem que lhe prestassem as devidas
homenagens.
Um dos seus biógrafos, Augusto da Silva
Carvalho (1861-1957), catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa,
reconstituiu o percurso de Correia da Serra, nas Memórias da Academia das
Ciências (1948), divulgando fatos e documentos que permitiram ampliar as
investigações. É o caso de Michael Teague, em 1997, no texto de
apresentação do catálogo dos manuscritos arquivados na Torre do Tombo,
e que possibilitaram a retificação e o acréscimo de questões primordiais. O
Prof Dr. José Luís Cardoso, presidente da Academia das Ciências. – que me
alertou para esta circunstância – proferiu, no dia 15 de Setembro, no salão
nobre da Academia das Ciências, uma comunicação sobre As origens do programa
científico de Correia da Serra. Trata-se de mais um contributo fundamental de
José Luís Cardoso que já se ocupara do livro do Richard Beale Davis que
revelou a correspondência com Jefferson e outros protagonistas da vida
americana. Este livro, com uma introdução de José Luís Cardoso, foi
traduzido com o patrocínio da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento
(FLAD) e editado, em 2013, pela Imprensa de Ciências Sociais.
A obra Cidadão do mundo: uma biografia
científica do Abade Serra (Porto Editora, 2006) escrita por Ana Simões,
Maria Paula Diogo e Ana Carneiro abriu novas perspectivas de conhecimento e de
análise crítica. Na reabertura do ano académico de 2023/2024, Maria Paula
Diogo dissertou, na Academia das Ciências acerca da História, Botânica e
Geologia na obra do Abade Correia da Serra. Recapitulou alguns aspetos já
destacados numa obra que revisitou, exaustivamente: os biógrafos e biografias
de Correia da Serra; a juventude em Itália; o regresso às origens; o refúgio
em Londres; os amores em Paris; o período americano; e, por último, o
reencontro com Portugal.
É
de mencionar Ilídio do Amaral, autor de Estudos preliminares de inéditos
juvenis de José Correia da Serra. A propósito do Catalogue raisonné
des voyageurs de ma bibliothèque (1769) (Edição Colibri, 2012),
coloca-nos perante a evolução de um cientista internacional, como o atestam
os depoimentos de vários sábios seus contemporâneos e as numerosas
instituições científicas que o acolheram. Todavia, Ilídio do Amaral não
deixou de lembrar que, “após o triunfo da revolução liberal, retomou o
lugar de Secretário da Academia, foi deputado às Cortes (1822-1823) e
desempenhou altos cargos, na Maçonaria, no Grande Oriente Lusitano”.
Numa
retrospectiva sumária podemos aludir que José Francisco Correia da Serra era
filho de Luís Dias Correia, médico formado na Universidade de Coimbra,
que se radicou em Itália, a fim de escapar às garras da Inquisição. José
Francisco Correia da Serra tinha apenas 6 anos. Em Roma licenciou-se em direito
canónico e optou pela vida religiosa. Ficou a ser amigo de D. João Carlos de
Bragança, Duque de Lafões, que conhecera o pai, na altura em que ambos
frequentaram a Universidade de Coimbra.
Já
com o título abade Correia da Serra, regressou a Portugal. Possuía o total
apoio do Duque de Lafões. Um ano depois, juntamente com D. João Carlos de
Bragança fundaram a Real Academia das Ciências de Lisboa. Sucederam-se
as perseguições movidas pelo Intendente Pina Manique. Abandonou o país para
se fixar, alguns anos depois de exercer o cargo de secretário geral da
Academia das Ciências. Esteve ao corrente da concessão de bolsas de estudos
na Europa para jovens membros da Academia, tais como os brasileiros Manuel
Ferreira da Câmara e José Bonifácio de Andrada e Silva, que impulsionaram a
independência do Brasil.
Envolvido
em novos problemas políticos, decidiu instalar-se no Reino Unido. Pelos seus
altos méritos ingressou na Royal Society e na Sociedade Lineana de Londres.
Operou-se, em 1801, uma mudança inesperada na política portuguesa: Rodrigo de
Sousa Coutinho foi designado Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros.
Correia da Serra passou a ser secretário da representação diplomática
portuguesa em Londres. Enquanto esteve em Paris, colaborou com os enciclopedistas,
nomeadamente, com Antoine Laurent de Jussieu, Alexander Von Humboldt e Georges
Cuvier.
Mas,
por ocasião da terceira invasão francesa em Portugal, terá sido instigado a
subscrever um documento para justificar a política napoleónica. Ao recusar,
terminantemente, Correia da Serra, mais uma vez, viu-se obrigado a procurar o
exílio político, no estado americano da Virgínia. Chegou, em 1812, a
Washington, com cartas de recomendação, de individualidades francesas, com
influência na política americana. Uma delas o Marquês de Lafayette.
Filadélfia constituiu, porém, o seu espaço privilegiado. Foi logo admitido
na American Philosophical Society. Verificou-se, de imediato, a amizade
recíproca e a admiração mútua entre Correia da Serra e Thomas Jefferson. Em
Monticello frequentou, com assiduidade, a residência palaciana da família
Jefferson.
Voltou
a Portugal em 1820. Estava implantada a revolução liberal. Eleito deputado
às Cortes participou na construção de um Portugal que apostava nos
imperativos do presente e do futuro. Uma eleição que integrou açoreanos de
várias ilhas: André da Ponte Quental, João Bento de Medeiros Mântua, Miguel
João Borges de Medeiros Amorim e Manuel José de Arriaga Brun da Silveira,
Manuel Inácio Martins Pamplona e Roberto de Mesquita Pimentel. Os
historiadores Ernesto do Canto (1831-1900), Eugenio do Canto (1836-1915) e
Teofilo Braga (1843-1924) não ignoram a dimensão do percurso de Correia da
Serra. Nem os botânicos de expressão regional como Carlos Machado (1828-1901)
e Bruno Tavares Carreiro (1857-1911). Nem muito menos botânicos célebres, nascidos
nos Açores, como Rui Teles Palhinha (1871-1957), Matilde Bensaude (1890-1969)
e Aurelio Quintanilha (1892-1987), qualquer deles com obra científica de
projeção nacional e internacional.
Na
sessão efetuada na Academia das Ciências, além das intervenções que
anotamos, José Alberto Silva e Fernando Figueiredo, apresentaram a
comunicação a propósito dos Ensaios para a História da Academia das
Ciências. As finalidades estatutárias definidas por Correia da Serra
ficaram, logo no princípio, sintetizadas na legenda: Nisi utile est quod
facimus, stulta est gloria. Ou seja, na tradução portuguesa: Se não for
útil o que fazemos, a glória é vã. Decorridos mais de dois séculos
perdura o objetivo de Correia da Serra de unir o que está disperso, ao
circunscrever a ciência e, de um modo geral, a cultura, ao serviço integral
do aperfeiçoamento humano. António Valdemar – Portugal in “Blog de
São João del-Rei”
António Valdemar - Jornalista, carteira profissional numero UM; sócio
efetivo da Academia das Ciências.
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