“Pelos campos há fome/Em grandes plantações”.
(Pra Não Dizer
Que Não Falei Das Flores — Geraldo Vandré)
I
É
com o país ultrapassando os 140 mil mortes vítimas do descaso e descontrole de
uma pandemia irresponsavelmente tratada como “gripezinha”; Amazônia, Pantanal e
grande parte do Cerrado das regiões Norte e Centro Oeste ardendo em chamas, com
o sacrifício de centenas de espécie da fauna e da flora brasileiras, muitas em
franca extinção — é ao meio desse quadro dantesco que o presidente Jair
Bolsonaro sobe ao Plenário da ONU para a abertura da 74ª Sessão da Assembleia
Geral.
E
o que diz o presidente diante de todo esse descalabro: corre atrás do prejuízo, faz o “mea culpa”,
pede desculpa ao planeta e apresenta urgentes e imprescindíveis medidas para
tentar resolver o problema? Não. Profere
um discurso anacrônico, dirigido apenas ao seu público interno, onde,
levianamente, joga a culpa nas próprias ONG defensoras do meio ambiente, nos
caboclos que vivem da agricultura de subsistência à beira das matas, e nas
populações indígenas, que, na verdade, a cada dia mais desassistidas, são as
maiores vítimas.
E
continua, na sua escalada de afrontas e autoritarismo a condenar a tudo e a
todos pelos maus resultados do conjunto da obra. São empecilhos a oposição, a
imprensa, a Justiça, os governadores, enfim, todos aqueles que pregam o
isolamento, causando o desemprego e a consequente queda da economia, como se
mesmo antes da pandemia o desemprego já não estivesse em franca expansão e a
economia em queda, com o PIB acusado a marca recorde de 1,1%.
II
Ignora
a enorme fuga de capital constatada nos últimos meses e projeta fantasiosos
possíveis novos acordos comerciais, quando é vastamente sabido que, pelo
incentivo à pratica criminosa de madeireiros, garimpeiros, grileiro e alguns
fazendeiros inescrupulosos do agronegócio, contando com a cumplicidade do
governo, reduzindo verbas e dificultando a ação dos órgãos fiscalizadores, o
capital internacional, como as aves do pantanal, assustado bate asas do nosso
território.
E,
como uma tábua de salvação, parece jogar todas as suas fichas em um único dado:
o agronegócio. “O homem do campo trabalhou como nunca, produziu como sempre,
alimentou para mais de 1 bilhão de pessoas. (....) Garantimos a segurança alimentar a um sexto
da população mundial. (....) O brasil desponta como o maior produtor mundial de
alimentos.” Mas esquece que o Brasil
consome 20% do total de agrotóxicos comercializados no planeta, que aqui, sem
obedecer às restrições internacionais, são despejados sobre as lavouras,
comprometendo a água e o ar. Como
furtou-se também às denúncias de “trabalho análogo e escravidão no campo”, a
pipocarem na mídia.
III
Ufanismos
à parte, é necessário corrigir que não somos o primeiro, mas o 3º produtor
mundial de alimentos: EUA e China estão à nossa frente. Mas, convenhamos, é um
número excepcional, e que tem impulsionado enormemente nossas exportações,
alcançando 60% da balança comercial. O que é bom, mas não é tudo. Com a cota do
dólar em alta, no afã de exportar, o mercado interno vem dando sinais de
desabastecimento, refletindo com alta do arroz, carne e outros gêneros
alimentícios, e a inflação — sempre à espreita — volta a mostrar a cara. Ainda
timidamente, é verdade, mas já preocupando.
Segundo
o último censo agropecuário do IBGE, 70% dos alimentos consumidos pelos
brasileiros vêm da agricultura familiar (em primeiro plano focada na própria
subsistência), e não do agronegócio, como muitos pensam e alardeiam. E essa agricultura de pequeno porte — em
média um hectare por família— foi bastante incentivada em governos anteriores,
com a criação do PAA – Programa de Aquisição de Alimentos, que comprava quase
todo o excedente da safra, para, dentre outros benefícios, fomentar a merenda
escolar. Aliás, foi no auge desse Programa (2014) que o Brasil oficialmente
saiu do Mapa da Fome delineado pelas Nações Unidas, conquista celebrada não
apenas por brasileiros, mas em todo o mundo.
Ultimamente,
o financiamento governamental, que chegara a atingir 1 bilhão, se viu reduzido
para 294 milhões; o que, naturalmente, reduziu o abastecimento interno e,
consequentemente, aumentou o número de brasileiros em carência alimentar.
Resultado: mais de 10 milhões vivem hoje em situação de “insegurança alimentar
grave”, segundo classificação do IBGE. E, ironicamente, essa fome é maior
justamente no campo: 23,3% da população urbana contra 40% da população rural.
No
seu discurso incendiário (e aqui cabem os dois sentidos), o presidente, que
tanto orgulho demonstra do agronegócio (como se fosse produto exclusivo do seu
governo e não também dos anteriores), sequer menciona a dura e desigual labuta
dos pequenos agricultores, como se isso fosse questão de somenos.
Ao
meio a essa barafunda, a pergunta que não quer calar é: Por que o país, que se
ufana de alimentar sozinho “um sexto da população mundial” convive
pacificamente em seu seio com mais de 10 milhões de famintos?
Nesses
tempos de intolerância e autoritarismo, em que o populismo transforma pacatos
cidadãos em cegos, manietados e aguerridos Zumbis (ou melhor, em robôs) é
oportuno invocar Hans Fallada, em seu romance sobre a resistência alemã, onde
ele conclui que os discursos do nazismo não passavam de peças destinadas apenas
a “jogar areia nos olhos” dos fanáticos que defendiam um líder empenhado em
minar as instituições democráticas do país.
Não estamos vivendo situação análoga? Fica a pergunta. Wil Prado - Brasil
Wil Prado é
funcionário público aposentado e autor do romance “Sob as Sombras da Agonia”,
Chiado Editora e “Um Vulto Dentro da Noite”, E-book, Amazon.
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