I
O
poeta, ensaísta, crítico e tradutor Claudio Willer
(1940), reconhecidamente o mais importante estudioso brasileiro da literatura
beat e um dos mais finos representantes da atual geração de poetas, lançou em
2019 Dias Ácidos, Noites Lisérgicas (São Paulo, Editora Córrego),
coletânea de crônicas, mas o que traz este articulista até aqui é o seu livro Os
Rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico (Porto Alegre, Editora
L&PM, 2014), uma história imperdível e definidora do que foi a
contracultura no século XX. E que é de uma profundidade que nem mesmo os
críticos e ensaístas americanos alcançaram, embora não tenham sido poucos os
daquele país que examinaram a religiosidade e misticismo no âmbito da geração
beat.
Escrita em português apurado
e em estilo leve, de quem dedicou toda a vida a atividades culturais e chegou a
pós-doutor já com os cabelos encanecidos, esta obra não só conta a história de
cada um dos principais representantes daquele movimento como mergulha nas
experiências artísticas de seus personagens para desvendar as influências que
marcaram esse movimento que se iniciou a partir de 1943/1944.
Detém-se, porém,
especialmente sobre a obra de Jack Kerouac (1922-1969), escritor de ascendência
franco-canadense, autor de On the Road (1957), obra considerada a bíblia
do movimento hippie, sem deixar de focalizar suas afinidades e
relações com outros expoentes do movimento, como William Burroughs (1914-1997),
Allen Ginsberg (1926-1997), Gregory Corso (1930-2001), Michael McClure
(1932-2020), Diana Di Prima (1934), Gary Snyder (1930) e Lawrence Ferlinghetti
(1919).
Definida a filosofia da geração como
produto de um anarquismo místico, Willer procura recuperar a história de Jack
Kerouac, que seria o porta-voz daquele movimento, “um rebelde que nunca pactuou
com a exploração e a injustiça”, além de ter sempre abominado todo tipo de
elite e autoridade. Mas adverte que a
cosmovisão tradicionalista de Kerouac se traduz em reverência diante dos
vagabundos errantes, e de índios, negros e integrantes de culturas arcaicas,
como os esquimós, aos quais visitou na Groenlândia em sua primeira viagem de
navio.
Segundo Willer, qualquer um desses
marginais com relação à civilização ocidental equivalia, para Kerouac, aos
felás ou fellaheen do alemão Oswald Spengler (1880-1936), mas com uma
exceção: a visão que este filósofo tinha das culturas arcaicas seria elitista,
pois dotada de um profundo desprezo pelas “massas”, enquanto a do escritor
americano reverenciava a plebe, ou seja, aqueles que pertencem à base da
pirâmide social.
Firmado
em extensa base teórica, Willer, familiarizado com a geração beat há décadas,
pôde dedicar-se a estudar a obra de Jack Kerouac, que ocupa a maior parte deste
ensaio. Tanto que, na bibliografia, constam 25 livros de Kerouac publicados em
inglês ou em português, além de uma entrevista dada para a Paris Review
nº 41, em 1968, que está na Internet. Ao mesmo tempo, o ensaísta analisa a pluralidade
religiosa, política e literária que uniu os autores ligados ao movimento,
observando que, pela primeira vez, aquela rebelião artística não teria sido
comandada por burgueses dissidentes ou aristocratas excêntricos, mas por
proletários e lumpens, ou seja, mendigos, marginais, subempregados,
artistas boêmios e outros representantes do estrato inferior da sociedade.
II
Como mostra Willer, embora não possa ser
considerado um movimento religioso, a geração beat foi influenciada pelo
budismo, hinduísmo, taoísmo e outras correntes, pois fundamentada em poetas que
se relacionaram com tradições místicas, esotéricas e ocultistas, em especial o
inglês William Blake (1757-1827), o francês Arthur Rimbaud (1854-1891) e o irlandês William Butler Yeats
(1865-1939). Outra influência veio do anarquismo como contraponto aos dois
blocos que sustentavam a Guerra Fria (1947-1991), o monoteísmo institucional e
o materialismo ortodoxo, ou seja, o capitalismo representado pelos Estados
Unidos e o comunismo pela União Soviética.
Esse anarquismo, porém, pouco tinha a
ver com aquele que teve forte influência na Espanha, até a chegada do general
Francisco Franco (1892-1975) ao poder em 1936, e que propunha uma sociedade de
liberdades individuais, sem autoridade ou poder estatal, baseada na ajuda mútua
e voluntária. Para Willer, o anarquismo beat seria uma terceira via, “aquela da
religião pessoal, do sincretismo, pluralismo e heterodoxia; da liberdade,
inclusive no modo de relacionar-se com a esfera transcendental ou com camadas
mais profundas do próprio ser”.
Como lembra o autor em nota
introdutória, este denso ensaio foi preparado durante seu pós-doutoramento em
Letras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFLCH) da Universidade de
São Paulo (USP), sobre o tema “Religiões estranhas, misticismo e poesia”,
concluído em 2011. Em 2008, já havia obtido o título de doutor em
Letras na mesma instituição, na área de Estudos Comparados de Literaturas
de Língua Portuguesa, com a tese "Um Obscuro Encanto: Gnose, Gnosticismo e a
Poesia Moderna", publicada pelas Editora Civilização Brasileira em
2010. Aproveitando sua passagem pela USP, como professor convidado, deu curso
de pós-graduação sobre surrealismo e outro de extensão cultural sobre a geração
beat.
III
.
Nascido
em São Paulo, Claudio Willer é graduado em Ciências Sociais e Políticas pela
Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1963, e em Psicologia
pela Universidade de São Paulo (USP), em 1966. Entre os seus livros estão também
Geração Beat (Porto Alegre, L&PM, 2009), Estranhas experiências:
poesia (São Paulo, Lamparina, 2004, Buenos Aires, Nulu Bonsai Editora,
2018, tradução de Thiago Souza Pimentel), Volta: narrativa (São Paulo, Iluminuras,
2004), A verdadeira história do século XX, poesia (Lisboa, Apenas
Livros, 2015, São Paulo, Córrego, 2016), Anotações para um apocalipse (São
Paulo, Massao Ono, 1964), Dias circulares (São Paulo, Massao Ono, 1976),
e Jardins da provocação (São Paulo, Massao Ono/Roswitha Kempg, 1981).
Publicou
ainda a coletânea Escritos de Antonin Artaud. Traduziu: Os cantos de
Maldoror, poesias e cartas, de Lautrémont (São Paulo, Iluminuras, 2008) e Uivo
e outros poemas, de Allen Ginsberg (L&PM, 2010). Teve publicados também
Poemas para ler em voz alta (Costa Rica, Andrómeda, 2007), tradução de
Eva Schnel, Manifestos, 1964-2010 (São Paulo, Azougue, 2013) e ensaios
na coletânea Surrealismo (São Paulo, Perspectiva, 2008).
Seus
trabalhos estão incluídos em antologias e coletâneas, no Brasil e em outros
países, que fazem parte de uma
bibliografia crítica formada por ensaios em revistas literárias, resenhas e
reportagens na imprensa. Está citado em obras de história da literatura
brasileira, como as de Afrânio Coutinho
(1911-2000), Alfredo Bosi (1936), Carlos Nejar (1939), José Paulo Paes
(1926-1998) e Luciana Stegagno Picchio (1920-2008). Ao lado
de Sergio Lima (1939) e Roberto Piva (1937-2010), foi um dos únicos poetas
brasileiros a receber menção do periódico francês La Bréche-Actión
Surrealisté, dirigido por André Breton (1896-1966), em fevereiro de 1965.
Ocupou
cargos públicos em administração cultural e presidiu por vários mandatos a União Brasileira de Escritores (UBE). Foi coordenador da Formação Cultural da Secretaria Municipal de
Cultura de São Paulo de 1993 a 2001. Coeditou, com Floriano Martins, a revista
eletrônica Agulha, de 1999 a 2009. Tem dado cursos e palestras e
coordena oficinas literárias em universidades, casas de cultura e outras
instituições. Mais informações podem ser obtidas em http://claudiowiller.wordpress.com/. Adelto
Gonçalves - Brasil
Rebeldes: Geração Beat e anarquismo místico, de Claudio Willer. Porto Alegre: L&PM Editores, 200 páginas, 2014. E-mail: vendas@lpm.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade
de são Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Nova Fronteira, 1999), Barcelona
Brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo (Imesp)/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (José Olympio
Editora, 1981; LetraSelvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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