I
A História do Brasil teria que ser contada por um coral de
historiadores, apoiados em narrativas de cronistas, aventureiros, viajantes
constrangidos ou deslumbrados. Uma inicial e lógica exploração feita a partir
da costa, seguida de penosas internações. Todas milagrosamente rápidas, tendo
em vista os recursos da época, pois falamos de um passado de meio milhar de
anos. Registros, documentos, cartas, mapas (de incrível rigor, em face dos
recursos da época), bem como a ansiosa busca de riquezas para uma Europa que
experimentara a incubação medieval e a explosão do Renascimento.
Não à toa, Espanha e Portugal, dois países debruçados sobre o mar,
como se espichando um pescoço geográfico para o Hemisfério Sul ali dominado
pelo Atlântico, lançaram-se à cata de riquezas. A terra lusitana, restrito
território, pobre de recursos naturais, mais do que todos, levou a conquista a
sério.
Nenhuma colonização é angelical. Antes é fria, cruel e espoliadora.
Assim, dizer que o Brasil teria se tornado um país melhor se ficasse com
espanhóis, com ingleses, franceses ou (que deslumbramento!) dourados
holandeses, nos parece uma conjectura ingênua. Historicamente (ou fatalmente)
ficamos com Portugal. E será sobre essa nação e seu povo – tão péssimo como os
mais péssimos, tão notável quanto os mais notáveis – que devemos falar.
II
Em O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de
São Paulo – 1788-1797 (São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo,
2019), Adelto Gonçalves concentra seu foco no momento histórico em que a nação
lusitana se assentava nos trópicos. O Brasil receberia navegadores com destinos
mais definidos. O Rio de Janeiro, embora acossado pelos franceses,
politicamente deixou a posição secundária, abrigando a sede do vice-reinado
antes assentada em Salvador. E faz parte desse foco a referência à conjura
mineira, pois daquela importante capitania se havia desmembrado o território
que hoje abriga o Estado de São Paulo.
Nesse contexto, viu-se o autor da obra obrigado a situar a narrativa
a partir de governadores que antecederam o astro central – Lorena – com
dificuldades em cumprir a missão estruturadora da capitania. Tanto os suspeitos
de incúria ou de alcance no dinheiro público (hábito ainda não abandonado em
nossos dias) como os sabujos e incompetentes.
O lado positivo das ações de Lorena valoriza a narrativa. E vale a
pena registrar uma obra, ainda existente, que surpreendeu por atravessar os
séculos: a Calçada do Lorena, estrada pavimentada originalmente com
características ousadas para a época e que concretizou a indispensável ligação
do planalto paulista com o litoral. Libertava-se a província paulista do porto
do Rio de Janeiro. E Adelto nos mostrará quão fecundo foi o governo de d. Bernardo
José Maria da Silveira e Lorena (1756-1818) para o despertar desse hoje grande Estado
brasileiro.
A construção da hábil narrativa nos mostra os governos anteriores
corruptos ou corruptores e com ações mesquinhas, o que faz ressaltar a
competência demonstrada por Lorena. O leitor logo estará envolvido pelos
episódios que antecedem a entrada em cena do nosso personagem, e verá um perfil
descrito sem paixão, mas com o indisfarçável prazer do historiador de
reconstruir o protagonista do livro.
III
Não caberia o prolongamento dos comentários acerca do conteúdo
histórico tão bem narrado, mas neste breve texto é indispensável focalizarmos
também o autor do livro, consagrado como historiador e pesquisador com títulos
obtidos no Brasil e no exterior.
Adelto Gonçalves é autor de extensa obra, destacando-se as
biografias, largamente premiadas, dos poetas Manuel Maria de Barbosa du Bocage
(1765-1805), no livro Bocage, o perfil perdido (Lisboa, Editorial
Caminho, 2003), e Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), em Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Editora Nova
Fronteira, 1999). É também célebre e apreciado no terreno da ficção,
trazendo-nos uma bela reconstrução da cidade de Santos nas primeiras décadas do
século XX e os movimentos sociais vistos então como “subversivos”.
Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e
Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Editora Letra Selvagem, 2015)
são romances de forte conteúdo político, não discursivos, lidos com agrado.
Livros que nos fazem esquecer o tempo, sendo devorados com prazer. Situações e
personagens com grande credibilidade, disputando encarnações que lembram o
Jorge Amado (1912-2001) dos tempos de Mar
morto (1936). Adelto mostra-se à vontade na escrita correta e leve. Não se
perceberá o hiato porventura existente entre historiador e criador de
histórias.
Da orelha do livro aqui comentado, recorto uma observação precisa de
Carlos Guilherme Mota: “...Lorena tem suas origens familiares, a vida e a ação
esquadrinhadas com a argúcia que define um bom historiador.” Podemos
acrescentar: ...e um excelente escritor. Hélio Brasil - Brasil
O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na
capitania de São Paulo – 1788-1797, de Adelto Gonçalves, com prefácio de Kenneth
Maxwell, apresentação de Carlos Guilherme Mota e fotos de Luiz Nascimento. São
Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 408 páginas, R$ 70,00, 2019.
Site: www.imprensaoficial.com.br
Hélio Brasil, arquiteto, professor universitário, romancista e
contista, é autor de uma trilogia sobre o bairro carioca de São Cristóvão: o
livro de não-ficção São Cristóvão: memória e esperança (Prefeitura do
Rio de Janeiro, 2004) e os romances A última adolescência (Bom Texto,
2004) e Ladeira do Tempo-Foi (Synergia Editora, 2017)). É autor também de O Solar da Fazenda do Rochedo e Cataguases (Synergia
Editora, 2016), em co-autoria com José Rezende Reis; Cadernos (quase)
esquecidos (edição artesanal, 2016); Tesouro: o Palácio da
Fazenda, da Era Vargas aos 450 anos do Rio de Janeiro (Editora Pébola,
2015), em co-autoria com Nireu Cavalcanti; e Pentagrama acidental,
novelas (Editora Ponteiro, 2014). Como contista, publicou O perfume que
roubam de ti... e outras histórias (Synergia Editora, 2018) e participou de
várias coletâneas.
Sem comentários:
Enviar um comentário