O
projeto Bandé-Gamboa, que junta duas bandas intergeracionais da Guiné-Bissau e
Cabo Verde, lança este mês o seu disco de estreia, à procura de conquistar
jovens em África e no Ocidente, sem paternalismo nem filtros estéticos presos
nos anos 70.
Com
a chancela da editora francesa Heavenly Sweetness, o projeto criou dois grupos
“all-star” – um de Cabo Verde, outro da Guiné-Bissau – com músicos novos e
velhos que recriaram canções antigas, navegando na contracorrente da maioria
dos trabalhos hoje feitos no Ocidente, com editoras fixadas na sonoridade dos
anos 70 do continente africano, contou à Lusa o produtor do projeto
Bandé-Gamboa, Francisco “Fininho” Sousa.
No
livro que acompanha o álbum, o também DJ português explica que, após 20 anos de
uma “procura obsessiva” por vinis e CD africanos, encontrou “três aspetos
cruciais” nas edições contemporâneas e “revivalistas” da música de África: os
discos raramente são comprados por africanos ou afrodescendentes; a dimensão da
cultura africana fica reduzida a géneros como reggae, soul, funk ou rock
psicadélico; e os compradores focam-se numa “determinada estética ‘old
school’ que transformou uma fase musical arbitrária no padrão atual da
música africana no Ocidente”.
Tendo
isso em conta, quando Francisco Sousa foi abordado pelo responsável da Heavenly
Sweetness, o produtor francês Guts, para fazer uma compilação, propôs-lhe fazer
algo que fosse contra a norma: “um projeto que fosse um murro na mesa”.
Depois
da luz verde da editora, decidiu avançar com a criação de duas bandas, uma de
músicos cabo-verdianos e outra de músicos guineenses a viver em Lisboa, para
recriarem canções antigas dos dois países, com objetivos distintos.
No
caso da Guiné-Bissau, procurou fazer-se “versões frescas e contemporâneas” do gumbé,
estilo pouco conhecido fora do país e que foi sendo gravado “por muitos
artistas e com ideias bastantes diferentes do que ele deve ser”.
Já
em Cabo Verde, decidiu testar-se a versatilidade do funaná e os seus limites,
que não tem os problemas de identidade nem falta de reconhecimento
internacional do gumbé.
Chegando
ao estúdio, Francisco Sousa fez algo “que os produtores na Europa têm muita
dificuldade em fazer: transferir muito mais o poder para os músicos e mudar de
uma postura quase hierárquica para uma postura muito mais de observador”.
“Trabalhar
num contexto pós-colonial, numa antiga capital de um império colonial, com a
diáspora dos países que foram colonizados é complicado e obriga a ler para não
trocar os pés pelas mãos. A mim, só me restou criar um ambiente convidativo
para os músicos trazerem as suas ideias para estúdio e, depois, de uma forma
suave, escolher ou direcionar”, contou à Lusa Francisco Sousa.
Apesar
de reconhecer o serviço positivo que editoras ocidentais tiveram na
redescoberta de música dos anos 60, 70 e 80, de África, Francisco Sousa realça
que, por vezes, algumas dessas compilações têm um olhar algo paternalista,
pintado por “um imaginário tropical exótico que é tóxico”.
O
consumo da música africana no ocidente está tão enraizado nos anos 70 que, até
a mostrar o projeto Bandé-Gamboa a conhecidos, algumas pessoas não conseguiram
ultrapassar o facto de as canções não terem o “grão” e o filtro estético
daquele tempo. “Dizem que está limpinho demais”, recordou.
Para
o produtor do projeto, as editoras, ao focarem-se nas franjas com influências
ocidentais, perdem uma oportunidade de “trazer novos fragmentos de cultura cá
para fora”. Além disso, Francisco Sousa considera que as editoras devem pensar
sobretudo “que não estão a salvar ninguém”.
“Estas
bandas tiveram o seu público, venderam os seus discos, muitas delas fizeram
muito dinheiro, outras nem por isso. Mas a lógica do ‘white savior’
[salvador branco] é muito perigosa”, acrescentou.
Nesse
sentido, o projeto Bandé-Gamboa não surge dessa ideia de salvar uma banda ou de
a revelar ao mundo, mas antes numa ética de partilha – “não mais do que isso”.
Ao
mesmo tempo, há o desafio de tentar agradar ao público dos dois continentes,
até porque reeditar bandas antigas africanas não interessa aos jovens desses
países.
Hoje,
reeditar na Guiné-Bissau os Super Mama Djombo, banda de discos raros e muito
procurados no Ocidente, seria como reeditar os Pink Floyd para uma geração
americana jovem: “É lindo, mas estão a ouvir outras coisas”.
“É
de louvar essa ideia do Francisco”, disse à Lusa Juvenal Cabral, dos Tabanka
Djazz e Diretor artístico da banda guineense do Bandé-Gamboa.
O
baixista compreende “a ideia das editoras ocidentais em pegar nas coisas
gravadas nos anos 70”, porque para o público europeu e americano “é algo novo”.
“Mas para nós, africanos, é algo que estamos cansados de ouvir. Não há novidade
nenhuma”, notou, frisando que, com este projeto, mesmo repescando músicas
antigas, há “uma lufada de ar fresco”.
Na
parte do disco dedicado à Guiné-Bissau, aproveitou-se para recuperar também
algumas músicas gravadas na Rádio Nacional deste país, em gravações “muito
rudimentares” e retrabalhá-las, com novos arranjos.
“Foi
um processo muito gratificante. Deu-me muito prazer fazer este trabalho”,
afirmou Juvenal Cabral, esperando que o projeto permita também um maior
reconhecimento internacional do gumbé, o estilo que reflete o mosaico de um
país com menos de dois milhões de habitantes, mas com mais de 30 etnias.
O
Diretor musical da banda cabo-verdiana do projeto, Lúcio Vieira, também se
congratulou com a ideia, tendo aceitado o convite de Francisco Sousa sem
hesitar, ainda para mais quando a proposta era testar os limites do funaná.
“Eu
cheguei em 1984 a Portugal e já ouvia muita fusão. Vinha com uma ideia muito
avançada e, quando cheguei, se fizesse uma malha ‘fora da caixa’ levava logo na
cabeça”, recorda, salientando que o disco foi uma oportunidade de mostrar o que
gosta mesmo de fazer: experimentar e inovar.
“É
uma ideia refrescante. É uma forma também desse projeto abrir a cabeça de
outras pessoas que vão ouvir e saberem que há inovação para além da tradição,
podemos fazer outras coisas, sem magoar o que já é feito pelos nossos mais
velhos”, vincou Lúcio Vieira.
O
disco, que é lançado a 12 de junho em formato físico e digital, conta com seis
temas para cada país, sendo também uma homenagem a Amílcar Cabral, cofundador
do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde e um dos maiores
símbolos da luta pela independência dos dois países.
A
banda da Guiné-Bissau, dirigida por Juvenal Cabral, é composta por Eric Daró,
Iragrett Tavares e Micas Cabral, nas vozes, Calú Ferreira (teclas), Eliseu
Imbana e Sidia Baio, nas guitarras, Toni Bat (bateria), Ernesto da Silva
(percussão) e Elmano Coelho (saxofone).
Da
formação cabo-verdiana, dirigida por baixista Lúcio Vieira, fazem parte Celso
Évora, Débora Paris e Kinha Andrade, nas vozes, Daya Neves (teclas), Ivan Gomes
(guitarra), Cau Paris (bateria), Djair de Pina (percussão) e Elmano Coelho
(saxofone). João Gaspar – “Agência Lusa” in “LusoJornal”
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