Diante
de tantas mortes e convulsões provocadas por mais uma guerra no Oriente Médio,
cujo estopim foi um enorme e amplo atentado cometido por uma organização
terrorista (não entro nas discussões sobre bom e mal atentado), me lembrei de
outro atentado, cometido há 20 anos em Bagdá, no começo da guerra do Iraque,
contra a sede das Nações Unidas em Bagdá. Nele morreu o Alto-Comissário da ONU
para os Direitos Humanos.
No
começo deste século, eu não dispunha de muito tempo para escrever comentários,
vivia correndo como repórter freelancer para jornais, rádios e mesmo
para as próprias organizações ligadas à ONU, quando, numa viagem, num evento
especial, precisavam de um jornalista de língua portuguesa. Foi assim que
conheci Sérgio Vieira de Mello. Ia com frequência à sede do Alto Comissariado,
devo ter feito algumas viagens com ele, que era alguém bastante comunicativo e
social.
A
morte de Vieira de Mello, em um atentado, foi um choque em Genebra. Ainda
jovem, com 54 anos, formado em filosofia na Sorbonne, ativo, preocupado com os
povos desamparados e desorientados, vivendo na miséria depois de cataclismas e
guerras, Sérgio, como era chamado em Genebra, sabia das dificuldades da ONU
para impedir e solucionar conflitos. Depois de ter agido em missão especial no
Camboja, Bangladesh, Kosovo e Sudão, Sérgio tinha sido administrador, por três
anos da ONU no Timor-Leste.
Pouco
antes da crise no Iraque, Sérgio havia desenvolvido a tese de que havia uma
relação direta entre a segurança mundial e o respeito aos direitos humanos. A
violação flagrante dos direitos humanos é a detonadora das crises internas nos
países e as crises internacionais.
Os
que conheceram Sérgio e seus projetos para tornar a organização internacional
mais eficaz não têm dúvida de que hoje o alto-comissário brasileiro teria
chegado ao posto de secretário-geral da ONU. Não era um político e nem um
funcionário de carreira, mas uma personalidade marcante preocupada em construir
a paz com justiça.
Facto
raro, a morte de Sérgio Vieira de Mello foi seguida da publicação de diversos
livros escritos por jornalistas que acompanhavam suas atividades e projetos em
Genebra.
Um
dos livros mais conhecidos é “Chasing the Flame”, de Samantha Power, jornalista
norte-americana de origem irlandesa, defensora dos direitos humanos, cujos
estudos em Harvard, militância política e carreira universitária a levaram ao
cargo de embaixadora junto às Nações Unidas, cargo que deixou após a eleição de
Donald Trump. O livro se transformou, em 2020, num filme com o título “Sérgio:
a luta de um homem para salvar o mundo”, com Wagner Moura no papel principal.
Na
exibição do filme, a revista Veja publicou texto sobre o que teria precedido o
atentado no Hotel Canal, onde funcionava a ONU: o objetivo da missão
diplomática de Vieira de Mello era conduzir o Iraque a eleições democráticas,
depois de anos da ditadura de Saddam Hussein, a partir de uma Constituição
escrita por iraquianos. A intervenção norte-americana, vista 20 anos depois,
foi catastrófica e provocou a ascensão do Estado islâmico.
Outro
livro importante – “Sérgio, uma esperança explodida” – foi o de Jean-Claude
Bührer com Claude B. Levenson, ambos jornalistas em Genebra à época, no qual
José Ramos-Horta, Prêmio Nobel a paz em 1996, e ministro das Relações
Exteriores do Timor-Leste, comentou: O atentado contra a sede da ONU em Bagdá,
que custou a vida do brasileiro, enviado por Kofi Annan, não só deixou o Iraque
cair lentamente na violência como decapitou o alto Comissariado pelos Direitos
Humanos.
Ainda
em 2016, a porta-voz de Sérgio na ONU, Annick Stevenson, publicou, junto com um
ex-Alto-Comissário para Refugiados, George Gordon-Lennox, o livro “Sérgio
Vieira de Mello, um homem excepcional”. Para eles, Sérgio é o único ícone que
jamais teve a ONU. Sua morte trágica significou que a própria ONU tinha também
se tornado alvo de atentados. Sérgio foi a Bagdá, por mandato do Conselho de
Segurança, com um projeto: evitar que a invasão e ocupação americana
transformassem o Iraque numa anarquia e desestabilizassem o Oriente Médio.
Hoje,
vinte anos depois, embora numa situação e quadros diferentes, a pergunta é a
mesma: como irão viver amanhã os palestinos de Gaza e Cisjordânia com seus
vizinhos israelenses? Rui Martins – Suíça
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Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a
ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes,
Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira
nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu
Dinheiro sujo da corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro
sobre Roberto Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi
colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de
Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut
Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça,
correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
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