Com “As viúvas passam bem”, Marta Barbosa Stephens se reafirma como uma das principais romancistas do Brasil de hoje
I
Depois
de fazer sua estreia como romancista com Desamores da portuguesa (Rio de
Janeiro, Imã Editorial, 2018), obra que conta a história de vida de uma
rapariga lusitana, de 41 anos, sem nome, que vive um triplo autoexílio do país,
da língua e do passado, Marta Barbosa Stephens volta a exercitar o gênero com As
viúvas passam bem (São Paulo, Folhas de Relva Edições/São Paulo Review
Produções, 2023), livro finalista do Prêmio Leya de 2021, de Portugal, em que torna
a exibir um texto fluente, sóbrio, em vários momentos poético e com passagens
bem-humoradas.
A obra traz também algumas “cenas muy calientes de êxtase
amoroso, em linguagem direta, sem metáforas”, como bem salienta o jornalista e
escritor Hugo Almeida no texto de apresentação. Enfim, trata-se de um romance
sobre a fragilidade de um amor que, aparentemente, mostra-se perfeito e que, de
repente, em razão dos inesperados movimentos da vida, perde-se, embora seja
sempre possível um recomeço, ainda que com outro(a) parceiro(a).
Com o tempo, as viúvas vão descobrindo que a vida seguia
igual. Margarete educou as filhas, fez novos amigos, participou de encontros da
igreja em fins de semana, segura e altiva, tal como quando tinha ao seu lado
Richard, o marido morto, um inglês que, nos anos oitenta, havia trocado Londres
por “uma semifeudal capital dos trópicos”. Ao mesmo tempo, Guiomar reencontrou
a vida de mãos dadas com outro homem, Fred, já que, depois de tantas
tribulações, ainda descobriria que havia sido traída por Alexandre, o marido
morto.
II
É um romance faz lembrar não só estilo de escritoras
brasileiras importantes, como Lygia Fagundes Telles (1918-2022), Clarice
Lispector (1920-1977) e Nélida Piñon (1937-2022), como demonstra que a autora
leu bastante Machado de Assis (1839-1908) e Osman Lins (1924-1978), entre
outros grandes romancistas.
Permeado por fragmentos da memória, o romance, segundo a
autora, é uma colcha de retalhos daquilo que uma adolescente viu numa vila do
Recife no começo da década de 90 em que morava com a família, ainda que muita
coisa tenha sido fantasiada, como ela mesmo admite. Diz: “Ouvi minha mãe narrar
muitas cenas de ódio entre elas. Algumas, eu testemunhei. Vê-las confrontar-se
causava desassossego. Não dava para ter raiva de nenhuma, talvez pena, talvez
medo, mas não raiva. O ódio delas era paralisante. Era a prova de que o inferno
existe. Morávamos em uma vila onde quase nada acontecia, mas em meio à calmaria
estavam aquelas duas mulheres vestidas de preto, que no escuro de seus quartos
por certo choravam igual meninas a saudade de seus homens, mas fora de casa se
agarravam a uma força sem nome, sentiam um fio espichando suas cabeças,
mantendo-se eretas, firmes, ainda que o desejo da alma fosse a ruína”.
Por aqui se vê que o estilo de Marta Barbosa Stephens
está cada vez mais amadurecido, capaz de encantar o leitor pela maneira fácil
como descreve personalidades, como se constata, por exemplo, no trecho em que
reconstitui o novo amor de Guiomar, o também viúvo Fred, um tipo “bonito, ainda
que envelhecido, abatido, barba grisalha, olhos cansados”, que também teria
sido enganado por Beatriz, sua mulher, morta em razão de um acidente de moto
quando estava na garupa de um médico que, “com esposa e filhos, frequentava o
mesmo grupo de casais da igreja”.
Em outras palavras: Marta Barbosa Stephens, como
escritora de uma fertilidade ímpar, procura transfigurar o cotidiano vivido à
época de sua adolescência e mocidade, aproveitando aquilo que mais lhe serve
como fonte de inspiração. E o resultado é um texto que merece ser lido e
discutido também por críticos literários, na medida em que as reflexões
suscitadas por suas rememorações, seus rasgos de memória, acabam por
solidificar uma narrativa que ganha ares de uma reconstituição proustiana e
preserva a oralidade dos bons romances.
III
Marta Barbosa Stephens, nascida em 1975, no Recife, em
Pernambuco, é jornalista e crítica literária, com pós-graduação em Edição na
Universitat de Barcelona e mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC), de São Paulo. Vivendo desde 2014 em Londres, ela encontra tempo
para cuidar de seus dois filhos e dedicar-se à escrita, além de trabalhar como
jornalista para garantir a sobrevivência da família, inclusive como
correspondente da revista eletrônica Prazeres da Mesa. Costuma frequentar a National
Gallery, museu de arte localizado em Trafalgar Square, em Westminster, no
centro de Londres, onde busca inspiração para seus exercícios literários.
É autora também de Voo luminoso de alma sonhadora (São
Paulo, Editora Intermeios, 2013), seu primeiro livro de contos. Outros de seus
contos estão em diversas coletâneas, como A mulher em narrativas (2017),
Perdidas – histórias para crianças que não têm vez (Imã Editorial, 2017) e
Feliz aniversário, Clarice: contos inspirados em Laços de família (Belo
Horizonte, Autêntica Editora, 2020), de Hugo Almeida (organizador), obra
selecionada pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), do Ministério da
Educação e Cultura (MEC), para o ensino médio, com narrativas que homenageiam a
escritora e jornalista brasileira, nascida na Ucrânia, Clarice Lispector. Seu
primeiro romance, Desamores da portuguesa, é tema de tese de doutoramento em
Letras da pesquisadora e escritora Débora Muttar na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Adelto Gonçalves – Brasil
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As viúvas passam bem, de Marta Barbosa Stephens, com
apresentação de Hugo Almeida. São
Paulo, Folhas de Relva Edições/São Paulo Review Produções, 124 páginas, R$
58,90, 2023. Sites das editoras: www.editorafolhasderelva.com.br www.saopauloreview.com.br
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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas
Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Fernando Pessoa: a
voz de Deus (Santos, Editora da Unisanta, 1997), Gonzaga, um poeta do
Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira
(Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o
perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de
Letras, 2012), Direito e Justiça em
terras d´el-rei na São Paulo colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada
(Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015)
e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo
1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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