O que têm Erhu, Pipa e Gaohu em comum com a guitarra portuguesa, a guitarra clássica e a viola? Muito mais do que se imagina, a julgar pela satisfação com que o fadista Camané, o maestro e o concertino da Orquestra Tradicional Chinesa falaram sobre a forma como têm corrido os ensaios em preparação para o concerto deste sábado no CCM, um espectáculo que volta a trazer o aclamado fadista português pela quarta vez a Macau
Camané
vai actuar amanhã no grande auditório do Centro Cultural de Macau (CCM), num
concerto que conta com o acompanhamento da Orquestra Chinesa de Macau. Ainda a
recuperar do jetlag, o fadista nascido em Oeiras confessou que devido
aos ensaios pouco tempo terá para passear pela cidade onde já actuou três
vezes: duas com a orquestra chinesa, em 1999 e 2007, e outra só com guitarra e
viola, num concerto no Venetian para o Festival Literário Rota das Letras de
2013.
Satisfeito
com a forma como estão a decorrer os ensaios, partilhou com os jornalistas
presentes algumas das suas impressões da experiência. “Fica muito bem o Fado
com esta orquestra, aliás, qualquer orquestra fica bem, e esta em particular
está a funcionar muito bem. Os instrumentos chineses funcionam muito bem no
Fado, algumas cordas são fantásticas”.
Também
Zhang Yueru, concertino da Orquestra Tradicional Chinesa, confessou achar
interessante haver três instrumentos na música chinesa – o Erhu, a Pipa e o
Gaohu – que são parecidos com os da guitarra portuguesa, em que se consegue
“ter um som muito aproximado” ao do Fado. O músico chinês também partilhou o
gosto que tem sido ver os músicos portugueses que estão a acompanhar o fadista
neste concerto quererem saber mais sobre estes instrumentos chineses. “Durante
as nossas conversas também trocamos ideias de como manusear o instrumento
chinês para que ele tenha um som parecido com o da guitarra portuguesa”,
partilhou.
Para
o concerto deste sábado, Camané traz “muitos fados tradicionais”, com letras
que adaptou dos fados tradicionais, com “poemas lindíssimos”, e músicas que
fazem parte do seu percurso, músicas de José Mário Branco, que foi seu produtor
durante 20 anos, lembrou. “Acho que o espectáculo vai ser um bocado daquilo que
eu faço normalmente, só que a única diferença é que tem uma orquestra chinesa.
Já o fiz com outras orquestras também, diferentes, em Portugal e fora de
Portugal”. A responsabilidade, no entanto, é sempre enorme, e diz que vai para
o “palco cheio de medo”, mas que, com os ensaios a correrem tão bem, sente-se
mais confiante.
Quanto
ao facto de ir cantar para um público composto em parte por pessoas que não
falam português, Camané diz que a “música ultrapassa a barreira da língua”,
desde que esta seja interpretada com muita emoção. “É preciso estar ali com
prazer e transmitir essa emoção, e essas coisas muitas vezes não se explicam.
Como quando olhamos para um quadro, e não percebemos, mas toca-nos. É isso”. O
fadista português diz que, de resto, também não consegue explicar a razão da
boa aceitação das suas actuações em tantos países onde não se fala português.
“Não sei, mas tenho tido imensa sorte, porque as coisas têm corrido bem”.
Esta
é, aliás, uma velha história do Fado, este fascínio do mundo pelas canções
nascidas nas ruas de Alfama e da Mouraria. Recordando o início da sua carreira,
em que “tinha vergonha de dizer que cantava Fado na escola”, lembrou os tempos
em que o Fado não estava na moda em Portugal, e em que, no entanto, na altura
“fora de Portugal havia um grande interesse pelo Fado. Carlos do Carmo, Amália,
grandes fadistas cantavam muitas vezes fora de Portugal, e tinham um sucesso
enorme. Em Portugal as coisas estavam um pouco complicadas, mas isso foi
mudando”. Com o seu primeiro álbum, “as coisas começaram a mudar”, e hoje em
dia, cada vez mais jovens querem tocar guitarra portuguesa, cantar Fado. “Acho
que é fantástico, estou muito contente”, confessou Camané ao Ponto Final.
Música triste e romântica
Yao
Shenshen, maestro da Orquestra Chinesa, falou-nos do que conseguiu compreender
para além das palavras cantadas. “Acho que o Fado é um tipo de música triste e
romântica, que consegue transmitir a emoção de tristeza ao público”.
Confessando-se satisfeito com toda a experiência, que lhe permitiu aumentar o
seu conhecimento musical e “aprender muita coisa porque não conhecia o Fado”,
diz ter ficado a “gostar muito do lado romântico” do Fado. Durante os ensaios,
sempre que precisavam de comunicar e esclarecer dúvidas, o maestro e o fadista
trocavam algumas palavras em inglês, mas para si o mais importante foi
simplesmente tocar. “O principal é começarmos a tocar música. A música é uma
língua universal. Em tempos nem era preciso falarmos uns com os outros, era só
tocar”, salientou.
Quanto
ao ritmo e à forma das canções tradicionais portuguesas, Yao Shenshen
contou-nos que houve momentos interessantes nos ensaios devido ao facto de o
Fado não ser muito regular. “Há sempre variações, e algumas vezes até o cantor
parou de cantar, e não sabíamos se devíamos parar também, mas depois, na
segunda vez, já soubemos como acompanhar o fadista de uma forma melhor. Fiquei
a gostar muito de Fado”. O colega da Orquestra Tradicional Chinesa, Zhang
Yueru, também aproveitou para recordar que esta não é a primeira vez que “a
música chinesa teve contacto com a cultura portuguesa”, e que apesar de haver
novos músicos na formação da orquestra, na verdade esta é a segunda vez que a
orquestra está a actuar com Camané. Sobretudo, o facto de os dois lados terem
uma boa “compreensão musical ajuda a combinar as duas culturas, porque a música
chinesa tem pontos parecidos com o Fado, e por isso o concerto resulta. É um
prazer ter este concerto de novo com o Camané”, acrescentou.
Uma
jornalista quis saber se Camané tenciona lançar um álbum com a orquestra
chinesa em breve, ao que este retorquiu que, para já, esta ideia não está nos
seus planos, embora esteja aberto a essa possibilidade. Para si, o processo de
lançar álbuns tem de ser feito com tempo e sem pressões. Recordando um álbum
que fez com o pianista Mário Laginha, experiência que “adorou”, quatro anos
depois quis lançar um segundo álbum, em 2021, com o mesmo pianista. “No outro
dia, na Covilhã, tive numa sala esgotada com um concerto com o Mário Laginha”,
recordou. Também falou sobre algumas participações em discos de músicos com
orquestra, e até num álbum de rock, como foi o caso do projecto “Humanos”, com
Manuela Azevedo, dos Clã, e David Fonseca, uma experiência que Camané insistiu
em frisar não ser o seu estilo de música, apesar de boas memórias da
colaboração. “Fizemos três concertos e um disco, mais nada. Ainda hoje às vezes
me pedem [para dar mais concertos], mas cada músico tinha os seus projectos e
ninguém quis continuar com mais concertos. Foi uma coisa pontual, uma homenagem
de músicas que o António Variações nunca tinha cantado porque morreu antes, e
nós fizemo-las”. Rita Gonçalves – Macau in “Ponto
Final”
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