Estudo conduzido por investigadores da Universidade do Porto permitiu decifrar a origem da ausência de glomérulos renais nos cavalos-marinhos e parentes próximos
A
origem de um fenótipo – o conjunto de caraterísticas morfológicas e funcionais
de um organismo – é uma das questões mais fascinantes em Biologia. Como aparece
e se forma um órgão, um comportamento ou uma anatomia peculiar, são fonte de
enorme discussão entre cientistas. Mas, talvez mais desafiante seja perceber
como se modificam ao longo do tempo, e se resultam de processos adaptativos ou
apenas regressão. Um estudo publicado por investigadores do Centro
Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Porto
(CIIMAR-UP), da Faculdade de Ciências da U.Porto (FCUP), da Associação BIOPOLIS
(CIBIO/InBIO) e do CCMAR, usou o poder do estudo dos genomas e transcriptomas,
nomeadamente em cavalos-marinhos, para descobrir a origem do rim peculiar
observado nestas espécies.
O
trabalho agora publicado na prestigiada revista Current Biology conta-nos de
que forma a modificação da fisiologia de um animal resulta de um processo
iterativo de ajuste ambiental, tomando como caso de estudo o glomérulo renal,
responsável pela filtração do sangue e que, afinal, está ausente em
cavalos-marinhos e outros singnatídeos.
Entender
de que forma um determinado órgão se modifica ao longo do tempo, e com que
impactos na fisiologia de um animal, é das mais fascinantes questões em
Biologia. Para responder a esta pergunta, o uso crescente de dados moleculares
tem sido cada vez mais comum, dado que as alterações morfológicas profundas,
como a simplificação secundária de um órgão e sua função, se refletem
obrigatoriamente em “assinaturas” no ADN.
Um
exemplo interessante é o da história evolutiva de um órgão central na
fisiologia dos animais vertebrados, incluindo os membros da espécie humana. O
rim, com a sua estrutura única, os glomérulos que filtram os produtos do
metabolismo celular, é uma peça central na evolução dos vertebrados. E, no
entanto, algumas espécies de animais vertebrados, aparentemente, apresentam
rins “aglomerulares!”
O
rim é o principal órgão do sistema excretor, responsável pela filtração dos
produtos do metabolismo celular da corrente sanguínea. Esta função é
fundamental e minimiza a perda de água e de moléculas essenciais, como a
glucose, mas elimina os produtos tóxicos. Este filtro, e proteínas que o
compõem, são evolutivamente muito antigos. A análise detalhada da anatomia
comparada demonstra que a estrutura do rim é conservada entre animais
vertebrados separados desde há milhões de anos. O rim de um tubarão-branco, o
de uma sardinha ou o de um humano, apesar de algumas diferenças, apresentam uma
imensa semelhança funcional e molecular na porção filtradora, resultado de uma
origem evolutiva comum.
Surpreendentemente,
algumas espécies de peixes ósseos, entre os quais membros da família dos
cavalos-marinhos, apresentam um rim muito peculiar. A diferença mais óbvia é a
ausência de glomérulos renais, a unidade central do nefrónio responsável pela
filtração sanguínea.
O poder do estudo do ADN: uma revolução em curso!
Os
autores do estudo “Extensive gene loss parallels kidney aglomerulism in
Syngnathidae” conseguiram, com recurso à utilização de ferramentas
bioinformáticas para aferir sobre a funcionalidade do rim, decifrar a origem de
um padrão peculiar observado nos cavalos-marinhos e seus parentes mais
próximos: a ausência de glomérulos renais.
O
estudo demonstra que, apesar do rim com glomérulos estar presente na maioria
dos vertebrados, os genes relacionados com a construção da barreira filtradora
do rim estão ausentes em cavalos-marinhos. A perda destes genes demonstra que a
função filtradora do rim desapareceu, em linha com a ausência de glomérulos
renais.
Segundo
Filipe Castro, investigador do CIIMAR e da FCUP e autor sénior deste trabalho,
“o uso de ferramentas bioinformáticas para o estudo de genes diretamente
ligados à função renal e do glomérulo constitui uma abordagem poderosa para se
perceber como se origina um órgão, se estamos perante um órgão funcional ou
vestigial, e que impactos podem ser inferidos da fisiologia comparativa.”
Porque é que um órgão se modifica?
A
perda do glomérulo do rim e suas implicações fisiológicas tinham sido
anteriormente descritas. Agora, neste trabalho, os investigadores encontraram
um padrão de perda de genes muito significativo e que foi considerado uma
resposta adaptativa para ultrapassar as limitações ecológicas e comportamentais
apresentadas por estes animais.
Na
verdade, as espécies deste grupo, como é o caso dos cavalos-marinhos,
apresentam um sedentarismo característico, com períodos prolongados de
inatividade que sustentam o disfarce. Assim, esta radical reorganização
fisiológica ao nível renal, pode, em última análise, estar ligada às restrições
impostas pela energia disponível.
Estes
organismos apresentam baixa taxa metabólica que, combinada com as presas
alimentares de baixa valor energético e uma ineficiente capacidade de extração
de energia dos alimentos, poderá ter exercido uma força seletiva para otimizar
o gasto energético renal. Assim, o desmantelamento de um sistema excretor
evolutivamente conservado, mas energeticamente caro, pode ter sido vantajoso.
“É
muito curioso que o funcionamento inadequado do glomérulo renal na nossa
espécie é causa de insuficiência renal e doenças associadas. E aqui temos um
modelo animal que é interessante já que é num sentido muito simples um
“insuficiente renal saudável”! O estudo da evolução das espécies, dos seus
fenótipos, oferece conhecimentos importantes sobre o passado, mas o aspeto
menos óbvio, mas muito relevante é o das lições valiosas em campos tão
inesperados como os da Biomedicina”, explica Filipe Castro.
Nuno
Monteiro, autor do trabalho e investigador da Associação BIOPOLIS (CIBIO/InBIO)
revela, por sua vez, que “esta descoberta mostra, mais uma vez, quão especial é
a família dos cavalos-marinhos. Enquanto concebem maquinaria capaz de
transferir o ónus da gravidez para os machos, desmontam estruturas milenares,
como é o caso do rim. São criaturas de aspeto dócil e delicado, mas
evolutivamente “hiperativas”! Como o dinheiro (energia) não estica, há que
fazer opções”.
Enquanto
coordenador Europeu do projeto EUROSYNG, que trabalha para a conservação destas
espécies no nosso continente, Nuno Monteiro diz estar duplamente satisfeito com
estes resultados: “Este ano começamos, a nível continental, a árdua tarefa de
preservar estas criaturas e os seus habitats, preparando um futuro que, num
mundo em acelerado aquecimento, não é, para já, muito risonho. Este achado foi
um ‘pontapé de saída’ impressionante! Temos equipas portuguesas a liderar a
conservação dos singnatídeos e a descobrir, em impressionante detalhe, os
segredos que escondem nos seus genes. As mais de duas décadas de trabalho com
estes animais fazem-me suspeitar que as surpresas não acabarão aqui. Como hoje
falamos de urina, diria que as novidades irão aparecer… nem que seja às
pinguinhas”.
Agora,
sabendo que a perda de função excretora do rim tem repercussões profundas na
fisiologia e regulação osmótica destes peixes icónicos, a pergunta mais óbvia
para o futuro é entender que outro tipo de adaptações, ao nível molecular,
estes animais sofreram para permitir o surgimento de tão invulgares padrões de
atividade. Num mundo em acelerada mudança climática, esta plasticidade pode ser
o “detalhe” que definirá a permanência ou extinção destas espécies icónicas.
Da mitologia à conservação dos cavalos-marinhos
Historicamente
imersos na mitologia europeia, os cavalos-marinhos eram vistos como protetores
das almas dos marinheiros a caminho do submundo, ou como corcéis que puxavam a
carruagem de Poseidon.
Hoje,
os cavalos-marinhos e os seus parentes mais próximos tornaram-se embaixadores
poderosos da conservação dos oceanos e promotores da educação científica. Os
singnatídeos (cavalos-marinhos, marinhas e dragões-marinhos) são membros de uma
grande família de peixes ósseos (Syngnathidae), compreendendo aproximadamente
300 espécies, que ocupa, principalmente, habitats marinhos, estuarinos ou de
água doce, geralmente a pouca profundidade.
Em
águas europeias existem aproximadamente 18 espécies de singnatídeos: 15
espécies de marinhas e 4 espécies de cavalos-marinhos. Destes, de acordo com a
União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), 55% estão listados
como “Informação insuficiente” e o estado atual das populações de 83% dos
singnatídeos europeus é ainda desconhecido.
Estes
números mostram a lacuna de conhecimento sobre a saúde dos nossos ecossistemas
costeiros, o que restringe severamente a nossa capacidade de detetar, reverter
ou evitar hipotéticas perturbações. Embora gozem de um estatuto especial, em
comparação com muitos outros organismos aquáticos, os singnatídeos continuam a
enfrentar inúmeras ameaças, uma vez que a atividade humana e as alterações
climáticas afetam gravemente os seus habitats. De acordo com um estudo recente,
a diversidade de singnatídeos no próximo século, em todos os cenários de
alterações climáticas, será fortemente afetada, especialmente no sul da Europa.
Considerando
os novos desafios de conservação enfrentados pelos singnatídeos, nove equipas
de investigação de sete países europeus criaram, este ano, o projeto europeu
“EUROSYNG – Promoting action on broad ocean challenges by delving into the
past, present and future of European syngnathids”, que é liderado pela
Associação BIOPOLIS (CIBIO/InBIO).
Esta
é a primeira iniciativa que visa avaliar a saúde das populações de singnatídeos
a nível continental. O projeto EUROSYNG ajudará os estados europeus fornecendo
um retrato claro do estado das populações na Europa, oferecendo uma visão
cronológica da distribuição dos singnatídeos (abrangendo o passado, o presente
e o futuro) e medindo a conectividade e a saúde genética das populações atuais,
utilizando métodos tradicionais (dados de museus, censos populacionais) e
metodologias de ponta (genómica populacional).
Os
resultados terão o potencial de auxiliar processos transparentes de tomada de
decisão que levem à criação de legislação progressista que beneficie tanto as
populações humanas quanto as de singnatídeos. Universidade do Porto -
Portugal
Sem comentários:
Enviar um comentário