O 30º aniversário dos Dóci Papiaçám di Macau, grupo de teatro exclusivamente em patuá, celebrou-se na semana passada, mas a festa faz-se dia 1 de Dezembro com um jantar que reúne antigos e actuais colaboradores. Os desafios continuam a ser o financiamento e a necessidade de uma sede, mas a renovação do grupo, com novos actores, parece estar garantida
O
Festival Internacional de Artes de Macau integra todos os anos um espectáculo
muito especial para as comunidades macaense e portuguesa. A habitual peça dos
Dóci Papiaçám di Macau, grupo que há 30 anos faz teatro em patuá, o dialecto em
vias de extinção da comunidade macaense, todos os anos atrai muito público para
o Centro Cultural de Macau (CCM).
Numa
altura em que o dialecto macaense praticamente não tem falantes em Macau e no
mundo, o trabalho deste grupo revela-se fundamental para manter viva um
linguajar tradicional. Alvo de muitos trabalhos académicos, precisamente pelo
papel que têm na preservação de uma característica cultural da comunidade, os
Dóci Papiaçám di Macau, sempre com Miguel de Senna Fernandes como dramaturgo,
tem-se mantido ao longo dos anos enfrentando desafios permanentes. Em 30 anos,
o grupo nunca conseguiu ter sede própria, ensaiando na Escola Portuguesa de
Macau. Relativamente ao financiamento, o apoio do Instituto Cultural não tem
faltado, mas é sempre pouco tendo em conta os custos de uma produção teatral.
E, por último, o desafio da sobrevivência, sendo que neste campo os Dóci têm
provado ser resistentes: mantém actores mais antigos, que ajudaram a fundar o
grupo, mas conseguiram atrair novos actores, até oriundos da comunidade
portuguesa.
O
jornalista João Picanço foi um deles. Nunca tinha ouvido falar do patuá ou
visto uma peça, mas fez a sua primeira peça com os Dóci em 2018. Hoje já é uma
voz e um rosto característico do grupo.
“Ser
um dos jovens actores do grupo para mim é muito gratificante, porque quem me
convidou, o Miguel de Senna Fernandes, poderia ter convidado outras pessoas.
Tenho um passado ligado ao teatro amador e confesso que estava à espera de
encontrar o mesmo, mas a verdade é que não foi nada disso que encontrei”,
começou por dizer ao HM. “Fiquei muito surpreendido quando percebi o que estava
em causa. O primeiro espectáculo em que participei foi também o primeiro que
vi. Acho que o nível da produção não envergonha ninguém, muito pelo contrário,
dada a natureza do grupo. O que me trouxe responsabilidade”, adiantou.
João
Picanço recorda que muitos dizem que os Dóci continuam a fazer teatro “por
carolice”, para não deixar morrer um dialecto que busca influência da língua
portuguesa e de outros idiomas, mas o jornalista entende que está muito mais em
causa.
“O
patuá é um pedaço importante da cultura macaense, sendo a língua é um pedaço
importante de qualquer cultura ou povo. Mas acho que é um pouco superficial
encarar [o projecto] como algo feito por carolice. Aquilo é para os macaenses,
principalmente. Os Dóci representam, de facto, uma importante conquista para a
comunidade, e isso tem sido reconhecido apesar de todos os tumultos e medos,
sobretudo o medo do fim do patuá. Há uma grande verdade nas pessoas que
trabalham ali, e isso é algo muito bonito.”
A experiência em palco
Ao
contrário de João Picanço, Sónia Palmer é uma das actrizes mais antigas, tendo
sido uma das fundadoras do grupo. Ao HM, diz que já foram tantas as personagens
que interpretou que nem consegue dizer quais foram as mais desafiantes. “Foi
tudo mais difícil no princípio [com a preparação das personagens], mas agora é
mais fácil”, disse.
“O
facto de o nosso grupo fazer 30 anos é algo bastante significativo para o
trabalho que temos feito, é sinal de que temos feito coisas boas. Mas para um
grupo continuar no activo durante tanto tempo é preciso um grande esforço por
parte de todas as pessoas”, confessou.
Sónia
Palmer revela que a celebração dos 30 anos acontece dia 1 de Dezembro com um
jantar para o qual foram convidadas “todas as pessoas que participam ou
participaram no grupo, tanto nas peças como nos bastidores”.
Olhando
para o presente, a colaboradora e actriz, membro da comunidade macaense, assume
que o maior desafio continua a ser a falta de uma sede. “Todos os anos temos de
pedir um sítio emprestado para ensaiarmos. Felizmente que a Escola Portuguesa
de Macau nos tem ajudado. Falta-nos ainda financiamento, porque para fazer uma
peça é preciso muito dinheiro.”
O senhor dramaturgo
Miguel
de Senna Fernandes, o grande dinamizador dos Dóci e autor de todas as peças,
escreveu nas redes sociais um texto sobre o aniversário, lembrando os
primórdios do projecto.
“Hoje,
há trinta anos, estávamos com os nervos em franja, com o coração e suor nas
mãos, nos bastidores do vetusto Teatro D. Pedro V, então recém-renovado. O
tempo não andava e cada minuto parecia horas. Na plateia figurariam gente de
peso. O então Governador General Rocha Vieira, o Dr. Carlos Monjardino, a Dr.ª
Anabela Ritchie e outras figuras de vulto. Tudo em torno da visita do então
Presidente da República Portuguesa, Mário Soares, com uma peça escrita em sua
homenagem.”
A
peça em causa foi “Olâ Pisidente!” e acabou por “marcar o início de uma
aventura que não se esperava”. “Julgo termos cumprido o que, com o tempo,
passou a esperar-se de nós”, escreveu ainda.
Ao
HM, Miguel de Senna Fernandes confessa que gostaria de encontrar novos
dramaturgos para as peças dos Dóci. “Há novas pessoas que vão aparecendo, mas é
fundamental que haja mais pessoas a escrever. Quando comecei, tinha os mais
veteranos no patuá diziam como se escreviam algumas palavras, como a Fernanda
Robarts, a minha professora ‘de facto’. Dizia-me que havia expressões demasiado
portuguesas, que não se podia escrever assim. Esse é agora o meu papel. Haver
mais pessoas a escrever vai valorizar [o nosso projecto].”
Outro
sonho de Miguel de Senna Fernandes, que preside também à Associação dos
Macaenses, é levar as peças dos Dóci a Lisboa e até à China, com as devidas
adaptações. “O meu sonho é levar o espectáculo para Lisboa e para o continente.
Gostaria muito de voltar a Lisboa e representar para a comunidade macaense em
Lisboa, que é forte. Mas não temos ainda contactos feitos. Há que utilizar uma
fórmula que funcione em palco, em Lisboa, e com algumas adaptações na China.”
Em
Portugal, destaca, “há uma comunidade macaense, mas também temos os portugueses
que viveram em Macau e que conhecem os Dóci. Fazia todo o sentido levar lá o
espectáculo. Não há nenhum sítio pensado, nem contactos ainda feitos com
nenhuma entidade. Para isso é preciso fazer um projecto. Veremos se o projecto
do próximo ano possa dar azo a isso. Lisboa está na calha, não sei com que
dinheiro, mas não custa nada tentar”, salientou.
Miguel
de Senna Fernandes diz que o grande desafio para o futuro do grupo é “manter o
interesse das pessoas no palco e da própria assistência”. “Este binómio tem de
funcionar sempre para que isto tenha sucesso. Da nossa parte estamos sempre
motivados e falamos também da motivação de gente nova que queira participar e
manter esta chama, a apetência para estar em palco e representar em patuá.”
Uma
das forças motrizes do grupo promete não deixar os Dóci tão depressa. “Os
actores mais veteranos são fundamentais para que a comédia em palco se
desenvolva. Já não são os actores da primeira linha, mas estão na retaguarda
para dar o suporte fundamental para que a comédia funcione. Estamos sempre em
família. Mas tem havido sangue novo, de uma geração que não tem uma tradição
com o patuá. Acham muito interessante e ficam deslumbrados com o projecto, mas
depois começam a ter a noção da importância das coisas. São essas pessoas novas
que precisamos de cativar”, rematou. Andreia Silva – Macau in “Hoje
Macau”
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