Como
os judeus da esquerda brasileira estão reagindo e interpretam a guerra de
Israel contra o Hamas? Uma boa síntese para essa indagação foi possível por
iniciativa do canal Diário do Centro do Mundo, com um debate entre dois
intelectuais esquerdistas judeus, um de formação e origem comunista, o
conhecido jornalista Breno Altman, e o advogado e professor de formação
anarquista, Pietro Nardella-Dellova, como ambos explicaram durante o debate.
O
encontro começou com a discussão do que consistia na questão básica: é possível
ser sionista e ser a favor do povo palestino? E surgiu a primeira divergência
justamente sobre a essência do sionismo.
Aqui
é preciso se buscar um resumo, uma definição de sionismo e como foi
estruturado. Sirvo-me de uma definição acadêmica da Escola de Política
Aplicada, da Universidade Sherbooke do Canadá:
“Movimento
doutrinal e político cujo objetivo é a construção, consolidação e defesa de um
estado judeu na Palestina, perto de Jerusalém. O movimento é assim chamado em
referência à colina de Sião, em Jerusalém, onde a cidadela de Davi foi erguida
nos tempos antigos. O fundador do sionismo é Theodor Herzl, político e
jornalista judeu húngaro (1860-1904). Em resposta ao anti-semitismo presente em
toda a Europa (caso Dreyfus em França, pogroms na Rússia), publicou um
manifesto fundador do sionismo intitulado “Der Judenstaat, Versuch einer
Modernen Lösung der Judenfrage” (O Estado Judeu, em busca de ‘uma moderna
resposta à questão judaica) em 1896, onde apresentou sua tese sobre a
necessidade de os judeus criarem seu próprio estado. Em 1897, um congresso
judaico reunido em Basileia (Suíça), sob a presidência do próprio Herzl, deu
origem ao movimento sionista. Um ano depois, foi criado um banco colonial
judeu, que em 1901 levou à criação do Fundo Nacional Judaico, cujo objetivo era
adquirir terras na Palestina, região anteriormente ocupada por populações
judaicas. No entanto, já em 1882, estudantes judeus da Rússia, os “Amantes de
Sião”, iniciaram as primeiras formas de colonização.
Foi
apenas em 1917 que os sionistas conseguiram marcar pontos políticos com a
“Declaração Balfour” (Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico) que
aceitou, em nome do Reino Unido, a criação de uma “casa nacional judaica” na
Palestina. Em 1948, o Estado de Israel foi finalmente proclamado, provocando
fortes reações árabes.
Sempre
ameaçado por segmentos das comunidades árabes, o sionismo está hoje intimamente
ligado à defesa ideológica e política do Estado de Israel, bem como à promoção
das suas políticas de defesa. O sionismo se opõe ao anti-semitismo”.
Parece-me
também necessário acrescentar que ao judaismo só se chega por herança étnica de
pai/mãe para filhos.
Para
Pietro Nardella não existe um conceito único de sionismo: “penso no sionismo
como uma defesa do Estado e quando o sionismo é de esquerda, progressista, é
possível se pensar em questões sociais e na questão palestina ou no
estabelecimento de um Estado palestino.”
Nada
a ver com a opinião de Breno Altman: “é possível como uma fantasia, não como
demonstrou a realidade histórica. Todas as correntes do sionismo acabaram por
chegar à essência do sionismo. Embora haja muitos sionistas que se reivindicam
de esquerda e pensam individualmente de uma maneira mais generosa, o sionismo,
na sua essência, é colonialista e racista. Não existe nenhuma harmonia na
defesa de um Estado palestino com o sionismo. Porque o sionismo é outra forma
de racismo. É evidente que se o sionismo se propôs construir um Estado étnico
numa região ocupada por outros povos, ele assumiu uma característica racial,
porque a proposta herzliana de um estado judeu, não é de um estado nacional,
mas de um Estado étnico nacional, uma concepção racista, e de uma vertente
colonial com a expulsão dos povos que ocupam a região. Isso o que fez o
sionismo socialista do Mapai de Ben-Gurion ou o sionismo revisionista de
Jabotinsky.”
Na
mesma linha de pensamento, Altman cita que, no processo africano de
descolonização, não houve nenhum país criando um Estado etnicamente negro.
Mesmo na África do Sul onde havia o colonialismo segregacionista criado pelos
boers, ao terminar o apartheid não se criou um Estado negro, mas um Estado
democrático nacional sem caráter étnico ou religioso. “Ora, disse Altman, o
sionismo desde o princípio se propôs a criar um Estado com um grupo étnico
cultural com raízes ancestrais religiosas. Israel é um Estado supremacista
racial sem igual em todo mundo; nem as teocracias do Oriente Médio se baseiam
no caráter étnico da população, mas no caráter religioso, coisa altamente
condenável, mas que não constituem uma doutrina racista”.
“Quando
se começou a implantar o sionismo, os judeus eram apenas 10% da população”, diz
Breno. E isso leva à criação de um Estado colonial, que expulsa e precisa se
militarizar, seja com Ben Gurion ou com Netanyahu”.
Depois
de duas horas de debates ou de reafirmações recíprocas de seus pontos de vista,
o professor Pietro se despediu reafirmando a necessidade de se criar um Estado
palestino e sua condenação do Hamas. Breno com sua habitual verve enfatizou a
representatividade dos palestinos de Gaza pelo Hamas sem entrar na questão da
rivalidade do grupo com a Autoridade Palestina.
Não
houve tempo para outros tipos de discussão e talvez nem o próprio Altman esteja
se preocupando com o contraponto ao Estado sionista étnico judeu. Trata-se do
Estado religioso teocrático islâmico ao qual alguns países do Oriente Médio
aderiram ou estão aderindo. O sionismo restringe a sua própria expansão por ser
étnico, enquanto o islamismo se expande por seu aspecto proselitista e
missionário, não havendo nenhuma barreira étnica às conversões, como, aliás,
ocorreu com o próprio cristianismo.
Seria
o caso de se perguntar, qual o mais perigoso, o Estado étnico, que se restringe
com suas exigências, ou o Estado religioso que se expande e se impõe com o
objetivo de criar uma teocracia mundial?
Neste
caso, perde importância o conceito de posse de territórios, substituído pelo
conceito de valores e direitos humanos. As atuais teocracias islâmicas (e o
Hamas tem um projeto de teocracia islâmica para a região) significam um avanço
ou um retrocesso para o Oriente Médio e para a humanidade em geral? Seja nas
tão discutidas questões do feminismo e do gênero e mesmo na liberdade de cada
um dispor de sua vida ou implicam no retorno a um fundamentalismo religioso
comportamental ultrapassado que restringe o espaço vital das mulheres, da
liberdade sexual e de tantos outros direitos com os quais já nos acostumamos e
nem nos damos conta nas democracias laicas ou seculares?
Na
avaliação da atual guerra, na condenação de Israel por seu bombardeios das
populações civis não estaria faltando, principalmente por parte das mulheres
independentes donas de seus corpos, dos jovens laicos, livres e de todos os
gêneros, deixarem claro nas manifestações serem favoráveis apenas aos
palestinos e não ao projeto de teocracia islâmica do Hamas, que representaria
um enorme retrocesso para a região? Com a perda das liberdades seculares e o
surgimento de outros tipos de arbitrariedades, restrições religiosas,
perseguições e crimes que se cometem contra mulheres e LGBTs no Irão, a
teocracia islâmica mais conhecida e modelo para o Hamas? Rui Martins –
Suíça
________________
Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador
do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas,
que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos
emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da
corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto
Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do
Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de
Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de
Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso
de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
Sem comentários:
Enviar um comentário