A
classe artística costuma repetir que foi a primeira a fechar as atividades por
conta da pandemia e deve ser a última a voltar. É uma situação que faz ainda
mais sentido para a cultura popular, que tem na sua gênese as aglomerações e no
carnaval sua expressão máxima. A folia pernambucana está longe de ser só festa.
É um festival por onde desfilam expressões únicas da nossa cultura, como os
maracatus, afoxés, caboclinhos, tribos de índios, cavalos marinhos. Todos
exigindo muita gente reunida e muito contato físico – desde a preparação, com
ensaios que reúnem multidões. Tudo que deve ser evitado em tempos de
coronavírus.
No
ano passado, a crise chegou logo depois do carnaval. Não teve São João, não
teve Festival de Inverno de Garanhuns, não teve ciclo natalino. E, agora,
também não vai ter carnaval. Para muitos grupos, é a receita de boa parte do
ano. E faltando menos de quatro semanas para o que seria o início da folia, as
prefeituras e o Governo do Estado ainda não se pronunciaram sobre como fica a
sobrevivência de quem vive para fazer o carnaval.
“Muitos
maracatus vão morrer. É difícil ficar um ano parado, muitos adereços e roupas
se perdem”, lamenta o produtor cultural Elex Miguel, de Nazaré da Mata. Dos
três maracatus em que ele trabalha, apenas um, o Águia Misteriosa, possui sede
própria. E foi uma luta mantê-la todos esses meses, sem que nenhum dinheiro de
apresentações entrasse.
Rifas,
com prêmios custeados pela diretoria, foram usadas para pagar as contas. “Mas,
na verdade, foi a comunidade quem nos sustentou. Compraram nossas rifas e,
quando ganhavam, recusavam o prêmio, para a gente poder fazer outra rifa, e
assim foi”, agradece Elex. Também foram feitas algumas lives, que
arrecadaram cestas básicas para os brincantes – cerca de 40.
“Dias
piores virão. Na zona canavieira, a safra acaba em fevereiro e o cortador de
cana, sem auxílio e sem dinheiro do carnaval, fica sem perspectiva. O corte de
cana só volta no final de agosto. E não estamos com nenhuma esperança para o
São João. A vacinação vai demorar, só lá para dezembro é que devemos ter alguma
paz”, acredita Elex, que já se vacinou contra a Covid-19 na primeira leva de
Nazaré da Mata, por ser também agente de saúde do município.
Há
seis meses, falamos com Mamão da Xambá, músico e produtor de festas da cultura
popular em Olinda em uma reportagem sobre o cancelamento do Festival de Inverno
de Garanhuns (Fig). Na época, ele estava com auxílio emergencial e vendendo
instrumentos e equipamentos de som para sobreviver. De lá para cá, a situação
teve altos e baixos. Quando as festas e músicas ao vivo em bares estavam
liberadas, chegou a voltar a trabalhar. Mas a situação rapidamente mudou, com o
recrudescimento da pandemia. “Cheguei a ter uns seis eventos cancelados no fim
do ano passado”, diz.
Tem
vivido fazendo dívidas no cartão de crédito e da Lei Aldir Blanc, que critica
por conta das contrapartidas. No caso dele, a produção de um vídeo. “Você já
gasta 20% com produtor do projeto e aí tem que gravar um vídeo como se fosse um
show ao vivo. De R$ 3 mil que se consegue no edital, uma boa parte já vai
embora para isso”, diz.
A
Lei Aldir Blanc foi discutida ainda no primeiro semestre de 2020 para ajudar
financeiramente a classe artística durante a pandemia. Os recursos começaram a
ser liberados somente em setembro, por meio de editais das prefeituras, com
várias categorias. Pernambuco recebeu R$ 150 milhões dos R$ 3 bilhões
destinados pelo Governo Federal. Além de um auxílio por três meses de R$600, a
lei também conta com editais para grupos e espaços culturais, que variam de R$
3 a R$ 30 mil.
Desde
então, a lei Aldir Blanc vem sendo usada como justificativa por governo e
prefeituras para não oferecerem outros tipos de auxílio – além dos editais
recorrentes – durante a pandemia. Do Festival de Inverno de Garanhuns ao ciclo
natalino e, agora temem os grupos, o carnaval. E agora é muito mais doído. “É a
principal fonte de renda dos maracatus”, lamenta Elex.
O
que os grupos ouvidos pela Marco Zero querem não é carnaval na rua. Sabem que
não é possível. Mas que seja realizado um carnaval online. E que o governo
pague lives com os grupos. Ainda não há nenhum acordo com prefeituras ou o
estado.
As obrigações que não podem ser canceladas
Carnaval
não é só a festa profana. Para alguns grupos, é um momento também de
celebrações religiosas. Se a parte profana segue indefinida, a religiosa é
certa. Nos grupos ligados aos terreiros de candomblé, algumas obrigações já
tiveram início e continuam até o carnaval.
Como
são restritas para os praticantes da religião, não geram aglomerações. Mas algumas
adaptações também foram feitas. No centenário Maracatu Leão Coroado, o pai de
santo está afastado desde março por ser do grupo de risco para a Covid-19. Quem
conduz os trabalhos no terreiro São João Batista é a yalorixá da casa, Giullene
de Aguiar Neto.
“A
gente começa a cuidar desde o dia 2 de novembro, na obrigação para os finados.
Na semana do carnaval, sempre tem uma obrigação fechada no terreiro para pedir
proteção para os brincantes. Mesmo sem ter o carnaval oficial a gente tem que
fazer, não pode deixar”, conta a dirigente do Leão Coroado, Kariana Aguiar.
No
Maracatu Nação Encanto do Pina, da mestra Joana D’arc, as obrigações também
seguem, só com as pessoas que fazem parte do terreiro. “É o que nos mantém em
pé. As obrigações para os éguns (antepassados), pras calungas e patroas da
nação, Yemanjá, Pomba Gira. Não podemos deixar de fazer, mesmo que o carnaval
não aconteça ou seja online”, diz Joana.
A
Noite dos Tambores Silenciosos talvez seja o evento máximo do carnaval
pernambucano na mistura do religioso e do profano. Não é, porém, algo tão
antigo: foi criado em 1965 pelo jornalista Paulo Viana e pela carnavalesca
Badia, na época em que se tentava criar um carnaval mais cultural. Naquela
época, Pernambuco só perdia para o Rio de Janeiro em quantidade e tradição das
escolas de samba.
A
noite do Recife logo se tornou um evento especial. Além da celebração aos
éguns, é um raro momento de comunhão entre os maracatus, que são rivais no
desfile de carnaval. Em Olinda, a noite dos tambores silenciosos é realizada
uma semana antes do carnaval, reunindo nove maracatus e termina com uma
belíssima louvação em frente à Igreja do Rosário de Nossa Senhora dos Homens
Pretos, com todos os maracatus reunidos e uma multidão em volta.
E
como será esse ano? “A louvação na frente da igreja, com a cerimônia, não deve
ter. Estamos vendo talvez uma live somente com representantes dos maracatus,
algo simbólico. A preocupação maior é com a saúde das pessoas”, diz Marcionilo
Oliveira, um dos diretores da Associação dos Maracatus de Olinda, que
representa nove grupos da cidade.
As marcas da Covid-19
A
pandemia jamais será esquecida pelos grupos de cultura popular. Vários grupos
perderam amigos e integrantes. Marcionilo, que também faz parte do maracatu
Maracambuco, conta que duas pessoas dos grupos de Olinda foram vítimas da
Covid-19.
“Quando
a gente sente na pele, quando começa a atingir quem você conhece, é muito
sofrido”, diz. “Vai demorar muito para voltar como era. Quando vi que se
chamava ‘plano de convivência’, já vi que ia demorar muito, que a gente ia ter
que conviver com isso. E não é só gente vulnerável que morre. Perdemos uma
pessoa jovem, um atleta. Me explique, como pode uma doença dessa?”, lamenta.
No
afoxé Alafin Oyó também houve mortes. “A pandemia trouxe uma lupa e nos mostrou
a total ausência do estado para os mais pobres”, diz Fabiano Santos, presidente
do afoxé.
No
maracatu Águia Misteriosa não houve infectados, mas foi seguido uma série de
protocolos para proteger o fundador Zé Rufino, de 87 anos. De segunda a sábado
ele vai até a sede do maracatu para bordar as fantasias. Quando ele está lá, os
outros integrantes não vão. “Se alguém precisar ir, fica de máscara o tempo
todo e longe dele”, conta Elex.
Um carnaval de lives
Para
o carnaval, os grupos não querem sair, apesar de alguns deixarem transparecer
uma mágoa disfarçada de ameaça. Querem que o carnaval de 2021 sirva como uma
vitrine para a cultura popular pernambucana. A chance de se ter um carnaval
estritamente pernambucano. Tudo online e, claro, com cachê.
“Está
todo mundo triste e desesperado. Essa hora é a vez do grosso da renda de
aderecistas e costureiras. E é toda uma cadeia que o carnaval gera que está
parada. Com as prévias e ensaios, as pessoas das comunidades ganhavam dinheiro
vendendo bebidas e comidas. Não há turistas também. Estamos vivendo um luto”,
diz Marcionilo.
A
Aldir Blanc não cobre nem de longe o que se ganha em um carnaval. O cachê do
afoxé Alafin Oyó, por exemplo, pode chegar a R$ 18 mil por apresentação, com
dez apresentações no período. “O edital da Aldir Blanc se propõe a cobrir um
hiato que começou em 16 de março de 2020 sem apresentações. É uma lei
emergencial para garantir a estrutura econômica dos grupos, mas só começamos a
receber os valores no final do ano, mesmo a lei sendo do meio de 2020. É uma
estratégia para não pagar agora o carnaval?”, questiona Fabiano.
Para
Marcionilo, a Aldir Blanc funciona como um paliativo, mas pode ser que não seja
suficiente para evitar a extinção de agremiações. “Um maracatu custa de R$ 100
mil a R$ 250 mil para ir para rua. Só um estandarte é uns R$ 15 mil. Não vou
nem entrar nas fantasias da corte, que tem até fio de ouro. E tudo aumentou
muito…fora as contas para manter uma estrutura de sede, com contas de água,
luz. A gente já nasceu com a crise, mas ficar um ano sem carnaval talvez seja
demais”, diz.
A
ideia das lives é defendida pelo grupo Acorde Música, que reúne mais de
140 artistas e produtores, de várias áreas. E também por várias agremiações de
Olinda, que se reúnem em três grandes grupos no WhatsApp.
Há
meses todos tentam articulação com prefeituras e governo, mesmo sabendo que o
valor de cachê das lives também não irá ficar perto do valor recebido em
carnavais.
Com
as prefeituras de Bezerros, Nazaré da Mata, Olinda e Recife, onde acontecem os
principais carnavais de Pernambuco, há um certo diálogo, mas nenhuma resposta
concreta, nada certo. “Está um empurra-empurra. As prefeituras dizem que
precisam de uma resposta do Governo do Estado. E a gente tem um governo cada
vez mais fechando as possibilidades, travando e impedindo. E as prefeituras
dizem que precisam do aval do governo para se posicionar. Está cansativo”,
conta Fabiano.
Em
nota para a Marco Zero, que questionou para onde irá os recursos que estavam
previstos para a realização do carnaval e se haverá apoio financeiro para as
agremiações, o Governo do Estado diz que está “estudando possibilidades” e cita
os recursos distribuídos por meio da lei Aldir Blanc (confira a nota completa
abaixo). Há menos de quatro semanas, o que vai ficar no lugar do carnaval ainda
segue indefinido.
“O Governo de Pernambuco, por meio da Secretaria de
Turismo e Lazer e da Secretaria de Cultura, segue estudando a possibilidade de
apoiar os grupos e agremiações carnavalescas que tiveram suas atividades
suspensas pelo cancelamento do Carnaval 2021. A decisão foi tomada em virtude
dos índices da Covid-19 no Estado.
A Secult informa ainda que a cadeia cultural de
Pernambuco recebeu, nos últimos 20 dias, injeção de R$ 48 milhões em recursos
provenientes da Lei Aldir Blanc para atividade no primeiro trimestre do ano que
atinge todos os segmentos e que parte importante desta verba beneficiou grupos
de cultura popular ligados ao Carnaval.
O Governo de Pernambuco vem insistindo com as prefeituras municipais para que haja o cumprimento da determinação governamental sobre a proibição de prévias carnavalescas.” Carolina Santos – Brasil in “Marco Zero”
Maria Carolina Santos - Jornalista pela UFPE. Fez carreira no Diário de
Pernambuco, onde foi de estagiária a editora do site, com passagem pelo caderno
de cultura. Contribuiu para veículos como Correio Braziliense, O Globo e
Revista Continente. Ávida leitora de romances, gosta de escrever sobre
tecnologia, política e cultura. Contato: carolsantos@gmail.com
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