A Universidade de Macau (UM) comemora este ano 40 anos de
existência. Em entrevista ao Ponto Final, o Vice-Reitor para os Assuntos
Globais da Universidade de Macau revela o que pode ser feito e o que ficou por
fazer por causa da pademia de Covid-19 que causou diversas restrições no mundo.
Quase totalmente apostada em singrar num contexto de Grande Baía, a UM, defende
Rui Martins, pretende continuar a apostar no português, nas novas tecnologias e
na medicina tradicional chinesa. Contudo, revela que, no médio prazo, uma
Faculdade de Medicina tem mesmo de ser uma realidade no território
A
Universidade de Macau possui, actualmente, três Laboratórios de Referência do
Estado chinês, o que a torna, de acordo com Rui Martins, uma universidade
competitiva e de nível internacional. E por aí é o caminho a ser percorrido,
garante o Vice-Reitor para os Assuntos Globais do estabelecimento de ensino
superior, apostando no mercado global e nos alunos internacionais. Assume que a
pandemia veio trazer constrangimentos a todos nós e que muitos projectos estão
suspensos por causa da Covid-19. Sobre o pensamento crítico e a liberdade
académica, o também especialista em electrónica reitera que a Universidade de
Macau nunca impôs qualquer restrição, pelo contrário, “sempre se investigou
tudo, inclusive sobre Macau, Hong Kong, China ou Taiwan”.
O que significa ser a única universidade pública
compreensiva de Macau?
Esse
termo significa que se trata da primeira universidade a surgir em Macau, inicialmente
como um estabelecimento privado – a Universidade da Ásia Oriental – em 1981,
mas que depois deu origem à Universidade de Macau, ao Instituto Politécnico de
Macau e à Universidade Aberta, actual Universidade Cidade de Macau. Em 1991,
quando foi criada, a Universidade de Macau tinha como objectivo servir a
sociedade de Macau e não se focando num determinado tema, mas sim treinar,
nessa fase, pessoas para a transição de Macau. Nessa altura, foram criados
todos os programas essenciais como Gestão de Empresas e Ciências Sociais, mas
depois também o Direito, Ciências da Educação, a Engenharia, etc. Já mais
recentemente, a criação das Ciências da Saúde, por isso nesse sentido é uma
universidade que cobre, basicamente, todas as áreas, com a perspectiva da
criação do curso de Medicina para o futuro. Por isto tudo é que é vista como
uma universidade compreensiva.
A Universidade da Ásia Oriental foi criada com o intuito
de promover os tão falados talentos locais para o futuro da RAEM. Quarenta anos
depois ainda faz sentido esta formação de talentos ou qual é agora o papel da
Universidade de Macau?
Antes
dos anos 80 do século passado, qualquer pessoa que quisesse seguir o ensino superior
tinha de ir para Portugal, Estados Unidos da América, Inglaterra ou Hong Kong,
não tendo possibilidades de estudar aqui. Quando foi criada a Universidade da
Ásia Oriental mudou-se logo essa mentalidade, se bem que ainda tínhamos poucos
cursos. Aliás, muitas pessoas duvidaram ser possível haver uma universidade em
Macau e quando cheguei ao território, em 1992, ainda pairava no ar essa dúvida.
Mas conseguiu-se numa década, de 1991 a 1999, treinar as pessoas para o início
da RAEM e, desse modo, começou a acreditar-se que seria possível haver ensino
superior em Macau. Depois de 1999 até 2009, continuámos no geral na mesma
linha, mas, paralelamente, começámos a desenvolver a investigação porque até
então praticamente não existia. Esse desenvolvimento levou à criação, em 2011,
de dois Laboratórios de referência do Estado em Macau: um para Investigação de
Qualidade em Medicina Chinesa e outro em Circuitos Integrados em Muito Larga
Escala Analógicos e Mistos. Actualmente, a universidade está a alargar o seu âmbito
de intervenção. Estamos cada vez mais ligados a Hengqin e a Zhuhai, e por sua
vez à zona da Grande Baía, por isso os quadros aqui formados, e muitos ao nível
de doutoramento, podem obviamente trabalhar em Macau, mas penso que o objectivo
será desenvolverem trabalho na Grande Baía.
O que podemos esperar deste 40.º aniversário e que
iniciativas podem acontecer este ano, um ano que aparenta ser muito igual ao
anterior ao nível de restrições devido à pandemia de Covid-19?
Não
vamos ter muitas actividades precisamente por causa da pandemia. Um ano que é
de celebração, de um aniversário importante – 40 anos são as Bodas de Rubi,
seria expectável que ocorressem diversas actividades como seminários,
conferências, muitos convidados, mas isso está limitado devido aos problemas de
circulação. Ontem tivemos o tradicional Open Day, onde se apresentou a
universidade à sociedade. Vamos organizar alguns eventos com antigos alunos e
em todos os outros eventos que vamos realizar ao longo do ano haverá natural
referência ao aniversário. Estamos também a tentar realizar algo que deveria
ter acontecido em 2020, que é o XXX Encontro Anual das Universidades de Língua
Portuguesa (AULP), que deverá suceder em Junho o qual, se não puder ser
presencial, será certamente de forma virtual.
Neste momento, em que áreas de ensino a universidade está
mais forte?
Falando,
por exemplo, na Língua Portuguesa, posso dizer que os cursos em português são
quase os mesmos que havia aquando da criação da RAEM, isto é, licenciatura,
mestrado e doutoramento em português e também a Faculdade de Direito com os
seus programas, a todos os níveis, em português. Esses programas em português
são importantes. Estou cá há cerca de 30 anos e houve dúvidas, em 2000, se o
português se iria manter, apesar de ser língua oficial. Contudo, depois de
2003, quando ficou definido que Macau seria uma plataforma com os países de
Língua Portuguesa, e foi criado o Fórum Macau, as dúvidas dissiparam-se. Aliás,
o curso de Direito tem, precisamente, diversos alunos oriundos dos PALOP. Por
isso, ao longo destes 20 anos, o português tem-se mantido e afirmado. As outras
áreas fortes são as que se relacionam com a investigação científica,
nomeadamente as dos Laboratórios de Referência do Estado, com os dois primeiros
de Medicina Chinesa e Electrónica, e mais recentemente o dedicado à Internet
das Coisas e à Cidade Inteligente, cujo director é o actual reitor e está com
muita pujança e a desenvolver projectos ligados à sociedade de Macau. Claro que
não posso deixar de mencionar a área das Ciências da Saúde como uma
investigação muito importante nas áreas do cancro e do envelhecimento, e o mais
recente instituto criado na área das Ciências Sociais. Por fim, a área da
Gestão de Empresas e, em particular, questões relacionadas com o Turismo e a
Gestão dos Resorts Integrados, onde Macau está bastante avançado,
procurando até atrair alunos internacionais, como por exemplo oriundos da
Coreia do Sul e do Japão, para estas temáticas.
Falámos há pouco, muito pela rama, sobre as Ciências da
Saúde. O que é que falta para termos uma Faculdade de Medicina em Macau?
Antes
da pandemia, estivemos a analisar, nomeadamente com a Universidade de Lisboa, a
hipótese de uma parceria para criar uma Faculdade de Medicina na zona de
Hengqin ou Zhuhai que seria, essencialmente, uma escola para alunos
internacionais. O projecto estava a iniciar-se quando fomos todos confrontados
com esta pandemia. Tendo em conta a situação, a porta não está fechada, mas
está suspensa, a aguardar que a situação melhore. Trata-se de um plano para o
médio prazo que a universidade gostaria de abraçar assim que for possível.
A semana passada foi anunciado um novo tratamento para a
psoríase. Não havendo uma Faculdade de Medicina, como está a desenvolver-se a
área das Ciências da Saúde?
São
bons resultados que vão aparecendo. Essa questão da psoríase que aflora foi um
estudo que conjugou esforços da Faculdade de Ciências da Saúde e do Laboratório
da Medicina Tradicional Chinesa. Tem havido resultados muito interessantes e
animadores na área da investigação relacionada com o cancro, por exemplo. Temos
neste momento cerca de 1.400 alunos de doutoramento e uma percentagem
importante dos doutorandos estão a investigar na área das Ciências da Saúde e,
como tal, vão sempre aparecendo resultados de diversas pesquisas, muitas delas
feitas em parceria com hospitais e universidades na China continental.
O que é que a sua área – electrónica – pode ajudar nas
Ciências da Saúde?
Na
electrónica, desde há algum tempo, mais precisamente desde 2012, temos tido
investigadores doutorandos que fazem a ponte entre a electrónica e a biologia,
que é a área de microfluidos. Na área da electrónica propriamente dita, nós
fazemos os projectos aqui no laboratório, mas a fabricação não pode ser feita
em Macau. Os circuitos são fabricados fora e depois são testados aqui na UM.
Nessa área que faz a ponte de que lhe falei, temos uma sala limpa onde criamos
e manipulamos chips e líquidos orgânicos. Por isso, temos essa parceria com a
Faculdade de Ciências da Saúde, pois são eles que fazem a análise dos líquidos.
Estes microfluídos são usados, muitas vezes, nos estudos relacionados com o
cancro. Para já, os chips são feitos na universidade, mas queremos muito, no
futuro, começar a trabalhar em circuitos integrados.
Tecnologicamente falando, mas também em termos de
investigação académica, o que é que está a ser feito para combater a Covid-19?
Tem
havido colaboração entre a Faculdade de Ciências da Saúde e alguns hospitais.
Na área da Psicologia, a universidade também tem feito algumas parcerias ao
nível do apoio que tem sido dado, por exemplo, aos Serviços de Saúde da RAEM.
No que diz respeito ao laboratório de electrónica, tivemos um spin-off
com a Digifluidic, uma empresa de um antigo aluno de doutoramento que surgiu em
Hengqin, na qual criámos um equipamento que ajuda na detecção do coronavírus
causador da Covid-19 em grandes superfícies como aeroportos ou supermercados,
já certificado pela China, e a ser produzido em massa.
Há uns anos, principalmente na área da electrónica,
ocorreram diversos registos de patentes. A produção ainda continua profícua?
Sim,
continuamos, mais ou menos, na mesma linha. A produção científica tem vindo a
aumentar e somos líderes nessa área. As autonomias académica e científica
têm-se intensificado, assim como o número de artigos científicos publicados em
revistas académicas também aumentou significativamente. Contudo, estamos a
passar uma fase mais de aplicação. Estamos a ter bastantes contratos com
empresas na Grande Baía. A China definiu o sector da electrónica essencial para
o seu desenvolvimento e nós estamos a apoiar as empresas chinesas nessa área.
Continuando na área da tecnologia, pode dizer-nos em que
pé está o projecto do autocarro autónomo?
Continua
em fase experimental. Trata-se de um projecto que está ligado ao Laboratório de
Referência do Estado em Internet das Coisas e à Cidade Inteligente. Creio que
há contactos com o Governo de Macau para a próxima fase. Certo é que ele tem
circulado amiúde pelo campus.
Foi criada também uma página na Internet sobre português,
língua e cultura. Qual tem sido o feedback desse projecto?
Creio
que tem tido um interesse positivo porque, na verdade, há muito interesse pelo
português aqui em Macau e em toda a China. Estamos a tentar fazer o nosso
melhor nesta área, com alguns projectos a iniciar, mas está tudo a correr bem.
Que parcerias existem actualmente entre a Universidade de
Macau a as universidades lusófonas espalhadas pelo mundo?
Fazemos
parte da Associação das Universidades de Língua Portuguesa (AULP), da qual
fomos presidentes de 2014 até 2017. Durante esse período, criámos bastantes
mecanismos de mobilidade de alunos, um pouco ao jeito do programa Erasmus. Com
esse programa, passou a existir mobilidade entre as universidades filiadas na
AULP e os alunos podiam candidatar-se para passarem um período em Portugal, no
Brasil ou em Macau, por exemplo. Muitos alunos inscreveram-se. Este ano, depois
de abertas as vagas, tivemos 22 alunos interessados nesse intercâmbio, mas
devido às restrições causadas pela pandemia nada pode acontecer, ficando tudo
adiado. Entretanto, e por falar em intercâmbios, nós desenvolvemos aqui dois
protótipos em 2020 de ventiladores que estão a ser testados em Angola e em Moçambique,
antes de serem aplicados em hospitais do Lubango e de Maputo. Estamos a
desenvolver o treino para a criação de novos protótipos com as equipas de lá.
Nós fizemos a doação completa de todo o know-how dos projectos.
O Governo tem feito diversos apelos no sentido das
escolas e universidades transmitirem o amor à pátria. As universidades, a seu
ver, têm de ter esse papel?
Macau
tinha uma realidade antes de 1999 e tem outra a seguir a 1999. Essa é uma
política definida pelo Governo Central e serve para dar a conhecer aos jovens o
que é a realidade e história de Macau e da China. Creio que faz sentido. Aqui
na Universidade, isso também é promovido, mas penso que isso não interfere com
a liberdade académica.
As universidades são locais onde deve existir pensamento
crítico. As duas coisas são compatíveis?
Estou
aqui há muitos anos. Estive encarregue da investigação até 2018 e durante esse
tempo nunca ocorreu nenhuma limitação ou imposição do que quer que fosse.
Sempre se investigou tudo, inclusive sobre Macau, Hong Kong, China ou Taiwan.
Mas concorda que há certas temáticas que não são
afloradas nas salas de aula.
As
salas de aula existem para se dar o conteúdo das mais diversas matérias. Claro
que se forem aulas de engenharia, tecnologia e ciência, esse tipo de questões
nem se colocam. Eventualmente, pode ocorrer algum tipo de discussão quando se
trata de aulas na área das Ciências Sociais ou na área de Governo e
Administração Pública, onde pode haver necessidade de falar de determinadas
coisas, de determinadas visões, ou de diversas alturas da história. Penso que
as questões devem ser tratadas de acordo com o currículo das cadeiras.
Discussões políticas devem acontecer fora das salas de aula, mas isso não é
algo específico de Macau ou da China, creio que em todo o mundo é assim.
A Universidade de Macau tem estado bem classificada em
rankings asiáticos e também já começa a aparecer no top 300 em alguns rankings
mundiais. Será possível chegar um dia a posições mais altas?
Devo
dizer que a Universidade de Macau já está numa área de excelência e aparece nos
rankings internacionais desde 2014, nomeadamente no Times Higher Education, que
é o ranking mais prestigiado no mundo. Desde então temos mantido a nossa
presença. Entrámos para o top 300 e andamos ali entre os 300 e os 350. Somos
das mais bem cotadas ao nível asiático e ao nível lusófono só a Universidade de
São Paulo se encontra à nossa frente. A seguir a nós surge a Universidade de
Campinas, também em São Paulo, e mais longe é que começam a surgir as
universidades portuguesas. Chegar ao top 100, por exemplo, é um pouco ilusório
pois estamos a falar da nata das natas. São universidades antigas, quase todas
com mais de 200 anos, nos Estados Unidos da América, com outra capacidade.
Estamos no top 20 das universidades chinesas. Se formos comparar com Hong Kong,
eles têm sete ou oito universidades e nós aparecemos no sexto ou sétimo lugar.
Enfim, acho que estamos no bom caminho e o ranking mostra isso mesmo. O nosso
lugar a nível mundial não é nada desprestigiante, muito pelo contrário.
O facto de a Universidade de Macau se ter instalado na
ilha da Montanha foi preponderante para toda a evolução e futuro da
instituição.
Creio
que sim. Desde logo em termos de dimensão. Estávamos um pouco limitados na
antiga localização. Pensámos, em 2008, criar edifícios novos, mas estaríamos
sempre limitados. Uma área que se desenvolveu bastante com a mudança para o
novo campus foram os Colégios Residenciais. Agora temos um sistema que é
um dos maiores da Ásia que segue, em parte, os modelos inglês e
norte-americano. Os Colégios Residenciais não servem apenas de dormitório,
existindo outras actividades culturais relacionadas. Penso que isso imprime uma
boa dinâmica ao campus. Por outro lado, estar mais perto da China, até
com a abertura da nova fronteira, faz com que surjam novas oportunidades, novos
negócios, novas parcerias. Crescemos muito com o novo campus da Universidade de
Macau, é um facto.
O que podemos esperar dos próximos anos, tanto ao nível
do curto e médio prazo, mas também de projectos a longo prazo?
Em
cima da mesa há diversos projectos. Antes de mais o que desejamos é que esta
pandemia seja controlada o mais rapidamente possível. Uma das questões
importantes para a universidade é tentar ser cada vez mais global, atraindo
mais alunos internacionais. Criámos bolsas específicas para alunos
internacionais com isenção de propinas para esse efeito. Com estas medidas tivemos
logo no primeiro ano da sua implementação um crescimento de 40% de alunos
internacionais a nível do mestrado. Neste momento temos 230 alunos
internacionais, dos quais 70 são dos PALOP, cerca de 10 portugueses, outros 10
oriundos do Brasil e um ou dois de Timor-Leste, e quase todos têm bolsa. Temos
ainda 200 alunos de intercâmbio, valor que está com a tendência de crescimento
em baixa por causa da pandemia. O objectivo, num prazo de cinco anos, é
aumentar estes números para 500. O foco, para os próximos anos, está na área da
Grande Baía. Gonçalo Pinheiro – Macau in “Ponto
Final”
goncalolobopinheiro.pontofinal@gmail.com
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