Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Macau – A Universidade de Macau e a história do ensino superior

A Universidade de Macau (UM) comemora este ano 40 anos de existência. Em entrevista ao Ponto Final, o Vice-Reitor para os Assuntos Globais da Universidade de Macau revela o que pode ser feito e o que ficou por fazer por causa da pademia de Covid-19 que causou diversas restrições no mundo. Quase totalmente apostada em singrar num contexto de Grande Baía, a UM, defende Rui Martins, pretende continuar a apostar no português, nas novas tecnologias e na medicina tradicional chinesa. Contudo, revela que, no médio prazo, uma Faculdade de Medicina tem mesmo de ser uma realidade no território



A Universidade de Macau possui, actualmente, três Laboratórios de Referência do Estado chinês, o que a torna, de acordo com Rui Martins, uma universidade competitiva e de nível internacional. E por aí é o caminho a ser percorrido, garante o Vice-Reitor para os Assuntos Globais do estabelecimento de ensino superior, apostando no mercado global e nos alunos internacionais. Assume que a pandemia veio trazer constrangimentos a todos nós e que muitos projectos estão suspensos por causa da Covid-19. Sobre o pensamento crítico e a liberdade académica, o também especialista em electrónica reitera que a Universidade de Macau nunca impôs qualquer restrição, pelo contrário, “sempre se investigou tudo, inclusive sobre Macau, Hong Kong, China ou Taiwan”.

O que significa ser a única universidade pública compreensiva de Macau?

Esse termo significa que se trata da primeira universidade a surgir em Macau, inicialmente como um estabelecimento privado – a Universidade da Ásia Oriental – em 1981, mas que depois deu origem à Universidade de Macau, ao Instituto Politécnico de Macau e à Universidade Aberta, actual Universidade Cidade de Macau. Em 1991, quando foi criada, a Universidade de Macau tinha como objectivo servir a sociedade de Macau e não se focando num determinado tema, mas sim treinar, nessa fase, pessoas para a transição de Macau. Nessa altura, foram criados todos os programas essenciais como Gestão de Empresas e Ciências Sociais, mas depois também o Direito, Ciências da Educação, a Engenharia, etc. Já mais recentemente, a criação das Ciências da Saúde, por isso nesse sentido é uma universidade que cobre, basicamente, todas as áreas, com a perspectiva da criação do curso de Medicina para o futuro. Por isto tudo é que é vista como uma universidade compreensiva.

A Universidade da Ásia Oriental foi criada com o intuito de promover os tão falados talentos locais para o futuro da RAEM. Quarenta anos depois ainda faz sentido esta formação de talentos ou qual é agora o papel da Universidade de Macau?

Antes dos anos 80 do século passado, qualquer pessoa que quisesse seguir o ensino superior tinha de ir para Portugal, Estados Unidos da América, Inglaterra ou Hong Kong, não tendo possibilidades de estudar aqui. Quando foi criada a Universidade da Ásia Oriental mudou-se logo essa mentalidade, se bem que ainda tínhamos poucos cursos. Aliás, muitas pessoas duvidaram ser possível haver uma universidade em Macau e quando cheguei ao território, em 1992, ainda pairava no ar essa dúvida. Mas conseguiu-se numa década, de 1991 a 1999, treinar as pessoas para o início da RAEM e, desse modo, começou a acreditar-se que seria possível haver ensino superior em Macau. Depois de 1999 até 2009, continuámos no geral na mesma linha, mas, paralelamente, começámos a desenvolver a investigação porque até então praticamente não existia. Esse desenvolvimento levou à criação, em 2011, de dois Laboratórios de referência do Estado em Macau: um para Investigação de Qualidade em Medicina Chinesa e outro em Circuitos Integrados em Muito Larga Escala Analógicos e Mistos. Actualmente, a universidade está a alargar o seu âmbito de intervenção. Estamos cada vez mais ligados a Hengqin e a Zhuhai, e por sua vez à zona da Grande Baía, por isso os quadros aqui formados, e muitos ao nível de doutoramento, podem obviamente trabalhar em Macau, mas penso que o objectivo será desenvolverem trabalho na Grande Baía.

O que podemos esperar deste 40.º aniversário e que iniciativas podem acontecer este ano, um ano que aparenta ser muito igual ao anterior ao nível de restrições devido à pandemia de Covid-19?

Não vamos ter muitas actividades precisamente por causa da pandemia. Um ano que é de celebração, de um aniversário importante – 40 anos são as Bodas de Rubi, seria expectável que ocorressem diversas actividades como seminários, conferências, muitos convidados, mas isso está limitado devido aos problemas de circulação. Ontem tivemos o tradicional Open Day, onde se apresentou a universidade à sociedade. Vamos organizar alguns eventos com antigos alunos e em todos os outros eventos que vamos realizar ao longo do ano haverá natural referência ao aniversário. Estamos também a tentar realizar algo que deveria ter acontecido em 2020, que é o XXX Encontro Anual das Universidades de Língua Portuguesa (AULP), que deverá suceder em Junho o qual, se não puder ser presencial, será certamente de forma virtual.

Neste momento, em que áreas de ensino a universidade está mais forte?

Falando, por exemplo, na Língua Portuguesa, posso dizer que os cursos em português são quase os mesmos que havia aquando da criação da RAEM, isto é, licenciatura, mestrado e doutoramento em português e também a Faculdade de Direito com os seus programas, a todos os níveis, em português. Esses programas em português são importantes. Estou cá há cerca de 30 anos e houve dúvidas, em 2000, se o português se iria manter, apesar de ser língua oficial. Contudo, depois de 2003, quando ficou definido que Macau seria uma plataforma com os países de Língua Portuguesa, e foi criado o Fórum Macau, as dúvidas dissiparam-se. Aliás, o curso de Direito tem, precisamente, diversos alunos oriundos dos PALOP. Por isso, ao longo destes 20 anos, o português tem-se mantido e afirmado. As outras áreas fortes são as que se relacionam com a investigação científica, nomeadamente as dos Laboratórios de Referência do Estado, com os dois primeiros de Medicina Chinesa e Electrónica, e mais recentemente o dedicado à Internet das Coisas e à Cidade Inteligente, cujo director é o actual reitor e está com muita pujança e a desenvolver projectos ligados à sociedade de Macau. Claro que não posso deixar de mencionar a área das Ciências da Saúde como uma investigação muito importante nas áreas do cancro e do envelhecimento, e o mais recente instituto criado na área das Ciências Sociais. Por fim, a área da Gestão de Empresas e, em particular, questões relacionadas com o Turismo e a Gestão dos Resorts Integrados, onde Macau está bastante avançado, procurando até atrair alunos internacionais, como por exemplo oriundos da Coreia do Sul e do Japão, para estas temáticas.

Falámos há pouco, muito pela rama, sobre as Ciências da Saúde. O que é que falta para termos uma Faculdade de Medicina em Macau?

Antes da pandemia, estivemos a analisar, nomeadamente com a Universidade de Lisboa, a hipótese de uma parceria para criar uma Faculdade de Medicina na zona de Hengqin ou Zhuhai que seria, essencialmente, uma escola para alunos internacionais. O projecto estava a iniciar-se quando fomos todos confrontados com esta pandemia. Tendo em conta a situação, a porta não está fechada, mas está suspensa, a aguardar que a situação melhore. Trata-se de um plano para o médio prazo que a universidade gostaria de abraçar assim que for possível.

A semana passada foi anunciado um novo tratamento para a psoríase. Não havendo uma Faculdade de Medicina, como está a desenvolver-se a área das Ciências da Saúde?

São bons resultados que vão aparecendo. Essa questão da psoríase que aflora foi um estudo que conjugou esforços da Faculdade de Ciências da Saúde e do Laboratório da Medicina Tradicional Chinesa. Tem havido resultados muito interessantes e animadores na área da investigação relacionada com o cancro, por exemplo. Temos neste momento cerca de 1.400 alunos de doutoramento e uma percentagem importante dos doutorandos estão a investigar na área das Ciências da Saúde e, como tal, vão sempre aparecendo resultados de diversas pesquisas, muitas delas feitas em parceria com hospitais e universidades na China continental.

O que é que a sua área – electrónica – pode ajudar nas Ciências da Saúde?

Na electrónica, desde há algum tempo, mais precisamente desde 2012, temos tido investigadores doutorandos que fazem a ponte entre a electrónica e a biologia, que é a área de microfluidos. Na área da electrónica propriamente dita, nós fazemos os projectos aqui no laboratório, mas a fabricação não pode ser feita em Macau. Os circuitos são fabricados fora e depois são testados aqui na UM. Nessa área que faz a ponte de que lhe falei, temos uma sala limpa onde criamos e manipulamos chips e líquidos orgânicos. Por isso, temos essa parceria com a Faculdade de Ciências da Saúde, pois são eles que fazem a análise dos líquidos. Estes microfluídos são usados, muitas vezes, nos estudos relacionados com o cancro. Para já, os chips são feitos na universidade, mas queremos muito, no futuro, começar a trabalhar em circuitos integrados.

Tecnologicamente falando, mas também em termos de investigação académica, o que é que está a ser feito para combater a Covid-19?

Tem havido colaboração entre a Faculdade de Ciências da Saúde e alguns hospitais. Na área da Psicologia, a universidade também tem feito algumas parcerias ao nível do apoio que tem sido dado, por exemplo, aos Serviços de Saúde da RAEM. No que diz respeito ao laboratório de electrónica, tivemos um spin-off com a Digifluidic, uma empresa de um antigo aluno de doutoramento que surgiu em Hengqin, na qual criámos um equipamento que ajuda na detecção do coronavírus causador da Covid-19 em grandes superfícies como aeroportos ou supermercados, já certificado pela China, e a ser produzido em massa.

Há uns anos, principalmente na área da electrónica, ocorreram diversos registos de patentes. A produção ainda continua profícua?

Sim, continuamos, mais ou menos, na mesma linha. A produção científica tem vindo a aumentar e somos líderes nessa área. As autonomias académica e científica têm-se intensificado, assim como o número de artigos científicos publicados em revistas académicas também aumentou significativamente. Contudo, estamos a passar uma fase mais de aplicação. Estamos a ter bastantes contratos com empresas na Grande Baía. A China definiu o sector da electrónica essencial para o seu desenvolvimento e nós estamos a apoiar as empresas chinesas nessa área.

Continuando na área da tecnologia, pode dizer-nos em que pé está o projecto do autocarro autónomo?

Continua em fase experimental. Trata-se de um projecto que está ligado ao Laboratório de Referência do Estado em Internet das Coisas e à Cidade Inteligente. Creio que há contactos com o Governo de Macau para a próxima fase. Certo é que ele tem circulado amiúde pelo campus.

Foi criada também uma página na Internet sobre português, língua e cultura. Qual tem sido o feedback desse projecto?

Creio que tem tido um interesse positivo porque, na verdade, há muito interesse pelo português aqui em Macau e em toda a China. Estamos a tentar fazer o nosso melhor nesta área, com alguns projectos a iniciar, mas está tudo a correr bem.

Que parcerias existem actualmente entre a Universidade de Macau a as universidades lusófonas espalhadas pelo mundo?

Fazemos parte da Associação das Universidades de Língua Portuguesa (AULP), da qual fomos presidentes de 2014 até 2017. Durante esse período, criámos bastantes mecanismos de mobilidade de alunos, um pouco ao jeito do programa Erasmus. Com esse programa, passou a existir mobilidade entre as universidades filiadas na AULP e os alunos podiam candidatar-se para passarem um período em Portugal, no Brasil ou em Macau, por exemplo. Muitos alunos inscreveram-se. Este ano, depois de abertas as vagas, tivemos 22 alunos interessados nesse intercâmbio, mas devido às restrições causadas pela pandemia nada pode acontecer, ficando tudo adiado. Entretanto, e por falar em intercâmbios, nós desenvolvemos aqui dois protótipos em 2020 de ventiladores que estão a ser testados em Angola e em Moçambique, antes de serem aplicados em hospitais do Lubango e de Maputo. Estamos a desenvolver o treino para a criação de novos protótipos com as equipas de lá. Nós fizemos a doação completa de todo o know-how dos projectos.

O Governo tem feito diversos apelos no sentido das escolas e universidades transmitirem o amor à pátria. As universidades, a seu ver, têm de ter esse papel?

Macau tinha uma realidade antes de 1999 e tem outra a seguir a 1999. Essa é uma política definida pelo Governo Central e serve para dar a conhecer aos jovens o que é a realidade e história de Macau e da China. Creio que faz sentido. Aqui na Universidade, isso também é promovido, mas penso que isso não interfere com a liberdade académica.

As universidades são locais onde deve existir pensamento crítico. As duas coisas são compatíveis?

Estou aqui há muitos anos. Estive encarregue da investigação até 2018 e durante esse tempo nunca ocorreu nenhuma limitação ou imposição do que quer que fosse. Sempre se investigou tudo, inclusive sobre Macau, Hong Kong, China ou Taiwan.

Mas concorda que há certas temáticas que não são afloradas nas salas de aula.

As salas de aula existem para se dar o conteúdo das mais diversas matérias. Claro que se forem aulas de engenharia, tecnologia e ciência, esse tipo de questões nem se colocam. Eventualmente, pode ocorrer algum tipo de discussão quando se trata de aulas na área das Ciências Sociais ou na área de Governo e Administração Pública, onde pode haver necessidade de falar de determinadas coisas, de determinadas visões, ou de diversas alturas da história. Penso que as questões devem ser tratadas de acordo com o currículo das cadeiras. Discussões políticas devem acontecer fora das salas de aula, mas isso não é algo específico de Macau ou da China, creio que em todo o mundo é assim.

A Universidade de Macau tem estado bem classificada em rankings asiáticos e também já começa a aparecer no top 300 em alguns rankings mundiais. Será possível chegar um dia a posições mais altas?

Devo dizer que a Universidade de Macau já está numa área de excelência e aparece nos rankings internacionais desde 2014, nomeadamente no Times Higher Education, que é o ranking mais prestigiado no mundo. Desde então temos mantido a nossa presença. Entrámos para o top 300 e andamos ali entre os 300 e os 350. Somos das mais bem cotadas ao nível asiático e ao nível lusófono só a Universidade de São Paulo se encontra à nossa frente. A seguir a nós surge a Universidade de Campinas, também em São Paulo, e mais longe é que começam a surgir as universidades portuguesas. Chegar ao top 100, por exemplo, é um pouco ilusório pois estamos a falar da nata das natas. São universidades antigas, quase todas com mais de 200 anos, nos Estados Unidos da América, com outra capacidade. Estamos no top 20 das universidades chinesas. Se formos comparar com Hong Kong, eles têm sete ou oito universidades e nós aparecemos no sexto ou sétimo lugar. Enfim, acho que estamos no bom caminho e o ranking mostra isso mesmo. O nosso lugar a nível mundial não é nada desprestigiante, muito pelo contrário.

O facto de a Universidade de Macau se ter instalado na ilha da Montanha foi preponderante para toda a evolução e futuro da instituição.

Creio que sim. Desde logo em termos de dimensão. Estávamos um pouco limitados na antiga localização. Pensámos, em 2008, criar edifícios novos, mas estaríamos sempre limitados. Uma área que se desenvolveu bastante com a mudança para o novo campus foram os Colégios Residenciais. Agora temos um sistema que é um dos maiores da Ásia que segue, em parte, os modelos inglês e norte-americano. Os Colégios Residenciais não servem apenas de dormitório, existindo outras actividades culturais relacionadas. Penso que isso imprime uma boa dinâmica ao campus. Por outro lado, estar mais perto da China, até com a abertura da nova fronteira, faz com que surjam novas oportunidades, novos negócios, novas parcerias. Crescemos muito com o novo campus da Universidade de Macau, é um facto.

O que podemos esperar dos próximos anos, tanto ao nível do curto e médio prazo, mas também de projectos a longo prazo?

Em cima da mesa há diversos projectos. Antes de mais o que desejamos é que esta pandemia seja controlada o mais rapidamente possível. Uma das questões importantes para a universidade é tentar ser cada vez mais global, atraindo mais alunos internacionais. Criámos bolsas específicas para alunos internacionais com isenção de propinas para esse efeito. Com estas medidas tivemos logo no primeiro ano da sua implementação um crescimento de 40% de alunos internacionais a nível do mestrado. Neste momento temos 230 alunos internacionais, dos quais 70 são dos PALOP, cerca de 10 portugueses, outros 10 oriundos do Brasil e um ou dois de Timor-Leste, e quase todos têm bolsa. Temos ainda 200 alunos de intercâmbio, valor que está com a tendência de crescimento em baixa por causa da pandemia. O objectivo, num prazo de cinco anos, é aumentar estes números para 500. O foco, para os próximos anos, está na área da Grande Baía. Gonçalo Pinheiro – Macau in “Ponto Final”

goncalolobopinheiro.pontofinal@gmail.com


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